#51. Indenização por descumprimento de acordo de eleição de foro estrangeiro
Por Daniel Gruenbaum
A eleição de foro estrangeiro é um negócio jurídico típico e autônomo (art. 22, III e art. 25 do CPC). Trata-se de um acordo ou convenção que possui estrutura e sobretudo função próprias, que não se confundem com as de outros tipos negociais. Quem celebra um acordo de eleição de foro estrangeiro não o faz com o mesmo propósito de quem celebra, por exemplo, uma compra e venda. Por isso, apesar de frequentemente ser acordada conjuntamente com outros tipos contratuais, compartilhando o mesmo instrumento, a eleição de foro não é mera cláusula contratual, mas – tal como também ocorre com a escolha do direito aplicável[1] ou com a convenção de arbitragem[2] – negócio jurídico.
Efeitos Processuais Típicos: Positivo e Negativo
O acordo de eleição de foro estrangeiro pode possuir dois efeitos típicos: o efeito processual positivo e o efeito processual negativo. O efeito positivo consiste na atribuição de competência internacional (ou seja, de jurisdição) ao foro eleito (prorogatio fori); enquanto o efeito negativo consiste na derrogação ou afastamento da competência internacional dos demais foros não eleitos (derogatio fori). Apesar de costumeiramente ostentar ambos, nada impede que um acordo de eleição de foro possua apenas efeito positivo (e, então, está-se diante de uma eleição de foro facultativo) ou apenas efeito negativo. No direito internacional privado brasileiro, sem prejuízo de convenções internacionais, a admissibilidade do efeito positivo está prevista no art. 23, III do CPC; enquanto a admissibilidade do efeito negativo está prevista no art. 25 do CPC.
Efeito Material: obrigação de não litigar?
Até aqui, nada de muito polêmico. O que é controvertido e de considerável importância prática é se, para além da sua eficácia processual, a eleição de foro também produziria efeito material. Pergunta-se: decorreria de um acordo de eleição de foro estrangeiro exclusivo uma obrigação contratual negativa, ou seja, uma obrigação de não litigar exceto no foro eleito? E, caso seja possível extrair tal obrigação, quais as consequências materiais da instauração de processo perante foro diverso do que fora eleito?
Por exemplo, se as partes em contrato internacional elegem o foro do Rio de Janeiro, mas – em violação ao acordo de eleição de foro – demanda é proposta em Nova York, as principais consequências processuais são conhecidas. No foro estrangeiro, o acordo implicará a extinção ou suspensão do processo.[3] Se isso não ocorrer, ou seja, se no foro estrangeiro a eleição de foro for desconsiderada e o processo estrangeiro prosseguir, então, no foro brasileiro, o acordo implicará o não reconhecimento de eventual sentença proferida no exterior, por ausência de competência internacional indireta (art. 963, I do CPC)[4].
E no campo do direito das obrigações? Afinal, ainda que o processo seja extinto em Nova York – uma vitória processual, por assim dizer –, o réu provavelmente incorreu para sua defesa no exterior em custos não compensados. Isso porque, em razão da american rule, naquele foro o perdedor não tem como regra geral o dever de ressarcir o vencedor das despesas com honorários advocatícios.[5] Neste caso, teria a parte inadimplente a obrigação de indenizar o dano experimentado pela contraparte e que não foi ressarcido em razão de norma processual estrangeira?
Correntes Doutrinárias
O tema – que ganhou renovada atenção da doutrina internacional privada estrangeira nas últimas duas décadas[6] – é ainda muito pouco discutido na doutrina brasileira.[7] De forma simplificada e ignorando-se muitas nuances, identificam-se duas grandes correntes.
Para uma primeira e mais tradicional corrente, a resposta seria negativa. Primeiro, porque o acordo de eleição de foro produziria apenas efeitos processuais, de modo que o seu descumprimento acarretaria apenas consequências processuais. Segundo, porque o início de um processo em determinado foro, ainda que posteriormente extinto, não poderia ser qualificado de ato ilícito; em particular, a propositura de demanda em um foro diferente do eleito – o qual, segundo o seu próprio direito (lex fori derogati), poderia considerar o acordo inválido ou não abarcando a demanda proposta – seria mero exercício do direito de ação cujo controle caberia apenas à jurisdição estrangeira provocada.
Mais recentemente, contudo, parte da doutrina passou a sustentar que, paralelamente aos processuais, o acordo de eleição de foro estrangeiro também produziria efeito material; seja porque tal efeito material seria típico e já decorreria do próprio modelo negocial; seja porque tal efeito decorreria da atuação da vontade privada, que o acrescentaria aos efeitos processuais típicos; seja ainda porque o efeito material constituiria dever anexo oriundo da boa-fé objetiva. Embora conceitualmente se trate de caminhos distintos para justificar o efeito material e o dever de indenizar, o resultado parece ser essencialmente o mesmo. Assim sendo, a propositura de demanda no forum derogatum não constituiria mero exercício do direito de ação, mas conduta a cuja abstenção a parte se comprometeu contratualmente e por cujo inadimplemento deveria responder.
