#6. Autonomia material e autonomia conflitual:
fronteira entre o Direito Privado e o Direito Internacional Privado
por Gustavo Ferraz de Campos Monaco
Um dos possíveis marcos fronteiriços entre o Direito Privado e o Direito Internacional Privado – mas, certamente, não o único – é a questão do exercício da autonomia (e de qual autonomia).
No âmbito do Direito Privado é inegável que as partes possam exercer certa autonomia, nos limites dos permissivos fixados pelo ordenamento local. Desde que este exercício se circunscreva a elementos categoriais derrogáveis ou a elementos acidentais, sem invadir o espaço demarcado para a manifestação dos elementos inderrogáveis, o exercício da autonomia privada é bastante relevante para a fixação dos interesses, dos direitos e dos deveres das partes. Não se deve desconsiderar, ainda, a viabilidade eventual de se proceder à conversão do negócio jurídico
Não obstante, a transposição desse raciocínio para o espaço fenomênico afeto ao Direito Internacional Privado não é muito simples. Em primeiro lugar, porque podem existir entre os ordenamentos jurídicos potencialmente aplicáveis divergências estruturais que transformem o que é inderrogável para um deles em derrogável para o outro. E, em segundo lugar, porque o mecanismo de controle desse exercício se modifica ante negociações que desbordam os limites territoriais de um único Estado.
Fala-se em Direito Internacional Privado, por isso, em autonomia conflitual, caracterizada pela autorização legislativa para que as partes indiquem uma conexão distinta daquela fixada pela norma de conflitos. Era o que se passava na Introdução ao Código Civil, que mandava aplicar uma lei às obrigações, salvo se outra fosse a lei decorrente da vontade das partes. Com efeito, enquanto nas normas substanciais o legislador recorta no mundo dos fatos uma hipótese e lhe atribui uma consequência esperada, acoplando muitas vezes uma sanção para a hipótese de inobservância da consequência devida, nas normas de conflito as partes constantes da norma são bastante diversas. Nelas, o legislador recorta um conceito-quadro, ou seja, um instituto jurídico ou uma grande área do direito e, na segunda parte desta norma, define e impõe um elemento de conexão.
E porque o Direito Internacional Privado seja ramo didático do Direito Público, a vontade do legislador, de ver a situação concreta regida pela lei indicada pela conexão não pode ser, em princípio, desvirtuada. Tanto é assim que a fraude à lei, no Direito Internacional Privado, visa corrigir eventual modificação geográfica maliciosa do elemento que preenche o elemento de conexão, determinando o afastamento da lei fraudante (a que foi obtida de modo fraudulento) e a incidência consequente da lei fraudada (a que seria aplicável e que a parte tentou afastar mediante fraude). Corrige-se, assim, a submissão das circunstâncias a uma lei que não teria sido tomada em consideração pelo Estado, nem pelas partes, uma vez que não efetiva.
Por outro lado, querer transpor o exercício da autonomia privada, típica das relações internas, nas relações privadas internacionais é bastante problemático. Parece, à primeira vista, um aspecto decorrente da relação jurídica que está na base da situação plurilocalizada. Trata-se de um contrato? De um pacto antenupcial? Como estes negócios autorizam, sem grandes dúvidas e salvo raríssimas exceções (como a idade de um dos noivos), o exercício da autonomia privada, as partes poderiam inserir em seus negócios, na posição de cláusulas materiais, as normas jurídicas gerais e abstratas de um ordenamento estrangeiro diverso do que seria indicado como aplicável pelas regras de conflito. E isso porque a internacionalidade da situação não impede nem pode impedir o exercício da autonomia material.
No entanto, o conteúdo negocial deverá sempre passar pelo crivo de um outro e fundamental princípio: o da ordem pública, que se caracteriza por enfeixar os valores fundamentais de um foro.
Quando manejado, o princípio da ordem pública incide sobre as situações da vida em três diferentes níveis ou graus que se diferenciam em razão de três diferentes aspectos que precisam ser considerados: (i) seu âmbito de aplicação; (ii) o agente que o maneja e (iii) os interesses que pode afetar.
No primeiro nível, todas as relações jurídicas são afetadas por considerações de ordem pública e seu manejo é de incumbência principal do legislador, que define marcos gerais e abstratos que admitirão ou não o exercício da vontade, seja esta vontade responsável pela gênese da situação jurídica (vontade genética), seja esta vontade responsável pela regulamentação da relação jurídica (vontade regulatória ou autonomia material). Circunstancialmente, o manejo deste princípio poderá ficar a cargo do julgador (juiz, árbitro), que se debruça sobre as normas legais e, reconhecendo eventual descompasso, adapta-as à realidade circundante, dentre de certos e específicos parâmetros.
No segundo nível, por sua vez, apenas as relações jurídicas com elementos estrangeiros submetidas à lei estrangeira serão escrutinadas pelo decisor, que cotejará os efeitos que serão produzidos pela incidência da norma estrangeira com os valores fundamentais do foro e decidirá, eventualmente, afastar o direito estrangeiro, no todo ou em parte, violando uma legítima expectativa criada pelas partes à luz da regra de conflitos de que a situação concreta seria regida pelo direito estrangeiro.
Já no terceiro nível, apenas as situações consolidadas no exterior passarão pelo crivo da ordem pública, que será manejada agora pelo magistrado responsável pelo reconhecimento de decisões estrangeiras (STJ, em regra), frustrando o exercício de direitos adquiridos no exterior.
Assim, se num negócio jurídico com elementos de estraneidade, as partes fizeram inserir disposições materiais calcadas numa lei estrangeira que não seria a lei aplicável segundo as regras de conflito do foro, estaríamos diante de uma manifestação de autonomia material, controlável pela ordem pública de primeiro nível e que é bastante apegada à realidade do direito substantivo do foro. Quer isto significar que qualquer divergência sensível poderia ser desconsiderada pelo magistrado, porquanto a cláusula assim inserida poderia violar elementos inderrogáveis daquela relação segundo o direito do foro. É verdade que os termos do art. 421-A do Código Civil[1] poderiam minimizar essa intervenção judicial.
Por outro lado, sempre que a norma de conflitos autorizar o exercício da autonomia conflitual e as partes elegerem a lei aplicável, diretamente e sem subterfúgios, o cotejo da lei eleita com os valores fundamentais do foro se dará no segundo nível de incidência da ordem pública, minimizando claramente o espaço interventivo do Judiciário do foro. E isso porque o exercício da autonomia conflitual desloca a relação jurídica de uma conexão geral e supletiva para outra específica e manifesta.
Restaria, todavia, discutir se o Direito Internacional Privado precisaria autorizar o exercício da autonomia conflitual de modo explícito ou se bastaria uma abertura principiológica para que esse exercício pudesse se realizar. Mas isso fica para uma eventual segunda coluna.
Gustavo Ferraz de Campos Monaco
Professor Titular de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da USP e Professor Doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
[1] Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)