#42. Operatividade da cláusula resolutiva tácita: o dogma quanto à necessidade de intervenção judicial para resolução contratual por inadimplemento
por Giovanni Ettore Nanni
A cláusula resolutiva tácita, prevista na segunda parte do artigo 474 do Código Civil[1], é remédio legal, empregável em qualquer contrato, que autoriza o acionamento do expediente resolutório pela parte lesada pelo inadimplemento absoluto, atribuível ao devedor, cuja aplicabilidade é conjugada com o artigo 475 do Código Civil[2]. É exercitável autonomamente, sem embargo de o pacto, no evento real, contar ou não com cláusula resolutiva expressa.
Propõe-se refletir a respeito de sua operatividade, ou seja, se o seu manejo requer que o credor, já vitimado pela inexecução definitiva, ainda tenha que obter pronunciamento judicial ou arbitral para atribuir eficácia à resolução do elo contratual. A despeito do que dispõem os citados dispositivos, subsiste inegável e consolidado posicionamento no sentido de que é necessária a chancela jurisdicional[3]. No entanto, com a devida vênia à maciça doutrina, entende-se que tal entendimento perpetra solução dissociada da lei, consistindo em dogma que merece ser revisitado. Ocorrido o respectivo suporte fático, a resolução por incumprimento se efetiva por interpelação. Ao menos quatro razões fundamentam tal ponto de vista, a seguir sintetizados[4].
Em primeiro lugar, naturalmente, parte-se da interpretação da letra da lei, que não deixa dúvida quanto ao seu comando: os dispositivos que regulam a cláusula resolutiva tácita (arts. 474 e 475 CC) não determinam que a resolubilidade apenas se implementa por sentença judicial ou arbitral, tão só que depende de interpelação judicial. Tanto é assim que Agostinho Alvim[5] – membro da comissão encarregada da elaboração do Projeto de Código Civil, incumbido de redigir a Parte do Direito das Obrigações –, em reunião [audiência pública] ocorrida na Câmara dos Deputados, em 6 de novembro de 1975, expressou: “O Projeto cogita da condição resolutiva. Se for pactuada a condição resolutiva expressa, resolve-se pela infração. E pode haver também condição resolutiva tácita, que há em todos os contratos, como sempre ensinaram os autores brasileiros, nomeadamente Espinola. O contrato se resolve pela condição resolutiva tácita, dependendo, então, de uma notificação.” (destacou-se).
O enunciado do artigo 474 do Código Civil estatui que a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito. Isso implica que, a contrario sensu, a tácita não atua do mesmo modo. Por via de consequência, evitando qualquer vagueza, a própria asserção da norma se encarrega de definir o que é preciso para sua eficácia: a interpelação.
Em segundo lugar, embora a doutrina usualmente afirme que a prolação de sentença é indispensável in casu, pouco examina o texto da lei muito menos procura explicar o posicionamento. Em geral, tão só repete a assertiva, acriticamente. Não obstante, autores clássicos buscam minimamente justificar, visto que se impõe a atuação do Poder Judiciário para que se não possa alegar surpresa[6]; para que a parte obrigada tenha defesa a opor[7]; pressupõe a prova da infração do estipulado[8]; oferece a utilidade de não sujeitar a estabilidade dos negócios aos caprichos ou ao precipitado comportamento de um dos contratantes, interessado na ruptura do vínculo[9]. Contudo, tais opiniões foram exteriorizadas em estágio do Direito pátrio que praticamente não agasalhava a noção do abuso do direito. Decretava-se o império da proteção jurisdicional para frear os impulsos, os excessos. Porém, não é o quadro atual, mormente em razão do que dispõe o artigo 187 do Código Civil, motivo por que tais posicionamentos não são mais condizentes com o sistema hodierno, merecendo ser arredados, pois obsoletos.
Em terceiro lugar, o Código Civil pátrio não acolheu o sistema francês de resolução ou, ao menos, não em sua integridade, notadamente no que concerne ao original artigo 1184 do Código Napoleão. Tal regra em nada se assemelha aos revogados artigos 119, parágrafo único, e 1.092, parágrafo único, do Código Civil de 1916. Se na Lei Civil francesa era previsto que a resolução devia ser demandada judicialmente [“(l)a résolution doit être demandée en justice”], na brasileira unicamente que se opera por interpelação judicial, mantida no atual artigo 474 do Código Civil. Destarte, os dispositivos legais na matéria são díspares, não comportando, portanto, a comparação, pelo que, nesse particular, não se encontra serventia na doutrina estrangeira, que leva a errônea conclusão.
Em quarto lugar, mesmo que o Código Civil não subordine a resolução contratual à intervenção judicial, a posição aqui combatida propugna paradigma superado, de necessária submissão ao Poder Judiciário de questões que nem sequer se sabe se gerarão efetivo litígio. Atrai compreensão paternalista, como se a presença e a autoridade do juiz fossem implacáveis e sinônimo de segurança. Representa concepção que a via judiciária é sempre a primeira alternativa a se lançar mão, quando, efetivamente, deve ser a última.
À luz do que predomina na codificação civil europeia continental, nota-se que o padrão hodierno é o da resolução operada por meio de interpelação, independentemente de sentença judicial. É o que também dispõe o Código Civil brasileiro. Interpelação judicial, categoricamente, não é sinônimo de intervenção judicial.
O inadimplemento absoluto sujeita a parte lesante à resolução do liame, desde que presentes os respectivos requisitos. Se o credor pode romper o vínculo por interpelação, não é cabível sujeitá-lo a longa e custosa disputa litigiosa apenas para exercer o direito resolutório que a lei lhe atribui, sem que tal condicionante verdadeiramente subsista. E ao obrigado é sempre assegurado o direito de recorrer ao Poder Judiciário em busca de tutelas para proteger seus interesses em função de manejo abusivo ou sem fundamento do mecanismo em causa.
Giovanni Ettore Nanni é Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Professor de Direito Civil nos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação Stricto Sensu na PUC-SP, na qual também atua em atividades ligadas à Arbitragem e à Mediação. Advogado e Consultor Jurídico em São Paulo.
[1] “Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial.”
[2] “Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”
[3] Exemplificativamente, visto que o rol de autores é vasto: BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 254; GOMES, Orlando. Contratos. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 174; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: v. 3: contratos: declaração unilateral de vontade: responsabilidade civil. Revista e atualizada por Regis Fichtner. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 134; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil: volume 6, tomo 2: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 488, 490, 493.
[4] Para maior aprofundamento: NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 506-518. No mesmo sentido: CUNHA, Lavínia Cavalcanti Lima. A resolução extrajudicial do contrato em virtude do descumprimento das obrigações nos ordenamentos jurídicos brasileiro e português. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012, p. 259-262
[5] ALVIM, Agostinho. 26ª Reunião. Conferência do professor Agostinho de Arruda Alvim. In: MENCK, José Theodoro Mascarenhas (Org.). Código Civil brasileiro no debate parlamentar: elementos históricos da elaboração da Lei nº 10.406, de 2002. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, v. 1, t. 2, p. 989.
[6] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. 9. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, v. 1, p. 395.
[7] ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil: promulgado pela Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916: anotado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, v. 4, p. 187.
[8] GOMES, Orlando. Contratos. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 174.
[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: v. 3: contratos: declaração unilateral de vontade: responsabilidade civil. Revista e atualizada por Regis Fichtner. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 134.