#54. A prescrição da pretensão da seguradora sub-rogada nos direitos do segurado
Por Eduardo Nunes de Souza
Nos seguros de dano, prevê o art. 786 do Código Civil que a seguradora, ao pagar a indenização securitária à vítima segurada, passa a poder exercer o direito à reparação que esta detinha em face do causador do prejuízo. A regra, fonte de numerosas controvérsias,[1] é qualificada expressamente pelo legislador como hipótese de sub-rogação pessoal. Tal parece ser, com efeito, a qualificação mais coerente com a teoria geral das obrigações, já que a figura costuma ser reputada um caso de pagamento por terceiro interessado, a acarretar a sub-rogação legal (art. 346, III do Código Civil),[2] diversamente do pagamento por terceiro não interessado, que cria, quando muito, o direito de regresso (art. 305 do Código Civil).
Por muito tempo, vale registrar, perdurou o entendimento de que a seguradora seria titular de um direito de regresso em face do causador do dano após pagar a indenização securitária à vítima. O verbete n. 188 da Súmula do STF, por exemplo, de 1963, previa que “o segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro”. Como direito autônomo que pode surgir do fato jurídico do pagamento por terceiro, o regresso conta com prazo prescricional próprio para seu exercício; em se tratando de aplicação do princípio de vedação ao enriquecimento sem causa,[3] esse prazo é trienal (art. 206, §3º, IV do Código Civil). Ainda hoje, aliás, parece ser prevalente na doutrina o entendimento de que, paga a indenização ao segurado, contaria a seguradora com três anos para exercer a cobrança contra o causador do dano.[4]
A jurisprudência do STJ, porém, de forma mais coerente com a lógica da sub-rogação (uma modificação subjetiva da relação jurídica originária entre vítima e causador do dano, que em nada se confunde com a hipotética aquisição originária de um direito de regresso pela seguradora), tem afirmado que o prazo para o exercício da pretensão da seguradora em face do causador do dano é o mesmo de que dispunha o segurado para exercer sua pretensão contra ele, ainda nos casos em que tal prazo fosse determinado por característica pessoal do segurado não compartilhada pela seguradora (como a posição jurídica de consumidor).[5] As repercussões desse entendimento podem se revelar bastante significativas: não raro, o prazo aplicável à pretensão reparatória do segurado contra o causador do dano é drasticamente superior ao lapso de um ano previsto pelo art. 206, §1º, II do Código Civil para o exercício da pretensão desse mesmo segurado contra o segurador. Vejam-se alguns exemplos.
Relações de consumo
Imagine-se que o segurado sofreu o dano no âmbito de relação de consumo e acionou o segurador em seguida. Refutada, ao menos no campo jurisprudencial, a longeva corrente hermenêutica que propunha a aplicação do prazo prescricional quinquenal do art. 27 do CDC à pretensão do segurado em face do segurador nesses casos, consolidou o STJ o entendimento de que essa pretensão deve se sujeitar ao prazo ânuo do Código Civil.[6] Ocorrida, porém, a sub-rogação nos direitos do segurado pela seguradora, o prazo para o exercício da pretensão desta contra o autor do dano é o mesmo lapso quinquenal de que disporia o consumidor para cobrar a indenização diretamente de quem causou o prejuízo.
Responsabilidade contratual
Pense-se, ainda, diante de relação não consumerista, no impressionante prazo com que pode contar a seguradora sub-rogada se o dano decorrer de ilícito contratual. Nesses casos, o STJ tem aplicado o entendimento (frise-se, não isento de críticas)[7] de que a pretensão do credor lesado ao pagamento de perdas e danos pelo devedor inadimplente estaria sujeita ao prazo prescricional geral de dez anos. Caso opte por acionar a seguradora, o segurado que sofreu o dano apenas contará com um ano para exercer sua pretensão contratual contra ela; paga a indenização securitária e operada a sub-rogação da seguradora, contudo, sujeita-se esta ao prazo prescricional da relação originária para cobrar do causador do dano – a prevalecer o entendimento do STJ, o décuplo do tempo de que dispôs o segurado para demandá-la.
