#59. Quando há o inadimplemento antecipado da prestação?
1. Introdução: contexto
Não raro, durante a execução de contratos complexos de longa duração, mesmo antes do advento do termo, circunstâncias diversas evidenciam que a prestação já não pode mais ser realizada ou, podendo sê-lo, já não é mais útil para o credor; a prestação se torna, assim, irrecuperável,[1] a autorizar o credor a desconsiderar o prazo ainda pendente e pleitear imediatamente os remédios cabíveis, a fim de tutelar da forma mais efetiva possível os seus interesses. A situação descrita configura o que se tem designado como inadimplemento antecipado ou, mais tecnicamente, inadimplemento anterior ao termo.[2] Esta coluna se dedica à análise dos suportes fáticos, ou seja, das hipóteses de configuração do inadimplemento antecipado, enquanto os seus efeitos serão o foco de uma futura coluna AGIRE.
2. Suportes fáticos do inadimplemento anterior ao termo
2.1. Comportamento comissivo ou omissivo do devedor que impossibilita o cumprimento da prestação
O primeiro possível suporte fático do inadimplemento antecipado é o comportamento omissivo ou comissivo do devedor que impossibilita o cumprimento da prestação. O conceito de impossibilidade a ser adotado é o técnico-jurídico, conforme já abordado na AGIRE #5. Diversas são as situações em que a prestação pode se tornar impossível antes do termo.
Com efeito, a impossibilidade pode resultar da violação de deveres diversos pelo devedor, mesmo decorrentes da boa-fé objetiva. Um exemplo bastante singelo é a hipótese em que, após celebrar contrato de compra e venda de bem móvel infungível, mas antes do termo ajustado para a tradição, o vendedor deixa de adotar os atos de conservação e cuidado e a coisa vem a perecer. De fato, nos termos do art. 492 do Código Civil, de regra, “até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor”, o que lhe impõe praticar todos os atos necessários razoáveis para a sua conservação até que se dê a tradição no termo contratado.
É possível, ainda, que o inadimplemento anterior ao termo reste configurado quando o devedor retarda a execução de atos indispensáveis ao cumprimento da obrigação que lhe incumbe e sobrevém algum evento que acaba por impossibilitar a prestação. Referidos atos se incluem no inteiro ciclo da atividade de adimplemento do devedor, e pouco importa, sob o ponto de vista econômico-funcional, se se trata realmente de ato preparatório ou de ato de execução final.[3] O que importa para a análise ora empreendida é que a prestação se torne impossível de ser adimplida – ainda que por força de evento fortuito – durante o atraso imputável ao devedor na execução de qualquer desses atos.
Pense-se no contrato de compra e venda de certo animal infungível – um cavalo detentor do maior rating do turfe mundial –, em que fica ajustado que o vendedor deverá entregá-lo ao comprador em termo determinado. O cavalo deve ser transportado por navio, via Canal de Suez. Para que o vendedor cumpra o prazo ajustado, deve embarcar o animal com certa antecedência, mas não o faz, despachando-o em data já próxima ao termo final, insuficiente para a observância do prazo contratado. Ocorre, todavia, que outro navio encalha no Canal de Suez, impedindo a passagem de qualquer embarcação por alguns dias; a permanência do cavalo na embarcação por mais tempo do que o programado acaba resultando na sua morte. No exemplo fictício,[4] a prestação se impossibilitou porque o devedor retardou o embarque do cavalo; houvesse o vendedor observado o cronograma necessário a cumprir o termo ajustado para a entrega do animal e o despachado dias antes, o navio não teria ficado retido, e o animal não teria perecido. Foi em razão do atraso, imputável ao devedor, na execução dos atos necessários ao adimplemento que a prestação se tornou impossível antes do termo, ainda que por um evento fortuito (bloqueio do Canal de Suez por outro navio), pelo que resta configurado o inadimplemento anterior ao termo. De outro lado, solução diversa se imporia caso o devedor demonstrasse que o resultado sobreviria ainda que não tivesse retardado o envio do animal porque, mesmo assim, o navio teria ficado retido. Cuida-se de aplicação da mesma ratio prevista no art. 399 do Código Civil.[5]
A impossibilidade da prestação pode ainda decorrer do descumprimento de obrigações necessárias à execução da prestação principal. É o que se passa quando, antes do termo ajustado para o adimplemento, ao devedor são negadas aprovações que se afiguravam imprescindíveis para a execução da prestação contratada e cujos riscos relativos à obtenção lhes foram expressamente imputados, tornando impossível a própria prestação. Por óbvio, outra poderá ser a solução, a depender do concreto regulamento contratual.
