#15. Autonomia da posse – entre estrutura e função
por Gustavo Tepedino
Há alguns temas clássicos de direito civil cuja atualidade se renova incessantemente. A proteção possessória é um deles. Assim como na codificação anterior, a posse não recebeu definição legislativa. O Código Civil, no art. 1.196, limita-se a considerar possuidor “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.” O preceito jamais aquiesceu o multissecular debate doutrinário, com conotação fortemente ideológica. Discute-se se, afinal, a proteção reservada à posse vincula-se à tutela da propriedade, a configurar, na célebre formulação de Ihering, a vanguarda avançada do domínio, ou se, ao contrário, há autonomia no direito subjetivo do possuidor, a despeito da linguagem do art. 1.196.
O saudoso Prof. Ebert Chamoun, autor do anteprojeto do Livro III do Código Civil, dedicado ao Direito das Coisas, justificava a dicção legal na medida em que a posse, como situação de fato, tem sua tutela condicionada à função desempenhada pelo possuidor no respectivo cenário fático. Por isso mesmo, o conceito de posse como exercício de alguma das faculdades inerentes ao domínio mostra-se incompleto. E é assim porque, acompanhada do título dominical, a posse reflete, induvidosamente, o direito subjetivo do proprietário. Apartada, contudo, da propriedade, a posse configura direito subjetivo autônomo, e, a depender da função social que desempenha, será tutelada a prescindir do domínio, sem o domínio ou até mesmo contra o domínio. Basta pensar no conjunto de ações possessórias previsto na lei processual.
Em tal perspectiva, compreende-se que a garantia constitucional da propriedade privada e de sua função social, nos termos do art. 5º, XXII e XXIII, C.R., não lhe confere qualquer precedência hierárquica em relação à posse. Ou seja, por se cuidar de situação eminentemente fática, o interesse do possuidor só se legitima e se torna digno de proteção jurídica na medida em que se vincula a valores constitucionalmente tutelados, como trabalho, moradia e saúde, todos expressões da dignidade da pessoa humana. Tem-se, portanto, nesse conjunto de valores, a pedra de toque para a solução de conflitos de interesse entre as situações jurídicas proprietárias e possessórias. A propriedade privada há de ser protegida como garantia constitucional se (e somente se) atender à sua função social. Do contrário, poderá ter sua tutela preterida em favor do exercício possessório que promova valores socialmente relevantes.
Ilustrativamente, reconheceu o TJSP a prevalência do interesse do possuidor em ação de interdito proibitório em face do proprietário, em acórdão em cuja ementa se lê: “Hipótese de incidência do princípio da função social da propriedade em prol da segurança da família, o que garantira sobrevivência digna para a autora e filho. Limitação, contudo, de permanência pelo prazo de 9 (nove) meses, a partir do presente julgamento, o que surge como adequado para que se realize mudança de local ou que se concretize o dever de alimentos para cobertura de aluguel” (TJSP, 4ª C. D. Priv., Ap. Cív. 0024957-32.2012.8.26.0071, Rel. Des. Ênio Zuliani, julg. 10.3.2016). Já a Terceira Turma do STJ, a seu turno, decidiu que a posse de lote situado em loteamento irregular deve integrar a partilha de bens no divórcio, mesmo à míngua do registro dominical (STJ, 3ª T., REsp 1.739.042-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg 8.9.2020). A autonomia da posse foi igualmente proclamada pela 2ª Seção do STJ, que entendeu cabíveis ações de usucapião de imóveis desprovidos de registro e situados em loteamento irregular (STJ, 2ª S., REsp 1.818.564/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, julg. 9.6.2021).
Na mesma linha de entendimento, a Segunda Seção do STJ reconheceu a usucapião extraordinária de área inferior a módulo estabelecido em lei municipal, uma vez preenchidos os demais requisitos específicos (STJ, Tema 985, 2ª S., quando do exame dos REsp 1.667.843 e REsp 1.667.842, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 3.12.2020). O julgamento alinhou-se a precedente do STF no RE 422.349, segundo o qual, preenchidos os requisitos do art. 183 C.R., o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser impedido por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na área em que o imóvel está situado. A orientação mostra-se igualmente consentânea seja com a disciplina da usucapião extraordinária, cuja verificação depende tão somente de posse contínua, mansa, pacífica e com animus domini e do lapso temporal, no prazo de quinze anos para coisa imóvel (art. 1.238, Código Civil); seja com o art. 216-A na Lei de Registros Públicos, que disciplinou o reconhecimento extrajudicial da usucapião.
Confirma-se desse modo a autonomia da posse e a tendência de alteração da função tradicional da usucapião, que se torna, na realidade registral brasileira, importante instrumento (não para solução de conflito entre possuidor e proprietário, mas) de regularização da propriedade urbana e fundiária. Tal fenômeno bem demonstra que os modelos jurídicos, sem alteração de sua estrutura, podem atender a distintas funções na evolução da vida social.