#55. Na pauta do STJ: penhora de cotas de fundo de investimento
STJ ratifica que a penhora de valor mobiliário não transfere a sua titularidade ao credor e, tampouco, os riscos, os direitos e as obrigações dela decorrentes
O caso concreto
Em outubro de 2022, a Terceira Turma do STJ julgou o RESp 1885119/RJ, em que se discutiam os fatos que seguem. Fundação dos Economiários Federais – FUNCEF foi condenada ao pagamento de valores devidos à Sociedade Médico Hospitalar Ltda – SMH por serviços médicos prestados a seus beneficiários. Em maio de 2009, realizou-se a penhora de 1.274,48 cotas de titularidade da FUNCEF no BNP Paribas Chamonix Fundo de Investimento Multimercado – posteriormente incorporado pelo Sevilla Fundo de Investimento Multimercado –, que corresponderiam à quantia reputada devida ao tempo da penhora, ou seja, de R$ 282.381,96. FUNCEF impugnou referido valor, e verificou-se que o débito seria, em verdade, de R$ 210.409,27, havendo um excesso a ser restituído. Do valor total que as cotas tinham ao tempo da constrição, portanto, 74,52% eram devidos à SMH e 25,48%, ao FUNCEF.
Ocorre que as cotas foram resgatadas apenas em 2015, quando os respectivos valores foram, enfim, transferidos para conta judicial. Como a quantia obtida superava o valor apurado à época da penhora em razão da valorização das cotas, o juízo determinou a expedição de mandados de pagamento considerando a mesma proporção matemática existente entre o valor originalmente penhorado e as quantias então devidas a cada uma das partes: R$ 391.060,12 (74,52%) em favor do exequente e R$ 133.711,92 (25,48%) em favor do executado.
FUNCEF interpôs agravo de instrumento contra a decisão, ao argumento de que (i) pertenceriam a ela os ganhos auferidos no período anterior ao resgate das cotas, e (ii) SMH não poderia receber mais do que fazia jus na execução, sob pena de excesso. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desproveu o recurso. Entendeu-se que a exequente, ao aceitar a constrição sobre cotas de fundos de investimento, teria passado “a integrar aquele negócio jurídico, assumindo a condição de investidora e se sujeitando aos riscos inerentes, ao menos em relação às cotas representativas do seu verdadeiro crédito, de sorte que tem direito ao valor que as mesmas alcançaram em 21/10/2015”.[1] Diante de referida decisão, FUNCEF interpôs recurso especial.
A decisão do STJ
Os Ministros da Terceira Turma do STJ acordaram, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial.[2] Nos termos do voto do Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, os riscos inerentes ao fundo de investimento são suportados pelos titulares de suas cotas, não atingindo a esfera jurídica de terceiros. Com efeito, considerando-se que “a penhora em si confere ao exequente o mero direito de preferência e de sequela”, reconheceu-se que
a parte executada permanece na condição de cotista (titular desses bens incorpóreos, portanto), enquanto não realizado o resgate e o efetivo depósito judicial do valor respectivo, bem como a adjudicação ou a arrematação, de modo que não se revela possível transferir ao exequente a álea existente sobre o valor dessas cotas, seja porque a penhora, por si só, não o torna proprietário e, via de consequência, cotista, seja porque a execução tem como vetor precípuo a satisfação integral do crédito, que pode ficar comprometido em decorrência dos riscos repassados ao credor. Nessa trilha cognitiva, não se submetendo o exequente aos ônus decorrentes do bem penhorado, também não há que se cogitar de lhe serem repassados os bônus.[3]
De fato, fundos de investimento são “veículos de investimento, destinados a reunir os recursos de investidores sob os cuidados de um gestor profissional, que, em conformidade com o regulamento aprovado, se encarrega de aplicá-los em determinados ativos, com vistas a propiciar rendimento ao capital”.[4] As cotas do fundo de investimento se qualificam como valor mobiliário,[5] e correspondem a frações do patrimônio do fundo, nos termos do art. 14 da Resolução CVM 175, de 23 de dezembro de 2022. Os cotistas são, portanto, titulares de fração ideal da universalidade patrimonial autônoma administrada por terceiro e destinada à consecução da finalidade do fundo.[6]
Como titulares de uma parcela da universalidade, os efeitos oriundos da elasticidade do seu conteúdo são atribuídos aos cotistas, que suportam as perdas decorrentes da sua redução e/ou desvalorização, assim como auferem os benefícios provenientes do seu aumento e/ou valorização. Dito de outro modo: os riscos da atividade desenvolvida regularmente pela administradora na realização da finalidade do fundo são suportados exclusivamente pelos cotistas. E é precisamente por isso que a Resolução CVM 175/2022 exige que o cotista, quando do seu ingresso no fundo, ateste, por meio de um termo de adesão e ciência de risco, que tem ciência dos fatores de risco relativos à sua cota e da inexistência de qualquer garantia contra eventuais perdas patrimoniais que possa sofrer (art. 29, II, “a” e “b”).