2.2. Comportamento comissivo ou omissivo do devedor que inviabiliza o adimplemento no termo, a ensejar perda de utilidade da prestação para o credor
Serve ainda de suporte fático ao inadimplemento anterior ao termo o comportamento comissivo ou omissivo do devedor que inviabiliza o adimplemento no termo, a ensejar perda de utilidade da prestação para o credor. Trata-se de hipótese em que se constata, desde já, que o devedor incorrerá inquestionavelmente em mora, em razão da qual a prestação se tornará, também inquestionavelmente, inútil para o credor.
Impõe-se avaliar se a prestação, em razão da mora, de fato, tornar-se-á inútil ou se, por mero capricho, o credor se nega a aguardar o adimplemento da prestação com atraso. A configuração do inadimplemento antecipado depende, além da verificação da conduta do devedor, da produção de efeito específico: a inutilidade da prestação.
Alguns critérios devem nortear a avaliação da inutilidade. Um deles é a boa-fé objetiva: deve-se analisar se a prestação, em razão da mora já anunciada, não oferecerá mais para o credor aquela utilidade que se destinava a oferecer, o que não encerra um juízo arbitrário,[6] mas pautado no concreto regulamento de interesses e no contexto em que o contrato é celebrado.
Ao lado do critério da boa-fé objetiva, deve-se aferir o interesse do sinalagma. Conforme leciona Judith Martins-Costa, a inutilidade pode ser mensurada, objetivamente, “à vista de suas repercussões no equilíbrio entre as prestações; na funcionalidade do contrato, implicada no concreto programa negocial, que organiza os riscos e vantagens, os custos e os benefícios de cada parte; na relação de proporcionalidade”[7] entre prestação e contraprestação. Com efeito, em contrato bilateral, é possível que a mora rompa o nexo de sinalagmaticidade entre as prestações e faça com que o credor já não tenha mais interesse no cumprimento recíproco do contrato, isto é, no intercâmbio das prestações.[8] Assim, em contrato de compra e venda de unidades imobiliárias em construção, o considerável descumprimento do cronograma da obra já não deixa dúvidas de que haverá um tal atraso na entrega do empreendimento que acaba por repercutir no equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Dessa forma, mesmo que ainda não tenha transcorrido todo o prazo para a conclusão do empreendimento, a certeza da mora futura capaz de comprometer o interesse do sinalagma pode conduzir à inutilidade da prestação para o credor e, consequentemente, ao inadimplemento anterior ao termo.
A inutilidade da prestação resta ainda configurada quando há previsão de termo essencial (expressamente ajustado ou decorrente da natureza da obrigação) e o credor atrasa a execução da prestação de tal forma que já resta evidente que não conseguirá adimpli-la no prazo ajustado. Nesse caso, constatando-se desde logo que o devedor não conseguirá observar o termo essencial, configurado está o inadimplemento antecipado.
2.3. Manifestação do devedor de não querer adimplir
Por fim, a manifestação do devedor de não querer adimplir, que pode ser expressa ou tácita, também pode configurar inadimplemento anterior ao termo.
