#50. Dever de investigação da parte vs. dever de revelação do árbitro
Reflexões introdutórias a partir da experiência internacional
Dever (instrumental) de revelação
Diversas leis nacionais de arbitragem impõem ao árbitro os deveres de imparcialidade e de independência, a exemplo do que ocorre na França[1] e na Inglaterra,[2] duas das principais sedes de arbitragens internacionais. Cuida-se de deveres que se voltam a promover, a um só tempo, a confiança das partes no procedimento bem como a legitimidade da arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias perante toda a comunidade.
A imparcialidade ostenta caráter subjetivo: sua aferição requer a análise do state of mind do árbitro, e endereça questões relativas a preconcepções. Árbitro imparcial não é, todavia, sinônimo de árbitro tábula rasa. De fato, o árbitro é produto do seu tempo, com crenças e compreensões adquiridas a partir de suas experiências, e isso não denota parcialidade. O que há de ser analisado é a capacidade do árbitro de se distanciar de suas eventuais considerações pessoais e decidir sobre os fatos apresentados pelas partes com base no Direito aplicável.
O conceito de independência, por sua vez, apresenta caráter objetivo, e se relaciona à presença de vínculos pessoais ou materiais entre o árbitro e uma das partes. Não é, no entanto, qualquer vínculo que configurará a dependência. Afinal, um árbitro Robinson Crusoé, ilhado e isolado de tudo e de todos, só seria possível encontrar em um romance de Daniel Defoe. A conexão proibida, capaz de caracterizar a ausência de imparcialidade do árbitro, é aquela que denota a sua subordinação à parte.
Em uma palavra, os deveres de imparcialidade e independência exigem que o árbitro seja equidistante tanto das questões em disputa quanto das partes.
Uma das formas mais usuais de aferir a imparcialidade e a independência do árbitro é impondo-lhe o dever de revelação, cujo conteúdo varia consideravelmente de jurisdição para jurisdição. Nota-se, todavia, que o crescente reconhecimento da importância de as partes assumirem maior protagonismo na promoção da legitimidade da arbitragem e de atuarem de forma proativa para assegurar o regular desenvolvimento do procedimento arbitral tem fomentado o debate em torno do que se tem denominado de “dever de investigação” ou “dever de curiosidade”.
Nessa direção, observa-se que jurisdições de civil law tendem a atribuir às partes o dever de investigação, mitigando o dever de revelação do árbitro, enquanto jurisdições de common law tendem a não reconhecer a existência de um tal dever, atribuindo espectro mais amplo ao dever de revelação, como se verá a seguir.
A perspectiva francesa
Na França, o dever de revelação está previsto no artigo 1456(2) do Code de Procédure Civile. Cabe ao árbitro revelar “qualquer circunstância que possa afetar a sua independência e imparcialidade”. A jurisprudência francesa adota critério subjetivo para aferir a violação ao dever de revelação, analisando se o fato ou a informação não revelada poderia suscitar dúvida razoável aos olhos das partes acerca da independência e da imparcialidade do árbitro, à luz das circunstâncias objetivas do caso concreto.[3]
As Cortes francesas, no entanto, excepcionam o dever de revelação impondo às partes o devoir de curiosité como expressão de best practices, pelo qual lhes atribui o dever de investigar não apenas circunstâncias e fatos notórios (exception de notoiriété), mas também aqueles que lhes sejam facilmente acessíveis.[4] Cuida-se, em verdade, de desdobramento da própria boa-fé objetiva, cuja observância se exige dos contratantes durante a negociação, formação e execução do contrato, nos termos do art. 1104 do Code Civil, a exemplo do que se passa em outras jurisdições de civil law, como a Alemanha (§242, BGB).
A Chambre Internationale de la Cour d'appel de Paris – criada em 2018 e com jurisdição para conhecer pedidos de anulação de sentenças internacionais proferidas em arbitragens com sede na França – adota a mesma abordagem. No caso Vidatel LTD, a Câmara Internacional confirmou que os árbitros “não são obrigados a divulgar fatos notórios, entendidos como aqueles que abrangem informações públicas de fácil acesso que as partes não poderiam deixar de consultar antes do início da arbitragem”.[5] Interessante notar que a Corte qualificou a informação com base na qual se perseguia a anulação da sentença arbitral como “razoavelmente acessível” e, portanto, abrangida pelo devoir de curiosité, mesmo tendo sido veiculada pela Global Arbitration Review, publicação que, posto amplamente conhecida pela comunidade arbitral, cobra pelo acesso.
Em situações como essa, os Tribunais franceses consideram que a parte, ao deixar de realizar a investigação que lhe incumbia, renunciou ao direito de questionar a imparcialidade e/ou independência do árbitro com base nas informações que lhe cabia apurar.
