# 9. A convenção de arbitragem como negócio jurídico: brevíssimas reflexões
por Carmen Tiburcio
Tratando-se de forma de resolução privada de litígios patrimoniais disponíveis entre partes capazes, a arbitragem apresenta evidentes e numerosos pontos de contato com o direito privado. No mais das vezes, as questões de mérito a serem decididas pelos árbitros envolvem a aplicação de normas de direito privado. Há, contudo, um outro plano de interação entre a teoria do direito privado e a teoria da arbitragem que merece ser explorado. Trata-se do recurso à teoria do negócio jurídico para análise do regime legal da convenção de arbitragem. O ponto é objeto da pequena reflexão que segue, cuja finalidade, muito longe de exaurir o tema, consiste exclusivamente em instigar a reflexão crítica do próprio leitor.
A título preliminar, convém mencionar que a proposição de que a convenção de arbitragem é um negócio jurídico deve ser vista fundamentalmente como um instrumento de análise e não como uma qualificação jurídica rígida. Notadamente em arbitragens internacionais, potencialmente em contato com sistemas jurídicos que não apresentam similar perspectiva, a qualificação atribuída à cláusula compromissória e ao compromisso arbitral pode variar, variando também seus efeitos jurídicos e as consequências, por exemplo, de uma convenção defeituosa, isso sem prejuízo de termos (e.g., defeitos) típicos da teoria do negócio jurídico. Feito esse registro, essas variações não tornam menos produtiva a tarefa de analisar a convenção de arbitragem pelo prisma da teoria dos negócios jurídicos.
Fugindo das sempre controvertidas questões que se põem no plano da existência dos negócios jurídicos, a breve reflexão que segue exemplifica como a teoria do negócio jurídico pode contribuir em discussões frequentes e fundamentais no curso de procedimentos arbitrais. A referência aqui proposta diz respeito à relação entre arbitrabilidade objetiva e extensão objetiva da convenção de arbitragem.
A propósito do tema, a teoria do negócio jurídico é uma ferramenta metodológica eficiente para ressaltar uma nuance – às vezes acidentalmente, às vezes propositalmente – apagada por advogados e/ou árbitros. Sob tal perspectiva, poder-se-ia dizer que a arbitrabilidade objetiva corresponde à noção de objeto lícito. Vale dizer: é a amplitude de matérias sob a jurisdição dos árbitros conferida (ou melhor, reconhecida em tese) pelo ordenamento jurídico que, no caso do Brasil, abrange somente os direitos patrimoniais disponíveis. Uma cláusula compromissória que convencione a arbitragem como meio de solução para disputas envolvendo a filiação, por exemplo, tem um objeto ilícito. É, portanto, inválida.
Questão diferente diz respeito à extensão objetiva da convenção de arbitragem. Nesse segundo caso, a questão é saber a amplitude do consentimento das partes com a arbitragem. Não se pergunta, neste segundo caso, o que as partes poderiam em tese submeter à arbitragem (isto é, o que constitui um objeto lícito), mas o que as partes efetivamente atribuíram à jurisdição arbitral (isto é, qual foi a extensão do seu consentimento).
A diferenciação delineada a partir da teoria do negócio jurídico é útil à medida que torna inadmissível argumento frequentemente formulado nos seguintes termos: tal questão é arbitrável, por isso está abrangida pela convenção de arbitragem firmada pelas partes. A partir da perspectiva da teoria do negócio jurídico, a convenção conceitual do argumento fica clara.
O que se vem de dizer não deve, de modo algum e em nenhuma extensão, ser interpretado como uma defesa de interpretação restritiva da convenção de arbitragem. A questão sobre os cânones de interpretação e as presunções que devem operar em casos de dúvida não é o que se discute aqui, assim como não se analisa aqui a duvidosa funcionalidade de cindir o julgamento de controvérsias, atribuindo parte do litígio a um tribunal estatal e parte do litígio a um tribunal arbitral.
O ponto aqui é outro, bem mais singelo. A saber: incentivar o leitor a utilizar a perspectiva do direito privado para refletir sobre temas ligados à arbitragem (o que se diz sem prejuízo do convite a pensar sobre o instituto a partir de outras perspectivas igualmente produtivas, como a do direito internacional privado, do direito processual, do direito constitucional, etc.). Dito de modo mais explícito, as reflexões são um convite a acompanhar a newsletter AGIRE - Direito Privado em Ação, indicando ao leitor mais um benefício da leitura de textos sobre a teoria do direito privado, com a esperança de que a potencial aplicação da perspectiva civilista à arbitragem siga presente no horizonte do leitor ao longo da leitura desta e das próximas edições. Boa leitura!