Na manifestação expressa, o devedor declara expressamente que não cumprirá a prestação. É o que se passa quando o incorporador, após celebrar promessa de compra e venda de futuras unidades habitacionais, anuncia aos adquirentes sua desistência de construir o empreendimento após transcorrido o prazo de carência.
A manifestação tácita de não querer adimplir, por sua vez, corresponde às situações em que é possível inferir da conduta do devedor que não cumprirá a obrigação. Dito de outro modo, o devedor demonstra que não adimplirá a obrigação que lhe incumbe comportando-se contrariamente ao adimplemento. Evidentemente, não é necessário que a conduta do devedor denote certeza de que não haverá adimplemento; basta que sua conduta seja incompatível com o padrão de comportamento de quem pretende cumprir a prestação.
Importante notar que a manifestação de não querer adimplir nem sempre configurará efetivamente um inadimplemento anterior ao termo. No mais das vezes, quando se trata de obrigação personalíssima, a recusa (expressa ou tácita) em adimplir configura desde logo inadimplemento antecipado. Isso, porque, mesmo que a prestação ainda seja útil para o credor e possível para o devedor, não apenas o tempo a ser despendido para obrigar o devedor a executá-la especificamente pode comprometer o já mencionado interesse do sinalagma, como a recalcitrância do devedor em executar a prestação personalíssima acaba por tornar impossível não já o seu cumprimento, mas o seu recebimento pelo credor, dada a natureza da prestação.
Por outro lado, cuidando-se de obrigação fungível, deve-se analisar se a declaração do devedor provocou, por exemplo, a inutilidade da prestação, como se passa na hipótese em que se ajusta termo essencial e a declaração é manifestada quando não se afigura mais possível obter a prestação no tempo ajustado, ou ainda nas ocasiões em que a declaração do devedor tenha provocado a eliminação do interesse do credor na prestação. Se o exame do caso concreto indicar que a declaração acarretou a inutilidade da prestação, configura-se o inadimplemento antecipado; se a prestação, a despeito da declaração de não querer adimplir, ainda guardar utilidade para o credor, inadimplemento antecipado não haverá, e o credor poderá adotar outras medidas voltadas à tutela do seu interesse.
3. Notas conclusivas
A exata configuração do inadimplemento se afigura imprescindível em qualquer momento da relação obrigacional, seja antes ou após o advento do termo, sob pena de se adotar contra o devedor medida mais rigorosa do que aquela que se imponha como a legítima consequência de seu comportamento. O inadimplemento anterior ao termo encerra importante instrumento de tutela do credor, e não válvula de escape para que, arrependido do contrato celebrado, aproveite-se de conduta duvidosa do devedor para, sob a falsa alegação de inadimplemento antecipado, resolver a relação obrigacional. Impõe-se ao intérprete, portanto, atenção na análise dos suportes fáticos do instituto, a fim de permitir a produção dos seus respectivos efeitos apenas quando efetivamente configurado o inadimplemento antecipado.
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 102.
[2] Para aprofundamento do tema, confira-se: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
[3] CONTE, Giuseppe. Appunti in tema di mancato compimento dell’attività preparatoria e di risoluzione anticipata del contratto. Rivista del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni. Padova, v. 88, n. 3-4, 1990, p. 165.
[4] Em 2021, o navio Ever Given encalhou e interditou o Canal de Suez, suscitando diversas discussões acerca da teoria das impossibilidades, algumas das quais foram abordadas no texto “O que o navio encalhado em Suez ensina sobre impossibilidade da prestação?”.
[5] “Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.”
[6] BETTI, Emilio. Teoria generale delle obbligazioni. vol. I, Milão: Giuffrè, 1953, p. 105.
[7] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações. vol. V, t. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 256, grifos no original.
[8] ENNECCERUS, Ludwig. Tratado de derecho civil. t. 2. v. I. Tradução Blas Pérez Gonzáles e José Alguer. Barcelona: Bosch, 1944, p. 271.