Administração Pública
Outro contraste drástico de prazos pode ocorrer se o segurado for a Administração Pública, o que suscita novamente a dúvida sobre ser aplicável à pretensão contra a seguradora o prazo ânuo do Código Civil ou um prazo mais específico (desta vez, o prazo quinquenal do art. 1º do Decreto n. 20.910/1932). A conclusão pelo prazo ânuo, aqui, é menos imediata que no exemplo do consumidor. De fato, o prazo quinquenal consumerista é determinado pela natureza indenizatória da pretensão, que tem fonte legal (e dista, assim, da pretensão do segurado contra a seguradora, que tem fonte contratual e atrai o prazo ânuo do Código Civil). No caso da Fazenda Pública, ao revés, tem-se entendido que o prazo quinquenal aplica-se a pretensões de qualquer natureza,[8] sendo aparentemente definido apenas por um critério ratione personae;[9] a norma, assim, seria mais específica e afastaria o prazo da lei civil. Por outro lado, o seguro contratado pelo ente público parece ser legitimamente qualificável como matéria de ius gestionis, o que recomendaria afastar, em princípio, eventuais prerrogativas fazendárias, atraindo a normativa codificada.[10] Nesse cenário, já existem julgados sustentando que a pretensão fazendária em face da seguradora estaria sujeita ao prazo ânuo.[11] Em prevalecendo esse último entendimento, tornar-se-ia drástica a diferença entre os prazos para exercício da pretensão do ente público em face da seguradora e da pretensão desta sub-rogada nos direitos daquele.
Acessão do tempo e termo inicial da prescrição
A despeito das considerações anteriores, entende o STJ que o prazo prescricional incidente sobre a pretensão da seguradora sub-rogada, embora tenha a mesma duração daquele que incidia sobre a pretensão do segurado contra o causador do dano, recomeça a sua contagem desde o início a partir do efetivo pagamento da indenização.[12] Em outros termos, a Corte nega incidência, aqui, à regra da accessio temporis, prevista pelo art. 196 do Código Civil para todas as hipóteses de sucessão na posição jurídica do titular do direito.[13] Dessa forma, o pagamento da indenização ao segurado acaba por ser convertido em uma causa não legislada de interrupção do prazo prescricional – o qual, ao passar a correr contra a seguradora sub-rogada, teria sua contagem zerada e reiniciada. Costuma-se invocar a figura da actio nata como razão justificadora desse entendimento,[14] em uma lógica que contradiz o próprio conceito de sub-rogação e que, se fosse generalizada para outros casos de modificação subjetiva das relações jurídicas, tornaria letra morta a regra do art. 196 do Código Civil.
Caso se pretenda conferir à hipótese a relevante regulagem ao caso concreto que geralmente se traduz no uso jurisprudencial da locução “actio nata” (com o consequente temperamento que isso costuma trazer à tradicional taxatividade das causas obstativas da prescrição),[15] talvez fosse mais adequado considerar que, entre o requerimento formulado pelo segurado à seguradora e o pagamento efetivo da indenização, ficaria suspenso (não já interrompido) o prazo prescricional sobre a pretensão em face do causador do dano, voltando a correr a prescrição com a implementação da sub-rogação. Com isso, evitar-se-ia ao máximo o agravamento que a sub-rogação da seguradora acaba surtindo sobre a posição jurídica do causador do dano, uma preocupação central no regime da sub-rogação (que, justamente por isso, preserva contra o credor sub-rogado todas as exceções que o devedor dispunha contra o original),[16] sem, lado outro, sacrificar-se desnecessariamente a regra da acessão temporal.
Eduardo Nunes de Souza
Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Civil do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ.
[1] Algumas abordadas em: STEINER, Renata. Contrato de seguro e sub-rogação na pauta do STJ. Agire, #31.
[2] Por todos, cf. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina (Org.). Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 644.
[3] Sobre a vinculação do regresso ao enriquecimento injusto e sua distinção da sub-rogação, cf. SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. São Paulo: RT, 2022, p. 235.
[4] Muitas vezes, porém, sustenta-se que o prazo trienal decorreria do art. 206, §3º, V do CC, por se atribuir ao regresso uma suposta natureza de “reparação civil”. Nesse sentido, cf. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008, p. 170; RIZZARDO, Arnaldo et alii. Prescrição e decadência. Rio de Janeiro: GEN, 2015, p. 135. A questão foi também objeto do Enunciado n. 580 da V Jornada de Direito Civil do CEJ/CJF (2011), que, embora afirme ser o caso de sub-rogação, sustenta ser aplicável o prazo trienal da reparação civil.
[5] Ilustrativamente: STJ, AgRg no REsp. 1.169.418, 3ª T., Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 6.2.2014.
[6] Ilustrativamente: STJ, REsp. 1.303.374, 2ª S., Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 30.11.2021.
[7] Em viés crítico, permita-se remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Problemas atuais de prescrição extintiva no direito civil: das vicissitudes do prazo ao merecimento de tutela. Civilistica.com, a. 10, n. 3, 2021, item 3.
