#37. Quitação “ampla, geral e irrevogável” na pauta do STJ
Quitação é daqueles institutos cuja utilização e relevância são inversamente proporcionais à atenção que lhe dedica a doutrina. De fato, posto todo operador do direito vá enfrentar inexoravelmente, em algum momento de sua trajetória profissional, controvérsia envolvendo quitação, não se encontram na literatura jurídica monografias a respeito do tema. Nesse cenário de lacuna doutrinária, as decisões do Superior Tribunal de Justiça assumem especial relevância, a justificar sua análise com redobrada atenção. Esta coluna se propõe a examinar o REsp 1.993.187/MS, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 6 de setembro de 2022, que tratou de específica questão: a validade e a eficácia da “quitação ampla, geral e irrevogável” outorgada em transação relativa à indenização por danos extracontratuais.
Nota preliminar: o que é quitação?
Para que bem se compreenda a análise do acórdão e as ponderações que se seguem, convém recapitular o próprio conceito de quitação.
Quitação é o meio de prova de pagamento por excelência. Trata-se de ato jurídico stricto sensu por meio do qual o credor declara e reconhece o adimplemento. O art. 320 do Código Civil exige que da quitação constem algumas informações sobre a dívida paga, tais como “o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento”.[1] Conquanto o instrumento não contenha referidos elementos, se “de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida” (art. 320, parágrafo único), valerá a quitação.
Em princípio, portanto, a quitação só prova o pagamento se identificar o valor pago e a obrigação a cujo adimplemento se prestou, liberando o devedor apenas em relação a essa específica obrigação e na medida do valor declarado. Tornou-se, todavia, prática corriqueira a outorga de “quitação ampla, geral e irrevogável, para nada mais reclamar a qualquer título”. Por vezes, referida previsão é inserida em transações relativas à indenização por danos extracontratuais, e acaba por suscitar discussões quanto à sua validade e à extensão de seus efeitos. Essa é, precisamente, a hipótese do acórdão em comento, como se passa a analisar a seguir.
O caso
Cuida-se de transação relativa à indenização por danos qualificados como materiais e corporais sofridos por R. D. R. O. em razão de acidente automobilístico em rodovia, havido por colisão entre sua motocicleta com animal bovino de propriedade dos réus, com outorga de quitação nos seguintes termos:
Cláusula Quarta: Uma vez efetuado o pagamento de que trata a Cláusula Primeira, a responsabilidade decorrente de danos à motocicleta e aos danos materiais e corporais acima relatados estará completamente quitada, nada mais podendo, o Sr. R. D. R. O. reclamar, em juízo ou extrajudicialmente, pelo que confere a mais ampla, geral e irrevogável quitação.
Ocorre que, após a transação, R. D. R. O. continuou a ter gastos com consultas com fisioterapeutas, médicos e dentistas, e apenas então tomou conhecimento de que ficaria com sequela definitiva de flexo-extensão do punho com perda de força nos dedos em 75%, cujo tratamento seria por tempo indeterminado. A vítima ajuizou, então, ação com vistas a obter indenização pelas novas despesas médicas e pelos danos morais e estéticos, além de pensão vitalícia por invalidez para o trabalho, ao argumento de que referidos danos teriam se consumado somente depois da assinatura do acordo. A ação foi extinta por ausência de interesse processual; entendeu o juízo que “as partes já se compuseram extrajudicialmente em relação aos danos decorrentes do acidente narrado na inicial”.
Interposta a Apelação, manteve-se sentença. De acordo com o relator, os termos da quitação revelariam que o autor teria não apenas reconhecido que o valor já recebido seria “suficiente para reparação de todos os danos decorrentes do acidente narrado na peça de ingresso, bem como [teria] renunci[ado] a quaisquer outras eventuais pretensões relativas àquele acidente”. Além disso, asseverou inexistir nos autos “alegação de vício de vontade na formalização do acordo epigrafado, o qual, portanto, é válido e eficaz, devendo ser levado em consideração na solução do litígio”.
Em sede de Recurso Especial, divergindo do que atestado pelas instâncias ordinárias, o Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva entendeu que R. D. R. O. comprovou seu interesse jurídico à suplementação da verba indenizatória, e determinou o processamento do feito para que fosse realizada a instrução probatória.
Para chegar à referida conclusão, o Relator ratificou, em primeiro lugar, a validade do acordo. Na sequência, afirmou que a transação, por importar renúncia a possíveis direitos, deve ser interpretada restritivamente, pelo que o recibo de quitação fornecido pelo lesado denotaria “apenas a quitação dos valores a que se refere, sem obstar a propositura de ação para alcançar a integral reparação dos danos sofridos com o acidente”. Por fim, o Relator reconheceu que a causa de pedir se referia a fatos supervenientes, consequências desconhecidas à época do acordo, “que se tivessem sido aventadas poderiam ensejar reparação maior ou até mesmo um pensionamento mensal”, a autorizar a indenização suplementar.
