#48. Os danos aos palácios e as figuras da causalidade acumulativa e da coautoria
Por Judith Martins-Costa
A violência[1] perpetrada contra a Nação brasileira e a ordem democrática em 8 de janeiro passado não causou apenas danos políticos à Nação. Dela também resultaram danos juridicamente indenizáveis na esfera civil. É destes que me ocuparei, para averiguar se justificariam a invocação da doutrina da causalidade acumulativa, também conhecida como “causalidade alternativa”, ou, diferentemente, se a figura da coautoria. Qual delas melhor se presta a fundamentar a imputação de responsabilidade à turba que, adentrando ensandecida aos palácios que simbolizam o cerne da estrutura democrática – os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – destruiu, furtou, roubou, danificou instalações, equipamentos, mobiliário, obras de arte, documentos históricos[2]?
Similar pergunta tem ocorrido aos civilistas que, ao longo das décadas, relatam casos e hipóteses de danos causados por um coletivo de pessoas. Trata-se da responsabilidade dos grupos. Embora não frequentes, os exemplos se sucedem em doutrina e jurisprudência[3], a sinalizar a entrada em cena de um novo personagem, característico da sociedade de massas, midiática e movida a notícias (ou mentiras) recebidas via internet: o grupo.
O estudo dos grupos se espraia para além do Direito, envolvendo questões de Psicologia e de Sociologia das Massas bem como de Teoria da Comunicação. Como sugerem os especialistas, o grupo não é a mera soma dos indivíduos que o compõem, apresentando comportamento próprio, no qual predominam componentes irracionais, distintos daqueles que podem ser observados no comportamento dos indivíduos[4]. Em uma aglomeração desaparece a personalidade individual e surge uma mente coletiva incontrolável, como escreveu Gustave Le Bon em obra mais que secular[5] e é confirmado em obras mais recentes, que constatam: “quando inserido em multidão ou tumulto, mais facilmente se é levado a atitudes assumidas pelo conjunto desordenado das pessoas, em contágio, mais difícil de resistir”[6].
O fenômeno é agravado pelas peculiaridades da comunicação por meios digitais e a difusão contínua de fake news cujo potencial arrebatador é inversamente proporcional à veracidade dos fatos noticiados[7]. “Como resultado, a mobilização do grupo é muito mais efetiva, resultando em ações diversas das que são tomadas pelos indivíduos, seres singulares, permitindo concluir: uma vez inserido o sujeito em multidão movida por uma crença ou paixão que a polariza, há mudança qualitativa, e não apenas quantitativa, do comportamento humano. Esse é um dado a ser considerado pelo Direito e, muito especialmente, pelo Direito Civil, cujas categorias centrais foram erigidas sobre a representação do indivíduo, singularmente considerado[8].
Resultando danos da ação dos grupos, qual figura há de ser buscada no repertório das qualificações jurídicas?
A resposta é também complexa, pois a configuração dos grupos é cambiante. Várias figuras podem, em abstrato, ser invocadas. Diante de caso concreto, o primeiro passo consiste em ter presentes as peculiaridades do dano causado coletivamente, pois a própria qualificação dogmática é dificultosa.
De um lado, respeitabilíssima e majoritária doutrina[9] etiqueta todos os casos de danos provocados por grupos na hipótese da causalidade acumulativa, também dita causalidade alternativa ou, ainda, causalidade suposta. De outro, há quem afaste essa qualificação, conforme o caso concretamente se apresente, entendendo que o problema da responsabilidade grupal não é de causalidade, mas o da determinação das pessoas que devem ser tidas como responsáveis pelo dano. Ignora-se a autoria, singularmente considerada, mas causa é bem determinada, afirma Fernando Noronha, que discerne: “enquanto a causalidade alternativa diz respeito à causa do dano (como a própria designação revela), na responsabilidade grupal não existe dúvida quanto a essa causa; a dúvida é relativa às pessoas a quem tal causa (e causa única) pode ser atribuída”. O problema estaria cingido à autoria coletiva, não ao nexo causal[10].