[8] Prevê o art. 1º do Decreto n. 20.910/1932 a incidência do prazo de cinco anos sobre “todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal”. A despeito da literalidade do dispositivo, a jurisprudência do STJ tem sustentado que o prazo se aplica também às pretensões indenizatórias que sejam titularizadas pela Fazenda Pública, “em respeito ao princípio da isonomia” (cf., ilustrativamente: STJ, AgInt no REsp 1.891.285, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j. 8.3.2021). O entendimento, apesar de pacificado, não é isento de críticas. De fato, em matéria de prescrição se impõe, ordinariamente, a interpretação restritiva do texto legal. Ademais, o argumento da isonomia, embora sustentado também em doutrina (cf., por exemplo, JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: RT, 2016), parece aplicar uma igualdade meramente formal a credores drasticamente díspares (a Administração Pública e o particular). E, além disso, o posicionamento do STJ quanto à prescrição das pretensões indenizatórias da Fazenda Pública parece ter se firmado em torno de pretensões bastante específicas, que o art. 120 da Lei n. 8.213/1991 qualifica como “regressivas” (logo, não indenizatórias) e não parece extensível, em qualquer caso, à indenização securitária (cuja natureza é contratual).
[9] Vale lembrar, no ponto, a lição de Celso Antônio Bandeira de MELLO, que, em edições iniciais de sua obra, defendia a aplicação dos prazos da lei civil às pretensões judiciais da Administração em face dos administrados, mas, posteriormente, passou a sustentar a incidência do prazo quinquenal, por entender que este seria “uma constante” nas normas de direito público (Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, pp. 1091-1092). A se consolidar essa tendência unificadora em torno do prazo quinquenal para todas as pretensões da Fazenda Pública, ter-se-ia um argumento eloquente em prol da derrogação do prazo ânuo do Código Civil.
[10] Note-se que o art. 62, §3º, I da Lei n. 8.666/1993 inclui os contratos de seguro celebrados pela Administração entre aqueles “cujo conteúdo [é] regido, predominantemente, por norma de direito privado”, mas faz incidir regras de direito público sobre eles. A doutrina critica a impropriedade da norma, que, em sua literalidade, levaria a “reconhecer que o legislador praticamente acabou com os contratos privados da Administração”. Propõe-se, por isso, que princípios de direito público só sejam aplicados àqueles contratos “quando expressos no instrumento contratual”, preservando-se sua natureza eminentemente privada (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2017). As decisões que afastam a aplicação do prazo ânuo do Código Civil a seguros contratados pela Administração, nessa esteira, negam justamente a natureza privada desses contratos – por exemplo, em um caso sobre seguro-garantia contratado como obrigação assumida em licitação (TJSP, Ap. Civ. 1011451-55.2014.8.26.0053, 5ª C.D.Priv., Rel. Des. Francisco Bianco, j. 11.11.2019).
[11] Por exemplo: TJDFT, Ap.Civ. 0710241-05.2019.8.07.0018, 1ª T.C., Rel. Des. Carlos Rodrigues, j. 19.8.2020.
[12] Ilustrativamente, cf. STJ, AgInt no REsp. 1.959.955, 4ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21.2.2022.
[13] Trata-se de regra clássica em sede de prescrição, já constante da lição de WINDSCHEID, que afirmava que a prescrição “continua a decorrer inalterada” mesmo que, por sucessão jurídica, novo titular ou devedor ingresse na relação (Diritto delle Pandette, vol. I. Trad. Fadda e Bensa. Torino: UTET, 1925, p. 381). No direito brasileiro, ainda sob a égide do CC1916, lecionava Câmara LEAL: “A prescrição tem uma continuidade indivisível: os seus efeitos ativos ou passivos não sofrem solução de continuidade pela substituição de prescribentes ou titulares, em virtude da sucessão universal ou singular” (Da prescrição e da decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 48).
[14] Ilustrativamente, cf. STJ, REsp. 1.842.120, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20 out. 2020.
[15] Sobre a referida taxatividade e os usos contemporâneos da expressão “actio nata”, permita-se, ainda uma vez, remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Problemas atuais de prescrição extintiva no direito civil, cit., item 2.
[16] Afirma-se, em geral, que, na sub-rogação, o direito se transfere ao novo titular “com todas as suas qualidades e defeitos”, pois o devedor não pode ser despojado de seus meios de defesa em decorrência de uma transmissão para a qual não concorreu com sua vontade (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português, vol. II, t. IV. Coimbra: Almedina, 2010, p. 230). Na doutrina brasileira, no mesmo sentido, cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. II. Rio de Janeiro: GEN, 2020, segundo o qual “adquire o sub-rogatário o próprio crédito, tal qual é” e, “portanto, suporta as exceções que o sub-rogante teria de enfrentar”.