#119. Na pauta do STJ: vencimento antecipado e termo a quo da prescrição
O caso concreto
Em fevereiro de 2015, as devedoras celebraram com a Caixa Econômica Federal contrato de mútuo e firmaram cédula de crédito bancário no valor de R$ 45.060,27. Ajustou-se que o pagamento poderia se dar em 36 parcelas mensais e consecutivas de R$ 1.899,40, vencendo-se a primeira em 18/03/2015 e a última, em 18/02/2018. Para o que interessa a estes comentários, a cláusula sétima do contrato estabeleceu a possibilidade de o credor considerar vencida antecipadamente a dívida nos seguintes termos:
“Cláusula Sétima – Do Vencimento antecipado
Além dos casos previstos em lei, independente de notificação extrajudicial ou judicial, são motivos para o vencimento antecipado da dívida e imediata execução desta Cédula:
a) atraso no pagamento das prestações, inclusive por insuficiência de saldo na conta corrente autorizada para débito, indicada no item 2, ou infringência de qualquer outra obrigação prevista nesta Cédula; (...)”.
As devedoras inadimpliram a parcela vencida em 18/05/2015 bem como todas as subsequentes.
Em janeiro de 2021, a Caixa Econômica Federal ajuizou ação de execução de título executivo extrajudicial perante a 24ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo, cobrando o saldo devedor com os encargos contratualmente previstos, totalizando R$ 214.088,00. Em sede de exceção de pré-executividade, as executadas aduziram, dentre outros argumentos, que a dívida estaria prescrita desde 18/05/2018, porque: (i) às cédulas de crédito bancário seria aplicável o prazo prescricional de três anos, previsto nos arts. 44 da Lei nº 10.931/2004,[1] 70 da Lei Uniforme de Genebra[2] e 206, § 3º, VIII, do Código Civil;[3] e (ii) em razão do vencimento antecipado, o termo inicial do prazo prescricional seria a data do primeiro inadimplemento, ocorrido em 18/05/2015; subsidiariamente, pleitearam o reconhecimento de que o termo a quo da prescrição se verificara com o vencimento de cada parcela inadimplida.
Em setembro de 2021, a 24ª Vara Cível Federal de São Paulo rejeitou a exceção de pré-executividade, entendendo que: (i) o prazo prescricional aplicável é o quinquenal, pois se trata de dívida líquida, tal como previsto no art. 206, § 5º, I, do Código Civil;[4] e (ii) “em contrato de mútuo, mesmo diante do vencimento antecipado da dívida, permanece inalterado o termo inicial do prazo da prescrição, no caso, o dia do vencimento da última parcela”.[5]
Irresignadas, as devedoras interpuseram agravo de instrumento reafirmando o quanto aduzido anteriormente, que foi desprovido pela 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.[6] Sobreveio, então, Recurso Especial.
A decisão do STJ
Em agosto de 2023, o Ministro João Otávio Noronha, em decisão monocrática, negou seguimento ao Recurso Especial, sob o argumento de que o acórdão iria ao encontro do entendimento consolidado no STJ, segundo o qual, na cédula de crédito bancário, o “termo inicial da prescrição é o dia de vencimento da última parcela, e não o do vencimento antecipado da dívida”,[7] atraindo a aplicação do enunciado da Súmula nº 83 do STJ.[8] As devedoras interpuseram Agravo Interno.
A Quarta Turma negou provimento ao recurso em abril de 2024, ratificando que “o vencimento antecipado da dívida não modificava o início da fluência do prazo prescricional, que permanecia o termo indicado no contrato – o dia do vencimento da última parcela”,[9] de modo que, no caso concreto, o prazo prescricional da “pretensão exequente não havia transcorrido no momento do ajuizamento da ação (junho de 2018), pois o termo inicial do prazo prescricional se deu em fevereiro de 2018 (vencimento do CCB), mesmo considerando o prazo de 3 anos apontados pela parte agravante”.
Breves considerações sobre o tema
A decisão em comento afastou a ocorrência da prescrição sob dois argumentos: (i) o vencimento antecipado não altera o termo a quo do prazo prescricional; e (ii) o termo inicial do prazo prescricional nos contratos de mútuo é o vencimento da última parcela do valor total devido, e não o vencimento de cada parcela. As justificativas para cada um dos argumentos remetem a decisões anteriores da Corte, e passam a ser analisadas a seguir.