A decisão, em verdade, vai ao encontro do entendimento exarado pela Segunda Seção, no REsp 815.018/RS.[2] Tratava-se aqui de transação extrajudicial firmada em 29 de janeiro de 1999 pela viúva de vítima morta em assalto no interior de agência bancária em 11 de dezembro de 1998, no bojo da qual recebeu R$ 90.000,00 e outorgou “a plena, ampla, geral e irrevogável quitação dos prejuízos morais e materiais decorrentes do sinistro anteriormente especificado, não cabendo com isto nenhum pleito em juízo ou fora deste, sob quaisquer argumentos”. Posteriormente, a viúva ingressou com ação para obter a majoração da indenização, aduzindo que, ao celebrar a transação, encontrava-se “ainda bastante abalada diante da morte recente e inesperada do esposo, ocorrida em 11/dez/1998, e fragilizada pelas dificuldades econômicas surgidas após a perda do arrimo da família, situação agravada por seu estado de gravidez”.
De acordo com o Relator Ministro Raul Araújo, o fato de a transação ter sido celebrada pouco tempo após o infortúnio se afigurava irrelevante para a análise da sua validade. Ademais, entendeu que o valor pago não se revelava irrisório ou insignificante, a afastar a invalidade do ajuste e, consequentemente, da própria quitação. Na sequência, afirmou o Ministro que a quitação outorgada no bojo do acordo não correspondia apenas à prova do pagamento do específico montante nela referido, mas ao pagamento do valor total devido a título de indenização pelos danos por ela abarcados. Nessa esteira, a viúva não poderia perseguir a majoração dos valores recebidos pelos danos efetivamente considerados na transação. No entanto, e no que mais de perto importa à decisão objeto desta coluna, reconheceu que em casos nos quais “o acordo te[nha] deixado de abranger verbas de natureza diversa, ou [se verifique] o próprio agravamento de uma lesão não prevista” – que não era a hipótese dos autos –, a quitação não impediria o credor de buscar o pagamento de nova indenização.
Considerações
Como se nota, diante de quitação “ampla, geral e irrevogável” outorgada no âmbito de transação relativa à indenização devida por danos extracontratuais, os precedentes realizam exame casuístico, a fim de verificar (i) se a transação está viciada, (ii) se o acordo abrangeu todas as verbas devidas ou (iii) se houve o agravamento ou mesmo a superveniência de nova lesão. A análise se volta, portanto, mais para a validade e para a extensão da própria transação do que para a validade e para a extensão da quitação em si, que acabam por seguir a sorte do que se estabelece para a transação. Por isso, três considerações se afiguram oportunas:
Embora o art. 849 disponha que “a transação só se anula por dolo, coação ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa” (grifou-se), cuida-se de impropriedade herdada do Código de 1916. A transação é passível de anulação por qualquer das causas que conduzem à anulação do negócio jurídico em geral, inclusive por lesão, à exceção do erro de direito.[3]
Interpreta-se a transação restritivamente,[4] por veicular renúncia a direito. Na dúvida, deve-se atribuir um sentido não abdicativo à declaração de vontade: se a renúncia conduz à perda do direito pelo declarante, não se pode ampliar a extensão do ato abdicativo via interpretação, sob pena de, ao fim e ao cabo, expropriar-se direitos por meio da interpretação.
É preciso examinar a possibilidade de se entender abarcados pela transação os danos futuros previsíveis e/ou os imprevisíveis. Danos futuros são aqueles produzidos após a transação, posto consequência do evento lesivo. No mais das vezes, são o prolongamento no tempo de um dano que já existia ao tempo da transação, mas podem também se manifestar pela primeira vez adiante, embora decorrência necessária do fato lesivo considerado.
Provocações
Se a “quitação ampla, geral e irrevogável” outorgada em transação relativa à indenização por danos extracontratuais, com a indicação do valor recebido pela vítima, já desperta tantos questionamentos quanto à sua validade e extensão, o que dizer da “quitação ampla geral e irrevogável de toda e qualquer obrigação” outorgada em instrumento de extinção contratual sem indicação do montante pago? Aqui, discute-se, antes de tudo, a própria existência de quitação.
De um lado, poder-se-ia sustentar que a ausência dos elementos previstos no art. 320 desnaturaria a declaração liberatória do credor, que deixaria de denotar, ela própria, reconhecimento do pagamento.
De outro, poder-se-ia entender que a referência global a todos os valores pagos e a todas as obrigações havidas entre as partes seria suficiente a qualificar a declaração como quitação, ainda que se fizesse necessária a interpretação sistemática da quitação em cotejo com as demais disposições do instrumento no qual se insira para identificar o seu real escopo, que poderia se revelar mais limitado do que a literalidade (“ampla, geral e irrevogável”) faria supor.
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante. Parágrafo único. Ainda sem os requisitos estabelecidos neste artigo valerá a quitação, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida.
[2] STJ, 2ª S., REsp 815.018/RS, Rel. Min. Raul Araújo, j. 27.4.2016.
[3] Art. 849, parágrafo único. A transação não se anula por erro de direito a respeito das questões que foram objeto de controvérsia entre as partes.
[4] Art. 843. A transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos.