#86. Cláusulas resolutivas ipso facto da insolvência: validade e eficácia
A AGIRE #77 tratou da natureza jurídica das cláusulas resolutivas ipso facto da insolvência. O foco da coluna de hoje é questão ainda mais tormentosa: a validade e a eficácia de referidas cláusulas. Antes de passar ao tema, adverte-se o leitor que a coluna, longe de pretender solucionar a intrincada controvérsia, é um convite à reflexão sobre questão da maior relevância prática e cuja solução requer cuidadosa análise dogmática.
O ponto de partida são os arts. 49, § 2º[1] e 117, caput[2] da Lei nº 11.101/2005 – Lei de Recuperação de Empresas e Falência (“LREF”) –, que dispõem, respectivamente, que as obrigações anteriores ao deferimento da recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas, e que os contratos bilaterais não se resolvem automaticamente pela falência. A análise da validade e da eficácia da cláusula ipso facto será realizada, em primeiro lugar, no contexto de contratos paritários e, na sequência, no âmbito de contrato de adesão.
1. Contratos paritários
Tratando-se de contratos paritários, celebrados entre partes sofisticadas e com proporcional poder de barganha, identificam-se duas grandes linhas de pensamento:[3] uma que reputa a cláusula inválida, e outra que sustenta a validade, mas entende possível o reconhecimento de sua ineficácia em determinadas circunstâncias.
1.1. Invalidade
A tese da invalidade da cláusula ipso facto se baseia, sobretudo, em dois principais argumentos: primeiro, o critério da especialidade da LREF, que teria tratado dos contratos bilaterais da recuperanda e do falido a partir de “critérios particulares com o propósito nítido de apartá-lo da disciplina dos contratos bilaterais do Direito comum”;[4] e segundo, a alegada vedação de natureza cogente constante dos arts. 49, § 2º e 117 da LREF, que impediriam de forma absoluta a resolução em caso de recuperação judicial ou falência por iniciativa do credor. Em favor deste último argumento, sustenta-se, dentre diversos outros fundamentos, que a vedação com caráter cogente à resolução:
promoveria a própria função da recuperação judicial (art. 47)[5] e da falência (art. 75)[6]: enquanto o art. 49, § 2º criaria condições para a recuperação da empresa, o art. 117, ao conferir ao administrador judicial efetivo poder-dever de decidir sobre o cumprimento dos contratos bilaterais, permitiria a maximização do valor dos ativos liquidados, a promover o interesse da coletividade de credores;[7]
impediria que um contratante, com maior poder de negociação, criasse ex ante válvula de escape à sua participação na via concursal e obtivesse, assim, “vantagem ilegítima em detrimento dos demais credores”, liberando-se de fornecer a prestação devida à recuperanda ou ao falido a “preço zero”,[8] isto é, sem que se lhe imponha qualquer desembolso, seja a título de multa penitencial ou mesmo de perdas e danos; e
atenuaria o poder de barganha de contratante essencial à atividade do devedor, que poderia, já no momento de crise, sob a ameaça de se valer do direito que lhe confere a cláusula, buscar obter vantagens em prejuízo dos demais credores.[9]
1.2. Validade, mas com possível ineficácia em concreto
De outro lado, encontram-se autores que sustentam a validade da cláusula resolutiva ipso facto, por entender inexistir vedação legal expressa à sua previsão.[10] A seu juízo, os arts. 49, § 2º e 117, da LREF apenas determinariam que a recuperação judicial e a falência não são circunstâncias que conduzem à resolução automática do contrato, ao contrário do que se passa, por exemplo, na hipótese de impossibilidade da prestação não imputável ao devedor (arts. 234, 238 e 248, CC). Isso não impediria a pactuação de cláusula resolutiva a partir do livre exercício da autonomia privada das partes. Nesse cenário, o art. 117 apenas conferiria ao administrador judicial o poder-dever de decidir sobre o cumprimento dos contratos bilaterais quando ausente cláusula contratual livremente pactuada;[11] o dispositivo contemplaria “nova hipótese de resolução: a resolução no interesse da massa falida e por inciativa do síndico”.[12]
Sustenta-se, ademais, que, apesar de a LREF ser lei especial, não se poderia blindá-la do alcance das demais fontes normativas: a aplicação do direito não é atividade que se realize de forma setorizada, no âmbito de supostos microssistemas, mas no contexto do ordenamento complexo e unitário. Por essa razão, seria preciso ler os arts. 49, § 2º e 117 em cotejo também com o Código Civil, que prestigiaria a autonomia privada, calcada na livre iniciativa, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, CRFB). E a interpretação sistemática infirmaria a tentativa de hierarquizar em abstrato os interesses da recuperanda e dos credores da massa falida em detrimento dos interesses do credor individual que pactuou livremente em seu favor cláusula ipso facto, pelo que não seria possível extrair dos referidos dispositivos uma vedação à sua celebração.
Afirmada a validade da cláusula ipso facto, reconhece-se, todavia, a possibilidade de, no caso concreto, afastar-se a sua eficácia justamente com base na ponderação dos interesses envolvidos, mantendo-se a execução do contrato sempre que resolução puder causar grave lesão aos interesses da recuperanda ou dos credores do falido,[13] como pode ocorrer, por exemplo, quando se está diante de um “contrato relevante”.[14]
2. Contratos de adesão
Aos contratos de adesão celebrados no âmbito de relações civis e empresariais aplicam-se os arts. 423 e 424 do Código Civil. Para os fins desta coluna, importa o disposto no art. 424, segundo o qual
Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.
A dificuldade do dispositivo reside em definir o que é “direito resultante da natureza do negócio”.