(i) inalterabilidade do prazo prescricional diante do vencimento antecipado
Sobre o tema, a 3ª Turma já afirmou, no REsp n. 1.523.661/SE, que o vencimento antecipado da dívida, “ao possibilitar ao credor a cobrança de seu crédito antes do vencimento normalmente contratado, objetiva protegê-lo de maiores prejuízos que poderão advir da mora do devedor, sendo um instrumento garantidor das boas relações creditórias, revestindo-se de uma finalidade social. É, portanto, uma faculdade do credor e não uma obrigação, de modo que pode se valer ou não de tal instrumento para cobrar seu crédito por inteiro antes do advento do termo ordinariamente avençado, sendo possível, inclusive, sua renúncia no caso do afastamento voluntário da impontualidade pelo devedor (arts. 401, I, e 1.425, III, do CC). O vencimento antecipado da dívida livremente pactuado entre as partes, por não ser uma imposição, mas apenas uma garantia renunciável, não modifica o início da fluência do prazo prescricional, prevalecendo, para tal fim, o termo indicado no contrato (arts. 192 e 199, II, do CC)”.[10]
De fato, dúvidas não há de que o vencimento antecipado encerra proteção aos direitos do credor. A concessão de prazo para pagamento pressupõe a confiança de que o devedor cumprirá a prestação que lhe incumbe. Aliás, conforme aponta João Calvão da Silva, a própria celebração do contrato requer, por si só, confiança do credor no devedor, “na sua vontade e capacidade de cumprir a prestação a que se vincula. O credor acredita no normal desenvolvimento da relação, segundo a vontade das partes e a função económica tida em vista no momento inicial, a culminar no cumprimento”.[11] Com efeito, eventuais dúvidas quanto à possibilidade de o devedor prestar no termo pactuado, por certo, obstaculizariam a concessão do benefício.
Nessa direção, sobrevindo incerteza dessa natureza, afirma Carvalho Santos, o devedor “não pode mais merecer essa confiança, não pode subsistir o prazo, pressupondo-se subentendido que o devedor, ao contratar, houvesse feito essa ressalva natural”.[12] Tanto é que o legislador, no art. 333 do Código Civil,[13] por entender haver fundados motivos para desconfiança diante da redução significativa da “possibilidade de recebimento, se se fosse aguardar até o termo final”,[14] conferiu ao credor o direito de cobrar antecipadamente a dívida em caso de falência do devedor ou concurso de credores, de penhora em execução por outro credor dos bens hipotecados ou empenhados, ou de insuficiência das garantias oferecidas sem o reforço exigido. Além das hipóteses legais, as próprias partes podem convencionar causas adicionais de vencimento antecipado, por meio do exercício legítimo da autonomia privada.[15]
A possibilidade de considerar a dívida vencida e exigível antes do termo é benefício conferido (legal ou contratualmente) ao credor, que poderá não o exercer, deixando de cobrar desde logo o quanto devido. Nessa hipótese, o termo a quo da prescrição não se altera porque vencimento antecipado não houve, a despeito da ocorrência do evento que confere ao credor o direito de cobrar antes de vencido o prazo estipulado.
Mais complexa, todavia, é a hipótese de haver efetivamente o vencimento antecipado, seja por escolha do credor (mediante interpelação do devedor para pagamento do saldo da dívida), seja por se entender que ocorreu de forma automática por previsão contratual. Considerar que o termo a quo da prescrição continua a ser aquele contratualmente ajustado, na linha do STJ, conduz à seguinte reflexão: como compatibilizar referido entendimento com o art. 189 do Código Civil, segundo o qual “[v]iolado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”?
