#1. Cláusula resolutiva expressa e o caminho da desjudicialização
Decisão do STJ prestigia a autonomia privada e a segurança jurídica
Em agosto de 2021, a 4ª Turma do STJ negou provimento ao Recurso Especial nº 1.789.863/MS e reconheceu “a possibilidade de manejo de ação possessória fundada em cláusula resolutiva expressa decorrente de inadimplemento de contrato de compromisso de compra e venda imobiliária, sem que tenha sido ajuizada, de modo prévio ou concomitante, demanda judicial” para resolução da relação obrigacional. Tratava-se de compromisso de compra e venda de imóvel rural livremente negociado entre partes paritárias, no âmbito do qual o promitente comprador inadimplira mais de 95% do preço ajustado.
Em voto paradigmático, o Relator, Ministro Marco Buzzi, propôs a alteração da jurisprudência da Corte “para declarar prescindível o intento de demanda/ação judicial nas hipóteses em que existir cláusula resolutória expressa e tenha a parte cumprido os requisitos para a resolução da avença”, sob os seguintes argumentos:
1. Necessário distinguishing. A exigência de resolução judicial de contratos com cláusula resolutiva expressa proveio de especificidades dos casos concretos submetidos à Corte – hipossuficiência da parte, princípios regentes de contratos imobiliários com viés eminentemente público de financiamento habitacional –, mas acabou estendida a casos que não ostentavam referidas características;
2. Interpretação gramatical. A resolução extrajudicial é autorizada expressamente pelo art. 474 do Código Civil e pela legislação especial, tendo sido apenas ratificada pela alteração promovida pela Lei nº 13.097/2015 no art. 1º do Decreto-Lei nº 745/69. Dessa forma, mesmo contratos celebrados anteriormente à referida mudança legislativa podem ser resolvidos extrajudicialmente em presença de cláusula resolutiva expressa;
3. Exigência legal. A única exigência específica da legislação especial para que o promitente vendedor resolva extrajudicialmente a promessa de compra e venda é a interpelação do promitente comprador e o decurso in albis do prazo legal conferido para a purgação da mora.
O Ministro Luis Felipe Salomão votou vencido. Aduziu que “mesmo quando existente cláusula resolutória expressa, revela-se imprescindível a resolução judicial de compromisso de compra e venda de imóvel, momento a partir do qual se configurará a posse injusta e, consequentemente, poderá ser avaliado o alegado esbulho possessório autorizador do comando de reintegração de posse”.
A decisão é alvissareira. O reconhecimento da plena eficácia extrajudicial da resolução facultada pela cláusula resolutiva expressa vem ao encontro da necessidade de assegurar certeza e celeridade às relações contratuais. A resolução extrajudicial constitui mecanismo legítimo de autotutela dos interesses do credor, e o exime de buscar o Judiciário para se desvincular de relação obrigacional disfuncional, incapaz de promover o resultado útil programado. Trata-se de remédio que favorece o tráfico de bens e, consequentemente, a circulação de riquezas.
Em sistemas em que a resolução se opera por mera declaração do credor, a secundarização do papel do juiz na apreciação da cláusula pode ser atenuada por iniciativa do devedor. Se inevitável o litígio, a intervenção judicial será meramente fiscalizadora da legitimidade do exercício da autonomia privada na elaboração da cláusula e do efetivo preenchimento dos pressupostos autorizadores da resolução. De todo modo, a atuação será a posteriori e, verificada a regularidade da disposição e a presença dos pressupostos resolutivos, a sentença será declaratória.
A eficácia extrajudicial da cláusula resolutiva expressa não é infirmada pela eventual necessidade de o credor recorrer ao Judiciário para que se produzam certos efeitos materiais da resolução, a exemplo do restitutório e do indenizatório. “Cuida-se de problemas distintos, a serem resolvidos em esferas distintas”.[1]
Nessa direção, o fato de o promitente vendedor precisar ajuizar ação de reintegração de posse para que lhe seja restituído o imóvel não o impede de resolver extrajudicialmente a promessa de compra e venda. Presentes os requisitos necessários à resolução, ela se opera mediante simples notificação do promitente comprador e transcurso in albis do prazo para purgação da mora; a posse se torna, então, injusta, e resta configurado o esbulho possessório. A recuperação do imóvel pelo promitente vendedor por meio da ação de reintegração de posse encerra, portanto, efeito material da resolução, que com ela não se confunde, mas a pressupõe.
O mesmo raciocínio vale para hipóteses em que, não havendo previsão contratual de cláusula penal compensatória, seja necessário liquidar o dano sofrido pelo credor: resolve-se o contrato extrajudicialmente – liberando-se ambas partes, desde já, do vínculo contratual e, por consequência, dos deveres prestacionais futuros –, e liquida-se o dano judicialmente.
Por fim, destaque-se que embora a decisão do STJ tenha tratado de relação civil paritária, nada há no Código de Defesa do Consumidor que cause embaraço à resolução extrajudicial de promessas de compra e venda celebradas no âmbito de relações de consumo. O art. 53 se limita a impedir a retenção total das parcelas pagas pelo promitente vendedor, e passa ao largo de qualquer discussão sobre a operatividade da resolução, a remeter a questão, necessariamente, para o art. 474 do Código Civil. Da mesma forma, o art. 51, XI, que fulmina de nulidade cláusula que autorize “o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor”, tampouco cuida de resolução, mas sim de denúncia, ou seja, de extinção do vínculo obrigacional por força de declaração de vontade imotivada do fornecedor.
Em tempos em que a desjudicialização ganha contornos mais destacados, a decisão proferida no Recurso Especial nº 1.789.863/MS pavimenta o caminho, até então pantanoso, em direção à plena eficácia extrajudicial da cláusula resolutiva expressa, revelando o compromisso da Corte com a tutela da autonomia privada e a promoção da segurança jurídica. Oxalá os Tribunais Estaduais acompanhem a auspiciosa guinada.
[1] TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Forum, 2017, p. 175.