Precedentes Judiciais Recentes
A evolução da doutrina parece ter sido animada por uma série de precedentes judiciais favoráveis à indenização. Por exemplo, em 2001, na Inglaterra, a Corte de Apelação decidiu que a parte que iniciara processo em Nova York em descumprimento de acordo de eleição de foro a favor dos tribunais ingleses tinha o dever de ressarcir a contraparte dos custos incorridos e não ressarcidos com sua defesa bem sucedida (o processo fora extinto em razão da eleição de foro).[8] Essa conclusão foi posteriormente abonada em diversos obiter dicta da Suprema Corte do Reino Unido.[9] Posteriormente, em 2009, na Espanha, o Tribunal Supremo decidiu que a parte que, em descumprimento de eleição de foro em favor dos tribunais de Barcelona, iniciara um processo na Flórida (posteriormente extinto em razão da eleição de foro) tinha o dever de ressarcir a contraparte dos cerca de €650.000,00 despendidos em sua defesa e não ressarcidos no foro estrangeiro.[10]
Mais recentemente, em 2019, o Tribunal Federal alemão (BGH) julgou caso no qual, em descumprimento de eleição de foro a favor dos tribunais de Bonn, sociedade com sede em Washington D.C. instaurou processo em face de sociedade alemã perante tribunal federal da Virgínia. O processo acabou sendo extinto, em razão da eleição de foro[11], mas a sociedade alemã despendeu US$200.000,00 em honorários advocatícios não ressarcidos. Posteriormente, a mesma sociedade iniciou processo perante os tribunais alemães, no curso do qual a sociedade alemã reconveio, pleiteando indenização pelas despesas com sua defesa no primeiro processo. O Tribunal Federal alemão, julgando ter havido inadimplemento da obrigação de não litigar exceto no foro eleito acordada pelas partes, decidiu que a sociedade alemã teria direito à indenização das despesas razoavelmente incorridas para a sua defesa no exterior.[12]
Em todos esses casos o cenário era bastante específico e relativamente parecido: demanda proposta em foro diverso do eleito; processo extinto sem resolução de mérito em razão da eleição de foro; ausência de ressarcimento dos custos incorridos pela parte para sua defesa por conta de norma processual estrangeira.
Questões em Aberto
As coisas podem, contudo, ficar (ainda) mais complicadas em casos com elementos distintos. Algumas dúvidas: se a ação ajuizada no foro não eleito prosperar, porque o julgador estrangeiro decidiu que a eleição de foro seria inválida ou, apesar de válida, não abarcaria aquela demanda específica – ou seja, no foro estrangeiro a conduta da parte foi julgada regular, e o processo estrangeiro seguiu adiante –, ainda assim se poderia falar em ilícito contratual? Em caso positivo, qual seria a extensão do dano indenizável: apenas os custos processuais não ressarcidos no foro estrangeiro; ou, em caso de perda no mérito, também o valor da condenação proferida no exterior; ou a diferença entre a condenação estrangeira e o valor que a parte teria hipoteticamente perdido se a demanda fora corretamente proposta no foro eleito? Outra dúvida: admite-se, para reforço do acordo de eleição de foro, a estipulação de cláusula penal tendo como conteúdo o pagamento de soma em dinheiro ou alguma outra prestação de natureza diversa? Por fim, qual o foro competente para conhecer da ação de indenização, o mesmo que fora eleito? E qual a lei aplicável à obrigação de indenizar: a lei que rege os efeitos processuais positivos da eleição de foro (lex fori prorogati), a lei que rege os aspectos obrigacionais do acordo (lex contractus) ou alguma outra?
Mas essas são questões difíceis que, por falta de espaço e para sorte do autor, precisam ficar para reflexão futura.
Daniel Gruenbaum
Professor Adjunto de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel (2004) e Doutor em Direito (2010) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Sócio de Gruenbaum Advocacia.
[1] Para a natureza da estipulação pela qual as partes escolhem o direito ou regras de direito aplicáveis às obrigações contratuais, veja-se, com mais referências, Daniel Gruenbaum, Escolha da Lei Aplicável aos Contratos Internacionais (lex voluntatis), in Heloisa Helena Barbosa / Gustavo Tepedino / Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho (coord.), Direito Civil: O Futuro do Direito, Rio de Janeiro, Processo, 2022, p. 205, esp. p. 210-211.
[2] Carmen Tiburcio, A Convenção de arbitragem como negócio jurídico: brevíssimas reflexões, AGIRE #9.
[3] Tradicionalmente, nos Estados Unidos, o acordo de eleição de foro é honrado indiretamente por meio da doutrina do forum non conveniens. Veja-se, na Suprema Corte, Atlantic Marine Constr. Co. v. U.S. Dist. Court for Western Dist. of Tex., 571 U.S. 49 (2013) (“When a forum-selection clause points to a state or foreign forum, the clause may be enforced through the doctrine of forum non conveniens”). Explicando a diferença de abordagem para outros sistemas, Peter Hay, Forum Selection Clauses - Procedural Tools or Contractual Obligations? Conceptualization and Remedies in American and German Law, Emory Int'l L. Rev., vol. 35 (2021), p. 1, esp. p. 12 e seguintes.
