#4 Seguro de responsabilidade civil: efeitos do acordo entre segurado e vítima sem participação do segurador
O artigo 787, § 2º do Código Civil dispõe ser defeso ao segurado reconhecer responsabilidade, confessar, transigir ou indenizar a vítima sem anuência expressa do segurador. [1] A despeito da proibição, aplicável aos seguros de responsabilidade civil, a regra não prevê de forma expressa os efeitos que decorrem de sua inobservância. Em 2021, o STJ foi chamado a decidir exatamente sobre esta questão: o segurado que realiza acordo com a vítima sem anuência da seguradora perde direito à cobertura?
No julgamento do REsp 1604048/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 09/06/2021, decidiu-se que a falta de anuência da seguradora não leva à automática perda do benefício, que poderá ocorrer quando houver prova da má-fé do segurado. In verbis:
“a partir de uma interpretação harmônica entre o § 2º do art. 787 do Código Civil e o art. 422 do mesmo diploma legal, conclui-se que a vedação imposta ao segurado não pode ser causa de perda automática do direito à garantia/reembolso para aquele que tiver agido com probidade e de boa-fé, sendo os atos que tiver praticado apenas ineficazes perante a seguradora”.
A afirmação de ineficácia perante a seguradora significa que ela poderá demonstrar a má-fé do segurado ou o conteúdo inadequado do acordo celebrado, hipóteses em que não terá a obrigação de reembolso.
A extensão do entendimento havido no julgamento referido a outros casos semelhantes pressupõe, como de regra, compreender peculiaridades dos fatos analisados. Abaixo, destacam-se alguns deles:
Comunicação prévia à seguradora e limites do procedimento perante o Juizado Especial
Consta do acórdão que a seguradora foi comunicada do sinistro à época de sua ocorrência e que, na sequência, o segurado foi acionado pela vítima do acidente de trânsito no Juizado Especial Cível. Nos termos do artigo 10 da Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), não se admite nenhuma forma de intervenção de terceiros em procedimentos perante os Juizados, daí porque se mostrava inviável a denunciação da lide à seguradora. A impossibilidade de intervenção de terceiros não é mencionada na fundamentação da decisão, mas apenas em seu relatório. Trata-se, nada obstante, de uma peculiaridade relevante à compreensão do contexto fático da decisão analisada.
Acordo firmado após condenação transitada em julgado
Após condenação transitada em julgado, o segurado teve bens penhorados em sede de cumprimento de sentença e, somente então, transacionou com a vítima o pagamento de indenização no montante de R$ 13.300,00. O acordo foi homologado pelo juízo, que o considerou condizente com o montante da condenação. O momento processual em que o acordo foi firmado foi tido como relevante para a decisão do STJ, como se vê: “(…) por se tratar de cumprimento de sentença definitivo, de fato, alternativa outra não havia para a recorrente se não a de pagar a indenização fixada pela sentença em execução, inclusive porque seus bens já haviam sido objeto de penhora Bacenjud e restrição pelo Renajud.”
Inexistência de alegação e prova de abusividade ou acordo desfavorável
Ao solicitar o reembolso da despesa perante a seguradora, o pedido do segurado foi negado com base no disposto no artigo 787, § 2º CC. Segundo o acórdão, a mesma postura foi repetida na ação judicial de cobrança do reembolso, não tendo a seguradora alegado eventual abusividade ou caráter desfavorável do acordo firmado pelo segurado.
Em suma: entendimento tomado à luz dos fatos e nos limites da defesa apresentada
Levando em consideração o contexto em que se deu o acordo e a inexistência de alegação e de prova de eventual abusividade ou de caráter desfavorável pela seguradora, o STJ concluiu que não houve má-fé do segurado, o que impediria a perda da cobertura.
Ao assim proceder, a decisão reconhece que a ratio do artigo 787, § 2º CC é a proteção da seguradora contra eventuais fraudes praticadas pelo segurado, sendo dela o ônus de demonstrar a ocorrência de fraude, a qual não é presumida. Afinal, “poderá a seguradora, ao ser demandada, alegar e discutir todas as matérias de defesa no sentido de excluir ou diminuir sua responsabilidade, não obstante os termos da transação firmada pelo segurado, o qual somente perderá o direito à garantia/reembolso na hipótese de ter, comprovadamente, agido de má-fé, causando prejuízo à seguradora".
O entendimento do STJ não é propriamente novo. Em 2014, no julgamento do REsp 1.133.459/RS, também da Terceira Turma, concluiu-se que o afastamento da cobertura em caso de ocorrência das hipóteses do artigo 787, § 2º CC somente se dá quando houver má-fé do segurado. Naquela decisão, o STJ exemplificou a ocorrência de má-fé em caso de conluio com terceiro, superfaturamento do acordo ou pagamento de montante indevido.
O tema é também objeto de dois enunciados das Jornadas de Direito Civil, ambos na linha da decisão do STJ aqui comentada:
Enunciado n° 373: "Embora sejam defesos pelo § 2º do art. 787 do Código Civil, o reconhecimento da responsabilidade, a confissão da ação ou a transação não retiram do segurado o direito à garantia, sendo apenas ineficazes perante a seguradora."
Enunciado n° 546: “O § 2º do art. 787 do Código Civil deve ser interpretado em consonância com o art. 422 do mesmo diploma legal, não obstando o direito à indenização e ao reembolso."
A decisão à luz dos pontos de vista do segurado e da seguradora
Do ponto de vista do segurado, a decisão do STJ não deve ser entendida como um salvo conduto para agir à revelia da seguradora, na medida em a atuação do segurado passará por escrutínio ex post.
Do ponto de vista da seguradora, a decisão do STJ indica ser insuficiente defesa fundada apenas na ofensa à proibição constante do artigo 787, § 2º CC. O dispositivo deve ser invocado acompanhado de prova sobre o conteúdo desvantajoso ou fraudulento do acordo firmado sem sua anuência. Da mesma forma, e na medida em que a decisão analisou o dispositivo legal e não faz menção a cláusula contratual, resta ainda em aberto a possibilidade de ajuste contratual que possa levar à conclusão diversa.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil da FGV-SP. Árbitra independente e parecerista.
[1] Art. 787. No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro. (…) § 2º É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação, bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem anuência expressa do segurador.