#41. Qual a relevância dos danos sofridos pelo credor para o regime da cláusula penal compensatória?
A prática revela que uma das cláusulas mais frequentes em contratos, sobretudo naqueles destinados a disciplinar complexas operações econômicas, é a cláusula penal. A popularidade da disposição acessória, fruto da autonomia privada, decorre da sua inegável relevância como instrumento de tutela do interesse do credor diante do inadimplemento. De fato, a depender da função que ostente, a cláusula penal pode atuar tanto preventivamente, dissuadindo o devedor de descumprir a prestação que lhe incumbe (função coercitiva), como de modo remedial, prefixando as perdas e danos (função indenizatória).
O manejo frequente da cláusula penal não foi capaz, todavia, de pacificar a compreensão sobre o seu regime jurídico. Ao contrário. O que se verifica é que, não raro, o cerne da controvérsia havida entre as partes é, justamente, a referida disposição contratual, com especial destaque para o tema desta coluna: a eventual repercussão dos danos efetivamente sofridos pelo credor no regime da cláusula penal compensatória que estabelece as perdas e danos em caso de inadimplemento absoluto.
O dano como parâmetro para redução da cláusula penal compensatória
Discussão comumente enfrentada em procedimentos arbitrais e judiciais diz respeito à possibilidade de se tomar o dano sofrido como parâmetro para a redução equitativa da cláusula penal, prevista no art. 413 do Código Civil:
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
O foco desta análise está na parte final do dispositivo, em que o legislador elencou 2 (dois) parâmetros – a natureza e a finalidade do negócio – para se aferir se o montante pré-liquidado é ou não manifestamente excessivo. Cumpre investigar, portanto, se é possível considerar o efetivo prejuízo como um terceiro parâmetro.
Em verdade, a resposta a essa questão exigiria a análise de uma outra, preliminar, consistente na natureza taxativa ou exemplificativa dos parâmetros legais, que não se discutirá nesta sede. Com efeito, a questão ora enfrentada se coloca nos seguintes termos: ainda que se admita tratar-se de parâmetros legais exemplificativos, a discrepância entre o prejuízo experimentado pelo credor e o valor liquidado na cláusula penal poderia autorizar a sua redução equitativa?
A análise sistemática do art. 413 em cotejo com os demais dispositivos dedicados à cláusula penal parece conduzir à resposta negativa. É especialmente emblemático o fato de o dano suportado pelo credor ser mencionado em apenas 1 (um) artigo do Código Civil, o parágrafo único do art. 416:
Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.
Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.
Como se nota, a única hipótese em que o legislador cogitou da extensão do dano foi (i) em favor do credor, (ii) para admitir indenização suplementar, e (iii) desde que do contrato conste tal possibilidade. Em rigor, a previsão legal está em consonância com o próprio escopo dessa espécie de cláusula penal, que é evitar que o credor tenha que enfrentar tormentosas discussões sobre o montante do seu prejuízo para obter a indenização. Nessa direção, apenas se admite o debate sobre a extensão do dano quando o próprio credor tomar a iniciativa para obter indenização suplementar, e mediante previsão expressa no contrato.
Nesse contexto normativo, considerar a extensão do prejuízo um terceiro parâmetro para a redução da cláusula penal representaria permitir que o devedor impusesse ao credor a discussão sobre o quantum debeatur, o que vai de encontro ao regime legal. A cláusula penal não encerra, em qualquer cenário, acordo sobre a inversão do ônus da prova, pelo que sequer se admite que o devedor avente a possibilidade de provar que o dano sofrido foi manifestamente inferior ao valor estabelecido na cláusula a fim de tentar reduzir o montante a pagar. De todo modo, nada impede que as partes, no livre e consciente exercício da sua autonomia privada, prevejam no contrato a extensão do dano como mais um parâmetro a ser considerado pelo árbitro ou magistrado ao aplicar o art. 413.
A ausência de dano e a incidência da cláusula penal compensatória
Embora não haja controvérsias quanto à desnecessidade de o credor sequer alegar prejuízo para se valer da cláusula penal (art. 416, caput), o mesmo não se pode dizer quanto à possibilidade de o devedor afastar a sua incidência se provar que o credor não sofreu qualquer prejuízo com o inadimplemento. A discussão aqui não é, portanto, a relevância do quantum debeatur, mas a do an debeatur como matéria de defesa do devedor para impedir a cobrança da cláusula penal.
Voltemos ao dado normativo. Estabelece o art. 408:
Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.
O dispositivo só exige o incumprimento culposo[1] para que incida a cláusula penal, não fazendo qualquer referência ao dano. Assim, ao enunciar que “incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal”, o artigo revelaria que o único elemento necessário a deflagrar o seu dever de pagar a indenização pré-fixada é o incumprimento culposo, sendo, portanto, a ausência de inexecução da obrigação, de culpa e de nexo causal as únicas defesas possíveis diante da cobrança do montante estabelecido na cláusula. Nessa direção, afirma-se que “a grande vantagem da prévia estipulação da cláusula penal, assim, reside não na sua aptidão a efetivamente fazer frente aos prejuízos experimentados por ocasião do inadimplemento, mas sim na sua capacidade de regular antecipadamente os riscos e efeitos dessa ocorrência entre as partes contratantes”.[2]
De outro lado, sustenta-se que da natureza forfaitaire do valor indicado na cláusula decorreria apenas a sua autonomia em relação à extensão do dano sofrido, não já à sua existência. A ratio dessa compreensão repousa no fato de o dano ser elemento da responsabilidade civil, sem o qual nenhuma indenização seria devida, nem mesmo aquela pré-liquidada na cláusula penal. Assevera-se, portanto, que “seria de todo inaceitável permitir ao credor exigir uma soma, provada a absoluta falta de danos, no caso de ela haver sido estipulada somente como liquidação do dano futuro e, portanto, no pressuposto de que este ocorreria”.[3]
Como se nota, este tema é especialmente controvertido, havendo argumentos consistentes para ambos os lados. Para fomentar o debate, coloca-se a seguinte indagação: teria o legislador positivado a cláusula penal como instituto por meio do qual as partes, ao pactuá-la no legítimo exercício da sua autonomia privada e no âmbito de direitos patrimoniais disponíveis, afastam a relevância da própria presença do dano para a sua deflagração, ajustando uma espécie de pacto aleatório? Sigamos, aqui, refletindo...
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] Discute-se em doutrina se, em casos de responsabilidade objetiva ou de assunção contratual de risco, dispensa-se a culpa no incumprimento.
[2] SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022, p. 72. No mesmo sentido: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direto civil. v. II, Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 152.
[3] PINTO MONTEIRO, António. Cláusula penal e indenização. Coimbra: Almedina, 1999, p. 624, grifos no original. No direito brasileiro, afirma Jorge Cesa Ferreira da Silva que a cláusula penal, além de facilitar a posição do credor por evitar a por vezes difícil e custosa liquidação dos danos, “dá segurança ao devedor, não só por evitar que pague quando inexista dano, como também por pré-dimensionar a sua responsabilidade” (SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações: mora, perdas e danos, juros legais, cláusula penal, arras ou sinal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 241-242, grifou-se).