# 8. Descumprimento contratual: cumprimento específico da obrigação (I)
Descumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, conforme o que dispõe o art. 389 CC[1]. Embora a responsabilidade por danos seja “efeito geral e típico”[2] do inadimplemento, ela é apenas um dos remédios contra ele aplicados.
Esse texto inaugura uma série de colunas em que se analisará o regime consequencial do inadimplemento. Os textos não tratarão sobre “o que é” o inadimplemento, portanto, e sim sobre “o que acontece” uma vez descumprida a obrigação.
O pano de fundo da primeira coluna é tomado por empréstimo de precioso texto de Eduardo Espinola: a Companhia B recebera de S. 4.518 sacas de café em garantia ao adiantamento de dinheiro que lhe fizera e, uma vez paga a importância devida pelo devedor, a Companhia estava obrigada a restituir a S. sacas de café de mesma qualidade e quantidade. Pago o preço, a Companhia se recusou a adimplir sua obrigação. [3] Quid juris?
Em primeiro lugar, não haverá maiores dificuldade em concluir que S. tem direito a exigir a entrega de sacas de café de mesmas qualidade e quantidade daquelas recebidas (bem fungível, objeto de obrigação de dar coisa incerta).
É o que se denomina de cumprimento específico - também referido como cumprimento in natura, execução específica ou execução in natura -, remédio pelo qual se obtém o cumprimento coercitivo da obrigação descumprida. A exigência de cumprimento (no caso, a entrega das sacas de café), não tem conteúdo indenizatório. [4] Isso não afasta que S. possa exigir a entrega das sacas de café (tutela de cumprimento específico) e, se houver, também as perdas e danos decorrentes da mora (tutela indenizatória).
O cumprimento específico é o primeiro e preferencial meio de reação que o lesado tem à sua disposição em caso de inadimplemento. É verdade que nosso Código Civil não diz isso de forma expressa, mas uma interpretação sistemática dos arts. 395, p. único, 400, I, e 947 CC[5] permite alcançar essa conclusão. O entendimento é encontrado sem maiores dificuldades na doutrina.[6]
O fato de se estar diante de um remédio preferencial não significa que seja um remédio sempre cabível. Ao menos três ordens de fatores podem impedir ou liberar o credor de exigir o cumprimento específico da obrigação. Explico cada um deles abaixo.
Possibilidade: se a obrigação se tornou impossível, o credor não pode exigir nem o devedor se mantém obrigado a realizar o cumprimento específico. A impossibilidade é um limite ao cumprimento da obrigação, independentemente de ser imputável ou não ao devedor. Remeto a leitora e o leitor ao conteúdo com que se abre o Livro de Obrigações de nosso Código Civil, notadamente aos arts. 234, 238 e 239 CC, que tratam da perda superveniente da coisa certa, objeto da prestação, e ao conteúdo do art. 399 CC, que trata do risco de impossibilidade da prestação durante a mora do devedor. Sobre o tema das impossibilidades, você pode ler o texto de Aline Terra publicado aqui, no AGIRE # 5. No nosso caso de fundo, a entrega das sacas de café é prestação de dar coisa incerta que, em princípio não se sujeita ao perecimento. Mas, se o café entregue for de gênero limitado que já foi integralmente consumido e não exista mais (por exemplo, sacas de café da safra “x” da Fazenda “y”)?
Utilidade: nos termos do parágrafo único do art. 395 CC, o credor tem o direito de enjeitar o recebimento da prestação in natura se, em razão da mora, a obrigação perder a sua utilidade. A contrario sensu, se a prestação ainda é útil ao credor, entende-se que ele se mantém adstrito a exigir o cumprimento do pactuado in natura ou a aceitar a purgação da mora pelo devedor. Diferentemente da impossibilidade, que impede que o credor possa exigir o cumprimento específico da obrigação, a alegação e a demonstração da inutilidade servem para liberar o credor de se valer do remédio do cumprimento específico. No Brasil, é bastante vivo o debate sobre os critério para avaliação da perda de interesse do credor.[7] Os desafios são bem evidenciados no nosso caso de fundo, pois a perda de interesse em receber a restituição da garantia é de difícil configuração. Mas se S. puder, por exemplo, demonstrar que não é um vendedor habitual de café e que o não recebimento das sacas ao tempo esperado fez com que se fechasse em definitivo uma oportunidade de revenda?
