#19. Bem de família: penhorar ou não penhorar, eis a questão
STJ ratifica que a impenhorabilidade do bem de família não é absoluta.
O trocadilho com a célebre frase dita por Hamlet durante monólogo na peça homônima de William Shakespeare não é despropositado. Todavia, ao contrário do dilema vivido por Hamlet, a resposta à questão posta, se não simples, é técnica, e decorre da interpretação teleológica da Lei n.º 8.009/90, como decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça nos autos do REsp 1.976.743/SC, no dia 08 de março de 2022.
O caso
Tratava-se de ação de cobrança de dois cheques emitidos pelos recorrentes para o pagamento de dívida oriunda de contrato de empreitada global firmado para a construção de imóvel residencial. O pedido foi julgado procedente e, na fase de cumprimento de sentença, o credor postulou a penhora do imóvel, que foi deferida.
Os devedores pleitearam o cancelamento da constrição, ao argumento de se tratar de bem de família impenhorável. O juízo de primeiro grau manteve a penhora e o Tribunal de origem negou provimento ao recurso, com fundamento na incidência da exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90, segundo o qual a impenhorabilidade não é oponível ao “titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato”.
Em sede de Recurso Especial, afirmaram os devedores que o referido dispositivo não se aplicaria ao caso: a exceção ali contemplada estaria adstrita ao agente financeiro, e a interpretação restritiva do dispositivo não permitiria estender a exceção ao titular de crédito decorrente de contrato de empreitada global, ainda que tivesse como objeto a construção do imóvel residencial.
A decisão
Em voto condutor, seguido à unanimidade, a Relatora Ministra Nancy Andrighi estabeleceu as seguintes premissas:
1. A proteção conferida ao bem de família é relativa. Posto a impenhorabilidade do bem de família se volte à tutela de direitos fundamentais do devedor em detrimento dos interesses do credor, a proteção não é absoluta e comporta exceções.
2. A interpretação das exceções à impenhorabilidade do bem de família deve ser restritiva. Por reduzirem a ampla proteção conferida pela lei ao imóvel residencial, as exceções previstas na Lei nº 8.009/90 devem ser interpretadas restritivamente.
3. A interpretação restritiva não impede o intérprete de identificar a mens legis. O julgador, no exercício de interpretação do texto, não está restrito à letra da lei. Incumbe ao intérprete identificar o que o legislador desejaria se estivesse vivenciando a situação analisada.
A partir daí, a Ministra Nancy Andrighi ponderou que o escopo do art. 3º, II, da Lei n.º 8.009/90 não é proteger apenas o agente financeiro. O objetivo da norma é impedir “que o devedor se escude na impenhorabilidade do bem de família para obstar a cobrança de dívida contraída para aquisição, construção ou reforma do próprio imóvel, ou seja, de débito derivado de negócio jurídico envolvendo o próprio bem”. Concluiu-se, então, que “a dívida relativa a contrato de empreitada global, porque viabiliza a construção do imóvel, está abrangida pela [referida] exceção”.
A interpretação conferida ao texto legal permitiria afastar a exceção da impenhorabilidade em favor de credores em diversas outras hipóteses, sempre que a dívida fosse contraída para adquirir, construir ou mesmo reformar o imóvel residencial. Seria o caso, por exemplo, da dívida decorrente de contratos de prestação de serviços de arquitetura, engenharia e cálculo, ou mesmo decorrente de compra de materiais destinados à construção ou reforma do imóvel e cujo pagamento seja parcelado. O recado, portanto, é este: o devedor não pode se valer da proteção da lei para inadimplir contratos que viabilizaram a aquisição, construção ou reforma do bem de família.
O vai e vem
Esta não foi a primeira vez em que se ampliou judicialmente exceção à impenhorabilidade do bem de família. Em decisão proferia no dia 10 de março de 2022, o Pleno do Supremo Tribunal Federal firmou a tese de repercussão geral para o Tema 1127 segundo a qual “é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”. De acordo com a Suprema Corte, como o inciso VII do artigo 3º da Lei n.º 8.009/90[1] não faz qualquer distinção entre a locação residencial e a comercial para fins de excepcionar a impenhorabilidade do bem de família do fiador, em ambos os casos o imóvel residencial do fiador pode ser objeto de constrição. Segundo o Pleno do STF:
“A exceção à impenhorabilidade não comporta interpretação restritiva. O legislador, quando quis distinguir os tipos de locação, o fez expressamente, como se observa da Seção III, da própria Lei 8.245/1991 – que, em seus artigos 51 a 57 disciplinou a “Locação não residencial”.[2]
O STJ, por sua vez, em outras oportunidades, reforçou a tutela conferida pela Lei n.º 8.009/90 e ampliou o próprio conceito de bem de família, estendendo a proteção conferida pela lei a imóveis que não servem propriamente de moradia para o devedor. Foi precisamente o que ocorreu nos autos do AgInt no AREsp 1.607.647/MG, em que se entendeu impenhorável o único imóvel do devedor locado a terceiros, cujos frutos possibilitavam à família constituir moradia em outro bem alugado ou mesmo garantir a sua subsistência,[3] bem como, mais recentemente, nos autos do REsp 1.851.893/MG, em que se decidiu que “o imóvel cedido aos sogros da proprietária, que, por sua vez, reside de aluguel em outro imóvel, não pode ser penhorado por se tratar de bem de família”.[4]
A jurisprudência do Tribunal Superior revela a tentativa de se buscar o adequado equilíbrio entre a tutela do direito fundamental à moradia e a proteção do crédito – e, em última análise, da própria livre iniciativa, fundamento da República Federativa do Brasil. De fato, a falta de segurança do credor quanto à efetiva recuperação dos seus recursos bem como de previsibilidade quanto às regras para tanto aplicáveis reduz e encarece o crédito, o que não é bom para ninguém, sobretudo para quem dele precisa.
Aline Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Sócia em Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[1] “VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”.
[2] STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, RE 1.307.334/SP, julg. 10.03.2022.
[3] STJ, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, AgInt no AREsp 1.607.647/MG, julg. 20.04.2020.
[4] STJ, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, REsp 1.851.893/MG, julg. 23.11.2021.