(ii) termo inicial do prazo prescricional nos contratos de mútuo com pagamento parcelado
De acordo com o STJ, em obrigação de execução diferida na qual se estabeleça o pagamento em prestações, consecutivas e mensais, o termo inicial da prescrição é a data ajustada para o pagamento da última parcela devida. A solução é diversa daquela aplicável às obrigações de trato sucessivo, em que o termo inicial da prescrição é o vencimento de cada prestação individualmente considerada. Conforme também explicitado no REsp n. 1.523.661/SE, a distinção de tratamento decorreria do fato de, na obrigação de execução diferida, “a obrigação [ser] única (de pagamento do valor emprestado), que somente se desdobrou em prestações repetidas para facilitar o adimplemento pelo devedor”, enquanto na obrigação de trato sucessivo, “são diversas obrigações que se renovam periodicamente”.[16] Referido entendimento é amplamente adotado pelas 3ª e 4ª Turmas do STJ.[17]
Há, todavia, divergência em doutrina. Para Humberto Theodoro Júnior, “[s]e se avençou qualquer tipo de prazo para o pagamento, será a partir do vencimento dele, ou das prestações periódicas, se for o caso, que se deverá contar a prescrição”.[18] Entende o autor, portanto, que o inadimplemento de cada parcela no seu vencimento implica a violação do direito subjetivo do credor e faz nascer, individualmente, a pretensão. Referida compreensão conduziria à seguinte conclusão: trate-se de obrigação de execução diferida ou de obrigação de trato sucessivo, dever-se-ia considerar como termo a quo da prescrição a data ajustada para cada pagamento, seja ele correspondente a uma parcela de obrigação única cujo pagamento foi diferido, seja ele referente a obrigações diversas que se renovam periodicamente no tempo.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: vencimento antecipado e termo a quo da prescrição In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 119, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire119>. Acesso em DD.MM.AAAA.
[1] Art. 44. Aplica-se às Cédulas de Crédito Bancário, no que não contrariar o disposto nesta Lei, a legislação cambial, dispensado o protesto para garantir o direito de cobrança contra endossantes, seus avalistas e terceiros garantidores.
[2] Art. 70. Todas as ações contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. As ações ao portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem num ano, a contar da data do protesto feito em tempo útil ou da data do vencimento, se trata de letra que contenha cláusula “sem despesas”.
As ações dos endossantes uns contra os outros e contra o sacador prescrevem em seis meses a contar do dia em que o endossante pagou a letra ou em que ele próprio foi acionado.
[3] Art. 206. Prescreve: §3º Em três anos: VIII - a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial.
[4] Art. 206. Prescreve: § 5º Em cinco anos: I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular.
[5] Processo nº 5001564-05.2021.4.03.6100, 24ª Vara Cível Federal de São Paulo, Juiz Victorio Giuzio Neto, j. 21.09.2021, p. 2.
[6] TRF 3ª Região, Agravo de Instrumento nº 5024664-53.2021.4.03.0000, 2ª Turma, Rel. Des. Cotrim Guimarães, j. 23.02.2019.
[7] STJ, 4ª T., REsp 2.008.305/SP, Dec. Monocrática, Min. João Otávio de Noronha, j. 02.08.2023, p. 3.
[8] “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.”
[9] STJ, 4ª T., Ag Int no Resp 2.008.305/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 29.04.2024, v.u., p. 7.
[10] STJ, 3ª T., REsp n. 1.523.661/SE, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 26.06.2018, v.p.m.
[11] SILVA, João Calvão da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. Coimbra: Livraria dos Advogados Editora, 1987, p. 69; grifou-se.
[12] CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil Brasileiro Interpretado. vol. XII, 8. ed., Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1963, p. 299. No mesmo sentido, ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em Geral. vol. II, 7. ed., Coimbra: Almedina, 2006, pp. 47-48.
[13] Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código:
I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;
II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;
III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.
Parágrafo único. Nos casos deste artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.
[14] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. vol. II, 30. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 162.
[15] TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 217.
[16] STJ, 3ª T., REsp n. 1.523.661/SE, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 26.06.2018, p.25, v.p.m. Sobre a distinção entre obrigação de execução diferida e obrigação de trato sucessivo, confira-se: TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2024, pp. 147-148.
[17] STJ, 3ª T., AgInt no AResp nº 2.439.042/MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 08.04.2024, v.u. No mesmo sentido, veja-se decisão da 4ª Turma: “(...) O parcelamento do saldo devedor nos contratos de financiamento imobiliário não configura relação de trato sucessivo, pois não se trata de prestações decorrentes de obrigações periódicas e autônomas, que se renovam mês a mês, mas de parcelas de uma única obrigação, qual seja, a de quitar integralmente o valor financiado até o termo final do contrato. Por se tratar de obrigação única (pagamento do valor total financiado), desdobrada em prestações para facilitar o adimplemento por parte do devedor, o termo inicial do prazo prescricional também será único, correspondendo à data de vencimento da última parcela do financiamento. (...)” (STJ, 4ª T., AgInt no REsp 1837718/PR, Rel. Min. Raul Araújo, j. 09.08.2022, v.u.).
[18] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021, pp. 242-243.