#137. Na pauta do STJ: termo a quo da prescrição e teoria da actio nata
O caso concreto
Em maio de 2008, os autores propuseram ação de dissolução parcial de sociedade limitada, apuração de haveres e condenação em perdas e danos em face do sócio administrador. Narraram que, conquanto a administração da sociedade, pelo contrato social, estivesse a cargo dos três sócios, que poderiam atuar conjunta ou isoladamente, o réu a exercia com exclusividade. Diante do desempenho insatisfatório da sociedade, cobraram prestação de contas, negada pelo réu. Os autores passaram, então, a auditar a sociedade e, em fevereiro de 2008, descobriram desvio de verbas nos anos de 2002 e 2004. A controvérsia em pauta consiste em saber se as pretensões de reparação civil bem como por violação da lei e do estatuto contra o administrador já estavam prescritas, afinal, os atos foram praticados havia mais de três anos quando do ajuizamento da ação.
As decisões de primeiro e segundo graus
O juízo de primeiro grau concluiu que a instrução probatória confirmou os fatos narrados pelos autores e que houve violação à lei e ao contrato social e também quebra da affectio societatis. O magistrado julgou procedente o pedido de dissolução parcial da sociedade, com a consequente exclusão do sócio e apuração de haveres, e condenou o réu ao pagamento das perdas e danos a que deu causa durante a sua administração.1 O réu opôs embargos de declaração a fim de que o magistrado se pronunciasse, dentre outras questões, sobre a prescrição da pretensão indenizatória. O juízo não acolheu a alegação, uma vez que “a ação foi manejada pelos autores tão logo descobriram as fraudes perpetradas pelo réu”.
Em sede de apelação, o réu aduziu que a ação somente foi ajuizada em maio de 2008, pelo que tanto a pretensão indenizatória quanto as de enriquecimento sem causa e distribuição de lucros ou dividendos de má-fé (art. 206, §3º, incisos IV, V e VI, do Código Civil) estariam prescritas.2 A seu ver, “como todos os fatos narrados na inicial e comprovados documentalmente aconteceram há mais de 3 anos do ajuizamento da ação, todos, sem exceção, foram atingidos pela prescrição”.
O TJSP negou provimento ao recurso e manteve inalterada a sentença, afastando a ocorrência da prescrição. De acordo com o acórdão, “o termo inicial não é aquele da ocorrência do ato irregular e sim da ciência dos prejudicados acerca de sua ocorrência”, pelo que não é possível “o reconhecimento de prescrição em relação a créditos que os demais sócios sequer sabiam do desvio ou existência”.3 De acordo com o acórdão, caso em sede de liquidação seja comprovada a ciência dos autores acerca das irregularidades imputadas ao réu, a ocorrência da prescrição poderá ser apreciada.
Em junho de 2012, o réu interpôs recurso especial. Argumentou que o direito brasileiro teria adotado a teoria da actio nata, que estabelece critério objetivo para a identificação do termo a quo da prescrição, conforme dispõe o artigo 189 do Código Civil.4
Em sua visão, a pretensão dos autores para pleitear qualquer indenização decorrente da suposta irregularidade dos atos por si praticados correria a partir: (i) “da data do ato ou fato que teria caracterizado a violação ao direito dos autores (teoria da actio nata)”; ou (ii) do fim do quarto mês posterior ao término de cada exercício social, período em que devem ser realizadas as reuniões de sócios para a tomada das contas dos administradores e deliberação sobre o balanço patrimonial e o resultado econômico, uma vez que a realização de referidas reuniões é dever legal dos sócios (arts. 1.078, I, e 1.079 do Código Civil),5 sendo este o momento “em que as supostas irregularidades deveriam ter sido levantadas e apuradas”. Sob sua óptica, os autores poderiam ter agido para tomar ciência dos fatos, mas não o fizeram, uma vez que nunca foram realizadas as referidas reuniões de sócios.
Nessa direção, considerando que prescreve em três anos tanto a pretensão de reparação civil (art. 206, §3°, V, do Código Civil) quanto a pretensão contra os administradores por violação da lei ou do estatuto, contados “da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembleia geral que dela deva tomar conhecimento” (art. 206, §3°, VII, b, do Código Civil),6 ambas estariam prescritas.
Em setembro de 2012, os autores apresentaram contrarrazões. Aduziram que a falha no dever de prestar contas e a precariedade da contabilidade obstaram o seu conhecimento acerca das irregularidades cometidas pelo réu. Ratificaram que as reuniões de sócios em que deveria ter havido a prestação de contas jamais ocorreram, pelo que o fim do prazo para a sua realização não poderia ser considerado o termo inicial da prescrição. A seu ver, a prescrição somente teria começado “a fluir a partir do efetivo conhecimento da lesão ao direito dos recorridos, mormente porque estes foram mantidos em erro pelo recorrente, que lhes sonegou informações essenciais para que tivessem tomado conhecimento, antes, das irregularidades financeiras por ele confessadamente praticadas”. Ao fim, requereram a manutenção do acórdão recorrido.
A decisão do AgInt no REsp nº 1.494.347/SP
Em novembro de 2023, o Ministro João Otávio de Noronha não conheceu do Recurso Especial.7 Para tanto, invocou os enunciados da Súmula nº 838 e da Súmula nº 7 do STJ.9 O réu interpôs, então, agravo interno.
Em setembro de 2024, a Quarta Turma negou, por unanimidade, provimento ao recurso.10 Nos termos do voto do Relator Ministro João Otávio de Noronha:
O direito brasileiro adota a teoria da actio nata em sua vertente objetiva; excepcionalmente, aplica-se a vertente subjetiva. “Não se olvida do entendimento firmado nesta Corte a respeito da aplicação da teoria da actio nata em sua vertente objetiva como regra geral, admitindo, em casos excepcionais, sua mitigação pela vertente subjetiva, em que se analisa a data do conhecimento pela parte da lesão sofrida como sendo o termo inicial para a contagem do prazo prescricional”.