[4] Nesse sentido, STJ, j. 17.03.2010, SEC 3.253, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 27.05.2010. Veja-se também, com mais referências, Lidia Spitz, Homologação de Decisões Estrangeiras no Brasil, Belo Horizonte, Arraes, 2021, p. 292 – 296; Daniel Gruenbaum, Competência Internacional Indireta (art. 963, I CPC 2015), Revista de Processo, vol. 266 (2017), p. 99.
[5] Alyeska Pipeline Serv. Co. v. Wilderness Soc'y, 421 U.S. 240 (1975); Goodyear Tire Rubber Co. v. Haeger, 137 S. Ct. 1178, 1186 (2017).
[6] Dentre outros, Peter Hay, Forum Selection Clauses - Procedural Tools or Contractual Obligations? Conceptualization and Remedies in American and German Law, Emory Int'l L. Rev., vol. 35 (2021), p. 1; Haimo Schack, Internationales Zivilverfahrensrecht, 8. Aufl., München, C.H. Beck, 2021, para. 918 – 920; Tanya Monestier, Damages for Breach of a Forum Selection Clause, Am. Bus. L.J., vol. 58 (2021), p. 271; Stefan Huber, Responsabilité contractuelle pour violation d'une clause attributive de juridiction, RTD civ. 2020, p. 941; Frederick Rieländer, Schadensersatz wegen Klage vor einem aufgrund Gerichtsstandsvereinbarung unzuständigen Gericht, RabelsZ, vol. 84 (2020), p. 548-592; Martin Gebauer, Schadensersatz bei Verletzung von Schieds- und Gerichtsstandsvereinbarungen, in Rolf A. Schütze et al. (Hrsg.), Usus Atque Scientia: Festschrift für Roderich C. Thümmel zum 65. Geburtstag am 23. Oktober 2020, Berlin, De Gruyter, 2020, pp. 197-220; Albert Dinelli, The Limits on the Remedy of Damages for Breach of Jurisdiction Agreements: The Law of Contract Meets Private International Law, Melbourne U. L. Rev., vol. 38 (2015), p. 1023; Martin Gebauer, Gerichtsstandsvereinbarung und Pflichtverletzung, in Reinhold Geimer / Rolf A. Schütze (Hrsg.), Recht ohne Grenzen: Festschrift für Athanassios Kaissis zum 65. Geburtstag, Berlin, Otto Schmidt, 2012, pp. 267-286; Gilles Cuniberti / Marta Requejo, La sanction des clauses d’élection de for par l’octroi de dommages et intérêts, ERA Forum, vol. 11 (2010), p. 7-18; Peter Mankowski, Ist eine vertragliche Absicherung von Gerichtsstandsvereinbarungen möglich?, IPRax 2009, p. 23; Koji Takahashi, Damages for Breach of a Choice-of-Court Agreement, Yearbook of Private International Law, vol. 10 (2008), p. 57; Daniel Tan, Damages for Breach of Forum Selection Clauses, Principled Remedies, and Control of International Civil Litigation, Tex. Int’l.L.J., vol. 40 (2005), p 628; Chee Ho Tham, Damages for Breach of English Jurisdiction Clauses: More than Meets the Eye, Lloyd’s Maritime and Commercial Law Quarterly, 2004, p. 46.
[7] Exceção, a favor do efeito material e da indenização em caso de descumprimento, Carmen Tiburcio, Extensão e Limites da Jurisdição Brasileira: Competência Internacional e Imunidade de Jurisdição, 2ª ed., Salvador, JusPodivm, 2019, p. 176-177.
[8] Union Discount Company Ltd v Zoller [2001] EWCA Civ 1755, [2002] 1 WLR 1517, para. 38.
[9] Donohue v Armco Inc [2001] UKHL 64, [2002] 1 All ER 749, para. 36 e 48; AES Ust-Kamenogorsk Hydropower Plant LLP v Ust-Kamenogorsk Hydropower Plant JSC [2013] UKSC 35, [2013] 1 WLR 1889, para. 25; The Alexandros T [2013] UKSC 70, [2014] 1 All ER 590, para. 36–39, 131-132 e 135.
[10] Tribunal Supremo, 12.1.2009 – Rés. n° 6/2009, Rev. crit. DIP 2009, p. 756, com notas de Diego P. Fernández Arroyo = IPRax 2009, p. 529, com notas de Álvarez González.
[11] Cogent Commc'ns, Inc. v. Deutsche Telekom AG., No. 1:15-cv-1632 (LMB/IDD) (E.D. Va. May 13, 2016), referido por Peter Hay, Forum Selection Clauses - Procedural Tools or Contractual Obligations? Conceptualization and Remedies in American and German Law, Emory Int'l L. Rev., vol. 35 (2021), p. 4, nota de rodapé 13.
[12] BGH 17.10.2019 – III ZR 42/19, BGHZ 223, 269 = IPRax 2020, p. 426 com notas de Lukas Colberg = RTD Civ 2020, p. 941 com notas de Stefan Huber.