#12. A responsabilidade pela confiança nas lentes do contrato de seguro
por Nelson Rosenvald
Ao discutirmos temas como a violação positiva do contrato, responsabilidade pré-contratual, responsabilidade pós-contratual e deveres anexos, merece destaque a responsabilidade pela confiança. Desde o insight de Jhering de 1861 sobre a culpa in contrahendo, seguido do longo refinamento teórico na Alemanha - espraiando nas jurisdições do civil law - passamos a perceber que o colorido desses modelos jurídicos é infenso à summa divisio entre a responsabilidade negocial e a extranegocial. Realmente, tratamos de situações bem mais complexas que o mero descumprimento de uma prestação contratual ou inobservância de um dever genérico de um neminem laedere. Prestigiamos a tese da responsabilidade pela confiança, mesmo admitindo a sua posição sui generis, pois sob o guarda-chuva dessa denominação unitária há a junção de hipóteses heterogêneas e, por essência, arredias a uma sistematização uniforme.
Portanto, não apenas caminhamos em sentido contrario à doutrina que defende a insubsistência da dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual, como consideramos que a admissão de uma “terceira pista” desafia o intérprete a promover soluções para as hipóteses de violação aos deveres de consideração, face à lacuna legislativa quanto ao tertium genus.
Na vertente dogmática não nos apetece alocar uma relação obrigacional de confiança no interno do regime da responsabilidade aquiliana ou contratual, em uma espécie de “tudo ou nada” que se adapte ao texto do Código Civil. Pelas especificidades dos deveres ético-jurídicos da boa-fé e da alocação do “contato negocial” em uma zona cinzenta, soa contraditório remeter a responsabilidade por ofensa à confiança a um esquema rígido de responsabilidade civil fundado no contrato ou no ilícito, de forma a se definir aprioristicamente que em todos os casos de responsabilidade pré-contratual, violação positiva do contrato ou responsabilidade pós-contratual, seguiremos o regramento A ou B em termos de delimitação entre as responsabilidades contratual e extracontratual.
Face ao vácuo legislativo, seria razoável facultar ao magistrado oscilar entre as peculiaridades da responsabilidade contratual e extracontratual, conforme o tipo de dever violado e a natureza da relação entre lesante e lesado, propiciando flexibilidade de decisões quanto ao ônus da prova, prescrição, presunção de culpa, limites à obrigação de indenizar ou outros aspectos que se encontram na zona gris das duas responsabilidades?
Por certo, no plano pragmático, temos de considerar o princípio da segurança jurídica. Parece-nos de certa forma ingênuo crer que diante da ausência de um regime legal específico para as hipóteses de afronta a boa-fé, o juiz seja autorizado, com base na tópica, a encontrar a solução mais efetiva para o conflito de interesses que se insinua, de forma a conceber um regime próprio, em uma espécie de hibridismo.
Por conseguinte, nossa opção é no sentido de reconduzir a violação da confiança ao regime da responsabilidade contratual. Ancorados na premissa das obrigações complexas, formadas por um feixe de posições jurídicas ativas e passivas, funcionalmente interligadas de tal modo a conduzir ao adimplemento obrigacional, cremos que podemos pensar em uma “responsabilidade obrigacional” em um sentido mais amplo que uma “responsabilidade contratual” de modo a abraçar para além do núcleo prestacional os deveres da boa-fé que se iniciam desde o momento em que o contato negocial dispara a relação obrigacional.
A aplicação do regime contratual à violação de deveres laterais autoriza que relevantes aspectos jurídicos como a demarcação temporal dos juros de mora, presunção de culpa e o prazo prescricional próprio sejam aplicados quando houver ofensa à confiança, não apenas durante, como ainda nas etapas anterior e posterior ao contrato.
Por isso, expressamos nossa adesão à recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (Informativo nº 723 - 7 de fevereiro de 2022 - REsp 1.303.374-ES, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por maioria). Para fins do incidente de assunção de competência, restou aprovada a seguinte tese:
"Tema IAC 2: Para fins do artigo 947 do CPC de 2015, deve ser ânuo o prazo prescricional para exercício de qualquer pretensão do segurado em face do segurador (e vice-versa) baseada em suposto inadimplemento de deveres (principais, secundários ou anexos) derivados do contrato de seguro, ex vi do disposto no artigo 206, § 1o, II, "b", do Código Civil de 2002".
O STJ compreendeu que, no âmbito de uma relação obrigacional complexa, não mais se pode restringir o fenômeno do adimplemento unicamente às obrigações principais. Em comum, a referência à violação de deveres principais, secundários ou anexos derivados do contrato de seguro circunscreve a aplicação do prazo prescricional ânuo a hipóteses bem delimitadas.
Evidentemente, a eficácia do regime de responsabilidade contratual sobre a violação aos deveres emanados a boa-fé não será incondicionada – pela própria distinção entre a gênese voluntarista da assunção de obrigações por autonomia privada e a sua atribuição por imperativos éticos. Ilustrativamente, uma indenização por quebra de contrato envolvendo uma reparação integral de danos não se estende às hipóteses de indenização de danos decorrentes da confiança frustrada, sobremodo quando se cogita de conceder ao lesado a vantagem que obteria com a conclusão e cumprimento do contrato (interesse positivo) ao invés de uma indenização que represente a reposição ao estado correspondente à confirmação das expectativas (interesse negativo)
Um último reparo ao mencionado julgado do STJ: Como bem frisou em voto-vista a Ministra Nancy Andrighi, dada a vastíssima gama de pretensões, formas e conteúdos que podem ser estabelecidos a partir da relação jurídica securitária, é inadequado pretender estender o mesmo prazo a outras pretensões remotas de conteúdo genérico não diretamente afetadas pelas especificidades do contrato de seguro, no sentido de unificar os prazos prescricionais de todas e quaisquer causas de pedir potencialmente existentes entre segurador e segurado. Ilustrativamente, por mais que danos morais sejam mediatamente relacionados ao contexto do contrato, não decorrem, de maneira imediata, de violação de deveres principais, secundários ou anexos do referido negócio jurídico. Trata-se de responsabilidade extracontratual por violação a interesses existenciais. Em suma, não é a natureza das partes envolvidas – segurado e segurador – que, exclusivamente, guiará o intérprete na definição do prazo prescricional aplicável, mas sim a natureza da relação jurídica subjacente e a do próprio ilícito praticado.