Autorregramento da vontade: as partes podem contratar os remédios aplicáveis ao descumprimento contratual e, com isso, podem alterar a prevalência ou mesmo o cabimento do cumprimento específico. Há formas típicas e atípicas de gestão de remédios. Dentre as formas típicas, destaca-se a cláusula resolutiva expressa, por força da qual o descumprimento de certas obrigações abre espaço para a resolução contratual. Tal como o critério da inutilidade, a cláusula resolutiva expressa não é um limite ao cumprimento específico, mas se presta a liberar o credor lesado de exigir o cumprimento. Ela pode ser vista como uma forma de se definir ex ante o momento em que a prestação se tornará inútil e, na sua presença, o credor se vê em situação mais confortável do que aquela que se obtém por aplicação do art. 395, parágrafo único pois, nesse último caso, é necessário demonstrar ex post que houve perda do interesse na prestação. Dentre as formas atípicas, pode-se pensar no afastamento contratual do remédio de cumprimento específico. No nosso caso de fundo, houvesse cláusula contratual que afastasse o cumprimento específico, ele nem mesmo se colocaria como um remédio ao credor.
Apresentados seu efeitos e limites, resta saber “como” o credor pode exigir o cumprimento da obrigação descumprida. Estamos diante de um dos mais instigantes pontos de contato entre as disciplinas de Direito material e de Direito processual. Desde ao menos as reformas processuais de 1994, o cumprimento específico das obrigações (inclusive as contratuais) tem sido desenvolvido com atenção pela doutrina processualista. Essa interface é o tema da próxima coluna.
Sobre o exemplo de Eduardo Espinola, eis o desfecho do caso: “A sentença, muito judiciosamente, determinou, de conformidade com indiscutiveis princípios de direito, que B. restituísse a S. 4.518 saccas de café eguaes ás que se achavam em seu poder, ou o valor pecuniario correspondente á mesma quantidade de café. Effectivamente, reconhecido o direito de S., decretou o Tribunal a condenação de B., em primeiro logar, ao cumprimento especifico da obrigação – restituição da mercadoria em quantidade e qualidade eguais, por se tratar de coisa fungível. Como, porém, a recusa do devedor (no caso é a Companhia B que assume o papel de devedor) de dar ou restituir coisa fungível se resolve, em regra, na obrigação de pagar perdas e interesses, declarou o Tribunal, evidentemente para o caso de não fazer B. a restituição determinada, que a condenação seria de pagar o valor pecuniario correspondente á quantidade e qualidade do café que tinha de restituir”.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP e na Universidade Presbiteriana Mackenize.
Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente.
[1] Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
[2] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil - Vol. V. Tomo II, 2ª edição. São Paulo: Grupo GEN, 2008, p. 126.
[3] ESPINOLA, Eduardo. Cumprimento específico das obrigações e resarcimento das perdas e damnos. In: Questões Jurídicas e Pareceres. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1925, pp. 339-341.
[4] Trata-se de execução do contrato, que diz respeito à purgabilidade da mora, cf. SILVA, Jorge Cesa Ferreira. Inadimplemento das Obrigações. (Coleção Biblioteca de Direito Civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale). v. 7. Coordenação: Miguel Reale, Judith Martins-Costa. São Paulo: RT, 2007, p. 170.
[5] Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos
Art. 401. Purga-se a mora:
I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;
Art. 947. Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente.
[6] “O nosso Código não o diz, expressamente. Mas, ao consignar o princípio segundo o qual o não cumprimento da obrigação dá ao credor o direito de exigir as perdas e danos (art. 1.056), não exclui, nem podia excluir, o direito que lhe assiste de exigir, antes de tudo, que a obrigação se cumpra” (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. cit., pp. 23-24).
[7] Propondo critérios objetivo e subjetivo para análise da perda de interesse, vide ZANETTI, Cristiano. A perda de interesse do credor. In: BENETTI, Giovana; CORREA, André; FERNANDES, Márcia; NITSCHSKE, Guilherme; PARGENDLER, Mariana e VARELA, Laura (org.). Direito, cultura e método. Leitura da obra de Judith Martins-Costa. 1ª ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019.