A perspectiva inglesa
No direito inglês, o dever de revelação ostenta extensão mais ampla, a exigir do árbitro que revele fato que possa, aos olhos de um fair-minded and informed observer,[6] suscitar dúvidas quanto à sua imparcialidade ou independência, ainda que seja público. O critério é, portanto, (i) objetivo, distanciando-se da percepção subjetiva das partes, e (ii) desvinculado da natureza (pública ou não) da informação.
Não há, no English Arbitration Act, qualquer previsão acerca da atribuição às partes de dever de investigação, e tampouco as Cortes inglesas reconhecem um tal dever como decorrência de best practices. Em verdade, não se cogita do dever de curiosidade como decorrência da cláusula geral de boa fé objetiva simplesmente porque, tratando-se de jurisdição de common law, não se reconhece a existência de uma tal cláusula como fonte de deveres de conduta.
Com efeito, seja a informação pública ou privada, acessível ou não às partes, deve o árbitro analisar se, aos olhos do fair-minded and informed observer, ela pode gerar dúvida razoável sobre a sua imparcialidade e independência; em caso positivo, ele deve proceder à revelação.
E o Brasil?
No contexto brasileiro – jurisdição de civil law , como a França–, embora não haja previsão expressa do dever de investigação das partes, há 4 (quatro) premissas incontroversas que jogam luzes sobre o tema:
1. De acordo com o art. 422 do Código Civil, “[o]s contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
2. Embora o dever de informação decorrente da boa-fé objetiva imponha aos contratantes que prestem, um ao outro, informações relevantes relacionadas ao negócio a fim de permitir a consecução do resultado útil programado, ele não é absoluto. É francamente disseminada a compreensão segundo a qual “não há, em linha de princípio, o dever de informar concernentemente a elementos notórios e a dados que o lesado conhecia ou deveria razoavelmente conhecer”.[7] Com efeito, não pode o contratante lesado, que não se desincumbiu do ônus de buscar informações que deveria razoavelmente acessar, delas se valer para exercer algum direito frente à contraparte.
3. A cláusula compromissória ostenta natureza contratual.
4. O fim comum perseguido pelas partes com a celebração da cláusula compromissória consiste na obtenção de sentença arbitral válida e exequível, que solucione definitivamente a controvérsia havida entre elas.
Nesse cenário, tendo em vista o fim comum perseguido com a celebração da cláusula compromissória, é possível concluir que a boa-fé objetiva impõe às partes o dever de atuar com lealdade bem como o ônus de investigar informações públicas e acessíveis acerca do árbitro, razão pela qual referidas informações sequer estariam abarcadas pelo dever de revelação.
E esse é precisamente o entendimento que tem despontado na jurisprudência nacional, como se verifica da recentíssima decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo Relator Desembargador Jorge Tosta reconheceu que “o dever de revelação (...) está intrinsecamente ligado ao dever de as partes se informarem sobre eventuais motivos de impedimento ou suspeição do árbitro, nos termos dos artigos 15 e 20 da Lei de Arbitragem, à luz do princípio da boa-fé objetiva”.[8]
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] Art. 1456, do Code de Procédure Civile.
[2] Seção 33, do English Arbitration Act 1996 – EAA/1996. Embora o EAA/1996 mencione expressamente apenas o dever de imparcialidade, o dever de independência foi incorporado à legislação inglesa com a entrada em vigor, em 2000, do Human Rights Act de 1998, que incorporou à legislação doméstica os direitos previstos na European Convention on Human Rights, segundo a qual todos têm o direito a um “fair and public hearing (...) by an independent and impartial tribunal” (art. 6(1)).
[3] Cour de Appel Paris, pôle 5 – ch. 16, 25 février 2020, n° 19/15816 para. 53-54.
[4] Cour de Cassation, Pourvoi nº 16-17.108, 15 juin 2017, p. 2
[5] Cour de Appel Paris, pôle 5 – ch. 16, 26 janvier 2021, n° 19/10666 para. 111, tradução livre.
[6] No caso Halliburton Company v Chubb Bermuda Insurance Ltd., em que se discutia a imparcialidade do Presidente do Tribunal Arbitral, a Supreme Court seguiu o parâmetro estabelecido em Helow v Secretary of State for the Home Department, no qual Lord Hope of Craighead definiu que o fair-minded observer “always reserves judgment on every point until she has seen and fully understood both sides of the argument”, enquanto o informed observer, antes de adotar “a balanced approach to any information she is given, she will take the trouble to inform herself on all matters that are relevant”.
[7] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 540.
[8] TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AC nº 1097621-39.2021.8.26.0100, Rel. Des. Jorge Tosta, julg. 22.11.2022.