Lançando mão das lições de Antônio Junqueira de Azevedo sobre os planos do negócio jurídico, classificam-se os elementos de existência em (i) gerais, assim entendidos os comuns a todo e qualquer negócio jurídico; (ii) categoriais, que são próprios de cada tipo negocial; e (iii) particulares, que são apostos expressamente pelas partes no concreto negócio celebrado.[15] Os elementos categoriais, por sua vez, podem ser essenciais, pois “servem para definir cada categoria de negócio”, ou naturais, pois defluem da natureza do negócio, mas podem ser afastados pela vontade das partes sem alterar o tipo.[16]
Nesse cenário, há de se compreender direito resultante da natureza do negócio como aquele decorrente de elemento categorial. Com efeito, entende o legislador que referidos elementos só podem ser afastados pelo livre exercício da autonomia privada, razão pela qual, ante a assimetria de poder negocial entre as partes em contrato de adesão, fulmina de nulidade a renúncia antecipada do aderente imposta pelo predisponente.
Por conseguinte, a despeito da posição que se adote acerca da validade da cláusula resolutiva ipso facto em contratos paritários, no âmbito de contratos de adesão a invalidade em face do aderente resultaria, ao menos, do art. 424. Isso, porque seria possível sustentar ser da natureza dos contratos bilaterais que eles não se resolvem pela falência (art. 117, LREF) e que continuam a ser regidos pelas condições originalmente contratadas ou definidas em lei em caso de recuperação judicial (art. 49, § 2º, LREF), o que conferiria ao devedor em crise o direito de prosseguir com a execução dos seus contratos, afigurando-se nula a renúncia antecipada do aderente a referido direito.
3. Notas finais
No que tange aos contratos paritários, a análise das duas correntes revela que a controvérsia existente decorre das premissas diferentes sobre as quais se assentam: enquanto a primeira privilegia os interesses da recuperanda e dos credores do falido, sem concessão aos interesses do credor individual em favor de quem se pactuou a cláusula resolutiva ipso facto, a segunda é deferente à autonomia privada e ao quanto pactuado pelas partes, mas admite, em concreto, a prevalência dos interesses da recuperanda e dos credores do falido presentes certas circunstâncias.
Em relação aos contratos de adesão, constata-se que o legislador da LREF assegurou ao falido (por decisão do administrador judicial) e à recuperanda o direito de prosseguir com a execução dos contratos. Trata-se, com efeito, de elemento categorial do contrato bilateral, razão pela qual é nula a cláusula resolutiva ipso facto predisposta em contrato de adesão em face do aderente, por força do art. 424, CC.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 2º As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.
[2] Art. 117. Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do Comitê.
[3] Não se ignora que a classificação proposta é reducionista, já que não contempla as diversas compreensões acerca do tema e não revela as variadas nuances que a discussão suscita. Entende-se, todavia, que para os fins desta coluna, a simplificação se justifica.
[4] Jorge Lobo, Efeitos da concordata e da falência em relação aos contratos bilaterais do concordatário e do falido, Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo: Malheiros Editores, a. XXXVI, abr./jun. 1998, p. 42.
[5] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
[6] Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a:
I - preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa;
II - permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e
III - fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.
[7] Deborah Kirschbaum, Cláusula resolutiva expressa por insolvência nos contratos empresariais: uma análise econômico-jurídica, Revista Direito GV, v. 2, n. 1, jan./jun. 2006, p. 38. Marcelo Barbosa Sacramone, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência, 2. ed., São Paulo: Saraiva Jur, 2021, p. 520-521; Cássio Cavalli, Os efeitos da recuperação judicial sobre os contratos em curso: a nulidade da cláusula ipso fato e limites à arbitrabilidade objetiva, eBook Kindle, 2023, p. 6.
[8] Deborah Kirschbaum, Cláusula resolutiva expressa por insolvência nos contratos empresariais: uma análise econômico-jurídica, Revista Direito GV, v. 2, n. 1, jan./jun. 2006, p. 41. Confira-se, também: Cássio Cavalli, Os efeitos da recuperação judicial sobre os contratos em curso: a nulidade da cláusula ipso fato e limites à arbitrabilidade objetiva, eBook Kindle, 2023, p. 13-14.
[9] Deborah Kirschbaum, Cláusula resolutiva expressa por insolvência nos contratos empresariais: uma análise econômico-jurídica, Revista Direito GV, v. 2, n. 1, jan./jun. 2006, p. 46.
[10] Sob a égide da legislação anterior, esse era o entendimento de Trajano de Miranda Valverde (Comentários à Lei de Falências, atualizado por J.A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos, v. 1, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 298) e Carvalho de Mendonça (Curso de direito comercial: direito de empresa, v. 3, 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 233).
[11] Fábio Ulhoa Coelho, Comentários à nova Lei de Falências e da Recuperação de Empresas, 2. ed. rev., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 317.
[12] Milena Donato Oliva, Do negócio fiduciário à fidúcia, São Paulo: Atlas, 2014, p. 42-43.
[13] Micaela Barros Barcelos Fernandes, Distinção entre a condição resolutiva e a cláusula resolutiva expressa: repercussões na falência e na recuperação judicial, Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 20, abr./jun. 2019, p. 205. Sobre alguns parâmetros para a realização da ponderação, confira-se: Victor Willcox, A cláusula resolutiva expressa ipso facto e a crise da empresa: parâmetros para exame da legitimidade da resolução do contrato em caso de insolvência do contratante, Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 13, jul./set. 2017, p. 214 ss.
[14] Sobre a noção de “contrato relevante”, veja-se Deborah Kirschbaum, Cláusula resolutiva expressa por insolvência nos contratos empresariais: uma análise econômico-jurídica, Revista Direito GV, v. 2, n. 1, jan./jun. 2006, p. 40.
[15] Antônio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 30-39.
[16] Antônio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 34.