No caso do ataque aos Palácios, o problema a enfrentar é claro: há um dano e sabe-se qual foi a sua causa, qual seja, o ato ou os atos causados pelo grupo de bolsonaristas que os invadiram. Salvo apontarem em sentido diverso provas ainda a revelar, só não é possível individualizar quem provocou cada golpe, cada concreto dano, sendo, porém, perfeitamente possível concluir que resultaram da ação coletiva. Qual dos caminhos – o da causalidade acumulativa ou o da coautoria – se apresenta mais adequado para solucioná-lo?
Na causalidade acumulativa, “o dano pode ter sido causado e o foi pelo ato de A ou pelo ato de B, sem se poder determinar, com certeza, qual dos dois o causou”. Para tanto, há duas soluções de técnica legislativa: “a) a de se entender que, na falta de prova de quem causou o dano, ainda que haja indícios veementes contra ambos os apontados, nenhum pode ser responsabilizado; b) uma vez que os fatos se apresentam como um todo, a de se ter como responsável qualquer dos participantes”[11]. E há um conjunto de circunstâncias[12] que se devem apresentar.
Na coautoria, por sua vez, há duas ou mais pessoas que concorreram para o mesmo resultado. Logo, o resultado danoso pode ter sido causado pelo grupo, cabendo, todavia, compatibilizar a figura com a noção de grupo que emerge da realidade como hoje se apresenta, a qual, aliás, não tem passado desapercebida ao Direito[13].
Como ensinou Pontes de Miranda, “os concausadores ou são instigadores, ou cúmplices, ou causadores, sem ligação, do mesmo dano, que nenhum dêles, sozinho, poderia determinar”, pois a concorrência causal pode ser subjetiva ou objetiva. O critério é: se uma causa só não produziria o mesmo dano, nem duas ou mais causas, separadas, não o produziriam, há concausas.[14]
O Direito é processo de adaptação social e suas formas, notadamente no Direito Civil, são dotadas de relativa plasticidade para amoldar-se aos fenômenos constantemente apresentados pela vida social. Penso caber ao jurista escolher, dentre o “cardápio” de soluções apresentado pelo sistema aquela que, em face do caso, melhor se adeque às suas características singulares e menor risco apresente ao princípio inafastável da segurança jurídica. Ancorada nesse pressuposto e em face da configuração concretamente apresentada pelas invasões aos Palácios, penso que, prima facie, a via da concausalidade (sob a forma de coautoria) se mostra adequada.
Embora o conceito de causalidade não se atenha, no Direito, apenas aos dados naturalistas, o seu alargamento para um plano puramente normativo, amparado em presunções ou pressuposições não parece ser recomendável, pois o excessivo alargamento atingiria a segurança jurídica. Já o instituto da concausalidade – per si extensivo[15] – pode ser tecnicamente transposto aos danos causados pelos grupos, pois admite várias formas ou manifestações. A conjugação entre condutas de agentes diversos está no seu núcleo, podendo consistir em uma conduta coletiva, em que todos cooperam como coagentes, ou como indutores ou auxiliares dos agentes[16] ou ainda como seus cúmplices[17], incluindo mandantes e financiadores do ato danoso. O que releva é a convergência da atividade quanto ao “resultado dano[18], resultando que todos os atos integrantes da cadeia de causas são causais.[19] Se a unicidade do resultado dano e a pluralidade convergente de causas para aquele dano se apresentarem no caso concreto, não há óbice, penso eu, para a admissão da solidariedade entre os membros do grupo lesante.
Atos tão graves quanto os praticados em Brasília no dia 8 de janeiro passado exigem a convocação do sistema jurídico para o seu enfrentamento e a necessária atribuição de responsabilidade aos que deles participaram, escolhendo, dentre as possíveis soluções, as que forem mais consentâneas com as suas características. Para os membros da turba, seus mandantes e financiadores, cabe reconhecer a responsabilidade civil, com a consequente atribuição do dever de indenizar solidariamente os danos causados.
Judith Martins-Costa
Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas. Livre Docente pela Universidade de São Paulo. Foi Professora de Direito Civil na UFRGS. Membro da Academia Brasileira de Direito, dentre outras instituições e autora de livros de doutrina jurídica.
