#10. Exclusão dos créditos garantidos por alienação fiduciária do regime recuperacional
STJ reconhece que créditos garantidos por alienação fiduciária de bens de terceiros não se submetem à recuperação judicial do devedor principal
Em 25 de novembro de 2021, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu, por unanimidade, que crédito garantido por alienação fiduciária de bem de terceiro não se submete à recuperação judicial do devedor principal,[1] na esteira do que já decidira a Terceira Turma.[2] Na origem, o credor apresentara impugnação na recuperação judicial do devedor pleiteando a exclusão de seu crédito da relação formulada pelo administrador judicial, ao argumento de que não se submeteria ao regime recuperacional por estar garantido por alienação fiduciária de imóvel de terceiro, integrante do mesmo grupo econômico da recuperanda. A impugnação foi julgada improcedente. De acordo com o Juízo de primeiro grau, o credor não possuiria qualquer peculiaridade em seu favor que o distinguisse dos demais credores em relação ao patrimônio do devedor, razão pela qual o seu crédito deveria concorrer como quirografário.
Contra a decisão, o credor interpôs agravo de instrumento, e a Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, por unanimidade, negou-lhe provimento e aplicou o Enunciado VI do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, segundo o qual é “[i]naplicável o disposto no art. 49, §3º, da Lei nº 11.101/05, ao crédito com garantia prestada por terceiro, que se submete ao regime recuperacional, sem prejuízo do exercício, pelo credor, de seu direito contra o terceiro garantidor”.
Interpôs, então, o credor, Recurso Especial, no âmbito do qual restou decidido que:
“Por um lado, é irrelevante, para o fim de submissão ou não do crédito à recuperação judicial do devedor principal, a titularidade do bem alienado em garantia; por outro, tal crédito somente fica afastado dos efeitos da ação de soerguimento até o limite do que estiver suportado pelo bem dado em garantia, sobre o qual se estabelece a propriedade resolúvel.”
Consiste a alienação fiduciária em contrato acessório, por meio do qual se confere ao credor o direito potestativo à constituição da propriedade fiduciária, sob condição resolutiva, com o escopo de garantir dívida contraída pelo devedor em contrato principal de mútuo.[4] O credor adquire a titularidade plena e irrevogável do bem com o específico propósito de servir de garantia ao financiamento concedido ao devedor, e o anterior proprietário (no mais das vezes, o devedor) passa a ostentar um domínio negativo. A propriedade fiduciária atribui ao credor posição privilegiada em relação aos demais titulares de outras garantias, já que coloca à sua disposição rápido e sólido mecanismo extrajudicial de satisfação do crédito, além de afastá-lo dos efeitos do procedimento de recuperação, nos termos do artigo 49, §3º da Lei nº. 11.101/2005.
O dispositivo afasta dos efeitos da recuperação o crédito garantido por alienação fiduciária, independentemente da titularidade do bem dado em garantia. A exclusão não deve ser relacionada ao concomitante afastamento dos efeitos da recuperação do próprio bem alienado fiduciariamente pelo devedor, que decorre sobretudo da estrutura da propriedade fiduciária e é ratificada pelo mesmo dispositivo (ressalvada a exceção prevista em sua parte final): se o credor adquire a titularidade plena e irrevogável do bem e o devedor passa a ostentar mero domínio negativo, o bem deixa de integrar o patrimônio do devedor e, portanto, de servir como garantia geral a seus credores. Ou seja: o bem transferido como garantia fiduciária não é alcançado pelos efeitos da recuperação do devedor porque não está mais em seu patrimônio, não está mais sob a sua titularidade, mas sim sob a do credor fiduciário. De outro lado, se o bem dado em garantia pertencia a terceiro, nunca integrou o patrimônio do devedor e nunca serviu como garantia geral a seus credores, servindo à satisfação do específico crédito a que está vinculado.
Não se deve, portanto, atrelar a insubmissão ao regime recuperacional do crédito garantido por alienação fiduciária à titularidade do bem objeto da garantia; se o bem integrava o patrimônio do devedor e deixou de integrar em razão da garantia prestada, ou se nunca o integrou, não deve ser objeto de debate. O fato objetivo é que a lei excluiu do regime recuperacional o crédito garantido por alienação fiduciária, independentemente da titularidade original do bem, e lhe atribuiu sistema de satisfação próprio, que deve ser observado.
O respeito à disciplina legal da alienação fiduciária confere maior segurança às operações de crédito e prestigia a autonomia privada, uma vez que permite sejam produzidos os precisos efeitos da modalidade de garantia livremente escolhida pelas partes. No cenário contemporâneo, em que as transações estão cada vez mais aceleradas e complexas, intensifica-se a necessidade de desenvolver, com rapidez e segurança, o mercado de crédito. A alienação fiduciária surgiu com a promessa de desburocratizar e agilizar a satisfação do crédito, propósito que deve inspirar o aplicador do direito ao interpretar as normas e delinear o seu regime jurídico.
Aline Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Sócia em Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[1] STJ, 4º T., Rel. Min Nancy Andrighi, REsp. 1.933.995/SP, publ. 09/12/2021.
[2] STJ, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, REsp. 1.549.529/SP, publ. 28/10/2016, decisão unânime.
[3] MOREIRA ALVES, José Carlos. Da Alienação Fiduciária em Garantia. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 1.
[4] TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis: possíveis soluções para as deficiências e insuficiências da disciplina legal. In: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz et al. (coord.). Direito das Garantias. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 215-240.