Em regra, o termo a quo do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, VII, b, do Código Civil é a efetiva lesão ou a violação do direito. “Por certo que, em sociedades regulares, a má gestão de recursos pelos administradores atrai a aplicação do prazo trienal prescrito no art. 206, § 3º, VII, b, do Código Civil, cujo início se dá com a efetiva lesão ou violação do direito, a partir da definitividade das regras estabelecidas no estatuto social e da previsibilidade de realização das assembleias”.
No caso em tela, aplica-se a teoria da actio nata em sua vertente subjetiva, tendo em vista a precariedade dos atos de administração. “(...) o caso dos autos retrata situação diversa, haja vista o reconhecimento de que, durante a administração empresarial realizada pelo agravante, não houve a apresentação do balanço relativo aos respectivos exercícios, tampouco reunião assemblear para deliberação acerca da gestão empreendida, de onde se depreende que a publicidade dos atos relativos à administração empresarial ficou sensivelmente vulnerada, circunstância que, inevitavelmente, obsta a fixação da data em que a assembleia deveria ter ocorrido como marco inicial do lapso prescricional”.
O art. 189 do Código Civil deve assumir viés humanizado a fim de não se punir a vítima que ficou inerte por falta de conhecimento do dano. “Em situações como a dos autos, a regra do art. 189 do CC, assume viés humanizado e voltado aos interesses sociais, admitindo-se como marco inicial não mais o momento da ocorrência da violação do direito, mas a data do conhecimento do ato ou fato do qual decorre o direito de agir, sob pena de se punir a vítima por uma negligência que não houve, esquecendo-se o fato de que a aparente inércia pode ter decorrido da absoluta falta de conhecimento do dano”.
Ao fim, o Ministro destacou que a aplicação da teoria da actio nata em sua vertente subjetiva dependeria de reanálise de matéria fático-probatória para avaliar o momento em que os sócios tiveram efetiva ciência dos fatos que motivaram o pedido de exclusão do sócio faltoso, a atrair a incidência do enunciado da Súmula 7 do STJ.
Reflexões sobre o tema
O instituto da prescrição corporifica a solução de consenso entre dois princípios caros à ordem jurídica: justiça e segurança.11 De um lado, o ordenamento busca conferir ao sujeito os instrumentos necessários ao exercício da pretensão, uma vez violado o seu direito; de outro, reconhece a necessidade de pacificação das relações sociais, o que se alcança por meio da extinção de pretensões não exercidas por determinado tempo.
O legislador civil adotou, no art. 189 do Código Civil, o sistema objetivo quanto ao termo a quo da prescrição, estabelecendo que o prazo para o exercício da pretensão começa a correr quando violado o direito, independentemente de quaisquer outras considerações. Esse foi, por exemplo, o entendimento que restou consolidado na Segunda Seção do STJ em relação ao termo inicial do prazo prescricional para o exercício da pretensão de petição de herança.12 Referido critério homenageia a segurança jurídica.
No entanto, não raro, a pretensão nasce após a violação do direito, hipótese em que não seria justo permitir a fluência do prazo em momento anterior.
Nesse cenário, o desafio é identificar o critério que permita “humanizar” a regra do art. 189 do Código Civil para promover a justiça sem desconsiderar a segurança jurídica.13 De acordo as professoras Maria Celina Bodin de Moraes e Gisela Sampaio, nesses casos, “o que será necessário determinar é o momento em que o titular da pretensão teve (ou deveria ter tido) conhecimento da violação”.14 E isso, por si só, já é outro desafio.
De todo modo, no caso em pauta, há de se notar que os sócios autores também constavam do contrato social como administradores da sociedade, o que – parece – não foi considerado, e poderia ter trazido outras nuances para a discussão.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: termo a quo da prescrição e teoria da actio nata. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 137, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire137>. Acesso em DD.MM.AAAA.
4ª Vara Cível da Comarca de Ribeirão Preto/SP, Ação de Dissolução Parcial de Sociedade nº 985/08, Juíza Substituta Vanessa Aparecida Pereira Barbosa, julg. em 11.12.2009.
Art. 206. Prescreve:
§ 3º Em três anos:
IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;
V - a pretensão de reparação civil;
VI - a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distribuição;
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
Art. 1.078. A assembleia dos sócios deve realizar-se ao menos uma vez por ano, nos quatro meses seguintes à ao término do exercício social, com o objetivo de:
I - tomar as contas dos administradores e deliberar sobre o balanço patrimonial e o de resultado econômico;
Art. 1.079. Aplica-se às reuniões dos sócios, nos casos omissos no contrato, o estabelecido nesta Seção sobre a assembleia, obedecido o disposto no § 1 o do art. 1.072.
Art. 1.072. As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembleia, conforme previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato.
1º A deliberação em assembleia será obrigatória se o número dos sócios for superior a dez.
Art. 206. Prescreve:
§ 3º Em três anos:
VII - a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo:
b) para os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembleia geral que dela deva tomar conhecimento.
“Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.”
A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”
Confira-se: STEINER, Renata. A ciência do lesado e o início da contagem do prazo prescricional. In: STOCO, Rui (org.) Doutrinas essenciais: dano moral. vol. 4, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, pp. 929-948.
MORAES, Maria Celina Bodin de; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. A prescrição e o problema da efetividade dos direitos. In: MORAES, Maria Celina Bodin de; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; SOUZA, Eduardo Nunes de (coord.). A juízo do tempo: estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Processo, 2019, p. 23.