[1] Discute-se a sua qualificação jurídica em vista da lei penal brasileira, se atos de terrorismo ou de vandalismo. Os atos foram qualificados como terrorismo pelo Ministro Alexandre de Moraes, em recente decisão pela qual determina, a pedido da PGR, a instalação de inquérito para averiguar a conduta do ex-presidente da República na prática de crimes contra o Estado Democrático de Direito (Inquérito 4.921 Distrito Federal). Outros juristas, como os Professores Alexandre Wunderlich, Raquel Scalcon e Rogério Taffarello, sem afastar a extremada gravidade dos crimes praticados pela turba, apontam as dificuldades de os qualificar como atos de terrorismo (vide, respectivamente, Alexandre Wunderlich e Raquel Scalcon, entrevista in Folha de S. Paulo, 9 de janeiro de 2023; e Rogerio Taffarelo, em: Terror jurídico e terror político. Consultor Jurídico CONJUR, 10 de janeiro de 2023).
[2] Assim aponta-se nas 5 páginas de Relatório preliminar realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) acerca de vistoria dos bens culturais afetados pelo vandalismo político (Vide Relatório Preliminar – Vistoria de Bens Culturais Afetados por Vandalismo. Brasilia, 12 de janeiro de 2023.
[3] Na doutrina brasileira vide, entre outros: COUTO E SILVA, Clóvis do. Responsabilidade alternativa y acumulativa. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (Org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 243-252; GIUSTINA, Vasco della. Responsabilidade Civil dos Grupos. Inclusive no Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1991, p. 138 e ss; e CRUZ, Gisela Sampaio da. O Problema do Nexo Causal na Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, especialmente pp. 281 a 310, com referências à jurisprudência.
[4] Vide MARTINS, Jose Souza. Linchamentos. A Justiça Popular no Brasil. São Paulo, Contexto, 2015, posição 357 (Kindle, edição eletrônica, acesso em 14 de janeiro de 2023).
[5] Le Bon, Gustave. Psicologia das Multidões. Ed. LeBooks (edição eletrônica). A primeira edição Psychologie des foules é de 1895. Destaques meus.
[6] REALE Jr, Miguel. Instituições de Direito Penal. Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro. GEN-Forense, 2013, p. 426.
[7] DA EMPOLI, Giovanni da. Os Engenheiros do Caos. Como as fake News, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio e medo e influenciar eleições. Ed. Vestigio (edição eletrônica, 2019).
[8] Ainda assim o fenômeno da coletividade de pessoas não era ignorado. Por exemplo, tradicionalmente é regulada a responsabilidade pelo fato da coisa lançada de edificações. Como afirmado no enunciado 557 da VI Jornada do CJF, há responsabilidade do condomínio pelo fato da coisa, incidindo o art. 938 do Código Civil, quando não for possível identificar de qual unidade imobiliária o objeto caiu ou foi lançado. (https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/628).
[9] E.g. COUTO E SILVA, Clóvis do. Responsabilidade alternativa y acumulativa. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (Org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 243-252; GIUSTINA, Vasco della. Responsabilidade Civil dos Grupos. Inclusive no Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1991, p. 138 e ss;.
[10] NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 256.
[11] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXII. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 274.
[12] Arrola essas circunstâncias, CRUZ, Gisela Sampaio da. O Problema do Nexo Causal na Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 307.
[13] Em outro exemplo: é admitida a existência de efeitos jurídicos derivados do grupo de fato de sociedades comerciais.
[14] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXII. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
[15] Vide PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 4ª ed., Rio de Janeiro: Borsói, 1958, tomo XXII, § 2.718, pp. 191-192 e SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a defesa do Fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 248.
[16] VON THUR, Andreas. Tratado de las Obligaciones. Trad. Esp. de W. Ronces. Madri: Reus, 1999, tomo I, p. 68.
[17] COUTO E SILVA, Clóvis do. “Dever de Indenizar”. In O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva (org.) FRADERA, Vera Maria. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, pp. 196-197.
[18] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 4ª ed., Rio de Janeiro: Borsói, 1958, tomo XXII, § 2.718, p. 192. A propósito, a AGU pediu o bloqueio de bens dos bolsonaristas que contribuíram para os atos financiando a ida dos vândalos à Brasília, apontando como fundamento a responsabilidade solidária (https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/12/apos-pedido-da-agu-juiz-federal-determina-bloqueio-de-r-65-milhoes-de-suspeitos-que-financiaram-atos-terroristas-em-brasilia.ghtml).
[19]PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1958, tomo XXII, § 2.717, 5, p. 188.