Com efeito, ao contrário do que se passa com o dinheiro em espécie, como aquele representado por aplicações financeiras, ou com o dinheiro depositado em conta bancária, em que a constrição recai sobre um valor líquido e certo, as cotas de fundo de investimentos estão sujeitas a variações e a riscos de mercado, de crédito e de liquidez relativos aos ativos financeiros que integram a carteira.[7] Ora, se a penhora não altera a titularidade das cotas, tampouco altera a alocação dos riscos que lhe são intrínsecos, razão pela qual os efeitos da variação do seu valor são suportados pelo cotista até a extinção da sua titularidade com o efetivo resgate.
Por essa razão, no caso em análise, o aumento do valor de mercado das cotas impunha a redução da penhora, nos termos do art. 850 do CPC/2015,[8] a fim de ajustar a constrição ao montante a ser efetivamente adimplido, sob pena de se incorrer em excesso de execução. No entanto, tendo já havido o resgate da totalidade das cotas objeto de constrição, a 3ª Turma do STJ, reformando o acordão recorrido e, em consequência, a decisão de primeira instância agravada, limitou o valor a ser levantado pelo exequente àquele constante do título executivo devidamente atualizado e acrescido dos encargos legais, determinando o repasse do montante excedente ao executado.
A questão jurídica em pauta
A decisão proferida no REsp 1885119/RJ está alicerçada em uma questão jurídica elementar: a penhora de cotas de fundo de investimento não confere ao exequente a qualidade de cotista. E se é assim, evidentemente, todos os riscos inerentes à cota correm por conta do seu titular até o resgate, não aproveitando nem prejudicando o credor. Note-se que o reconhecimento de que a penhora não transfere a titularidade do valor mobiliário ao exequente serviu de premissa para a solução de diversas controvérsias relativas à penhora de valores mobiliários, dentre as quais se destacam:
a penhora de cotas de sociedade limitada não ofende o princípio da affectio societatis, justamente por não importar a inclusão de novo sócio;[9] e
a penhora de ações de sociedade anônima de capital aberto não embaraça o exercício, pelo acionista, dos atos sociais que lhe são próprios, notadamente o direito de votar nas deliberações das assembleias gerais.[10]
Como se constata da decisão em comento bem como das situações acima descritas, nem sempre é preciso mergulhar em elocubrações profundas para resolver controvérsias jurídicas. Não raro, questões que podem parecer complexas e sofisticadas, decorrentes de novos modelos de negócio, são solucionadas a partir de conceitos elementares, por vezes negligenciados pelos operadores do direito. Voltemos, primeiro e sempre, aos elementos.
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] TJRJ, 15ª CC, Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, AI 0042825-90.2019.8.19.0000, j. 29.10.2019.
[2] STJ, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, REsp 1885119/RJ, j. 25.10.2022.
[3] STJ, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, REsp 1885119/RJ, j. 25.10.2022, p. 4 do voto do Relator.
[4] OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento. In. HANSZMANN, Lucas; HERMETO, Lucas (org.). Atualidades em direito societário e mercado de capitais: fundos de investimento. vol. V – edição especial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, p. 13.
[6] É possível que a universalidade patrimonial seja titularizada fiduciariamente com exclusividade pela administradora do fundo, hipótese em que os cotistas são titulares de um direito pessoal de auferir proveito econômico dessa universalidade. É exatamente o que se passa nos Fundos de Investimento Imobiliário e nos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), conforme consta do art. 6º da Lei 8.668/93
[7] A distinção é bem delineada em: STJ, Corte Especial, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, REsp 1.388.642/SP, j. 03.08.2016.
[8] “Art. 850. Será admitida a redução ou a ampliação da penhora, bem como sua transferência para outros bens, se, no curso do processo, o valor de mercado dos bens penhorados sofrer alteração significativa.”
[9] STJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, AgInt no AREsp 2.020.546/SP, j. 27.06.2022; STJ, 3ª T., Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, REsp 1.803.250/SP, j. 23.06.2020. Conforme determina o art. 861 do CPC/2015, penhoradas as cotas, o juiz assinará prazo razoável, não superior a 3 (três) meses, para que a sociedade as ofereça aos demais sócios ou, não havendo interesse dos sócios na aquisição, proceda à liquidação, depositando em juízo o valor apurado, em dinheiro.
[10] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. vol. 2, 2. tir., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 441.