#21. Danos causados pelos administradores aos acionistas: limites à reparação
por Ana Carolina Weber
Na disciplina legal das companhias, o artigo 158 da Lei nº 6.404/1976[1] constitui a base do sistema de responsabilidade dos administradores, estabelecendo que (a) as relações por eles firmadas com terceiros, no desempenho de suas funções, são atribuídas à companhia; e (b) eles não responderão com seu patrimônio pessoal pelas consequências danosas dos chamados “atos regulares de gestão”.
Por outro lado, o dispositivo reconhece que o vínculo orgânico existente entre o administrador e a companhia pode se romper e prevê que, em determinadas circunstâncias, os atos praticados pelo administrador deixam de ser atribuíveis à companhia e passam a ser imputáveis a ele próprio. O administrador poderá responder com seu patrimônio pessoal pelos danos que causar quando, no exercício do cargo em companhias, atuar (i) dentro de suas atribuições ou poderes com culpa ou dolo[2], ou (ii) com violação da lei ou do estatuto[3].
Definição dos danos indenizáveis
O artigo 159 da Lei nº 6.404/1976 trata dos danos que podem decorrer das condutas identificadas nos incisos do artigo 158, considerando as peculiaridades das companhias e tendo em vista que a atuação do administrador pode atingir, de forma distinta, os patrimônios da companhia e dos acionistas. Nesse sentido, o caput, o § 3º e § 4º do artigo 159 da Lei das S.A.[4] dedicam-se aos danos causados pelo administrador ao patrimônio da companhia, estabelecendo a legitimidade ordinária da própria sociedade para pleitear a reparação e a legitimidade extraordinária dos acionistas para, em substituição à companhia, mas no interesse dela, e desde que obedecidos os requisitos legalmente estabelecidos, formular o pleito indenizatório em face dos administradores.
Já o § 7º do artigo 159[5] identifica que, da atuação dos administradores, podem derivar danos aos acionistas e a terceiros que se relacionem com a companhia, reconhecendo situações nas quais a companhia não sofre dano, porém os acionistas ou terceiros experimentam danos autônomos.
Doutrina e jurisprudência especializadas concluem que (a) a companhia e os acionistas terão legitimidade, respectivamente, ordinária e extraordinária para buscar a responsabilidade dos administradores pelos danos diretos causados ao patrimônio social, (b) os acionistas não têm legitimidade para pleitear indenização em face dos administradores pelos danos indiretos, e (c) os acionistas têm legitimidade para obter reparação dos danos diretos que os administradores lhes causarem[6].
Dano direto vs. dano indireto
Deve-se questionar se há fundamentos (além de uma opção do legislador de 1976) para não se autorizar os acionistas a pleitearem, de forma autônoma, a reparação dos danos que indiretamente os administradores vierem a lhes causar. Há algumas razões que merecem ser apontadas:
Nexo de causalidade: o dano indireto do acionista pressupõe o dano direto sofrido pela companhia, o qual é anterior àquele imputado ao patrimônio individual do acionista. Há, do ponto de vista do acionista, concausas sucessivas, sendo que a primeira causa consiste no ato praticado pelo administrador e, a segunda, na alteração do patrimônio da companhia em decorrência administrador deste ato. Embora possa haver relação de necessariedade entre o ato do administrador e a alteração do patrimônio do acionista, o dano ao patrimônio social interrompe o nexo causal direto e imediato entre a conduta do administrador e o prejuízo ao patrimônio individual do acionista (artigo 403 do Código Civil).
Distinção de personalidades jurídicas: outra razão impeditiva diz respeito à personalidade jurídica da companhia. É dela a legitimidade para pleitear o dano causado pelo administrador ao seu patrimônio. Assim, conquanto o patrimônio do acionista também seja mediatamente atingido pelos atos praticados pelo administrador, é o da companhia que deverá ser recomposto.
Ademais, a companhia não é um mero somatório de interesses dos acionistas. A vontade e o interesse social não se confundem com a adição da vontade de seus acionistas, sendo o produto autônomo da confluência e da divergência das manifestações dos acionistas em assembleia geral e dos administradores no exercício de suas funções. Logo, recompor o patrimônio social diz respeito, em essência, à satisfação deste interesse social e não do interesse individual de cada acionista.
Vedação ao enriquecimento ilícito: Além disso, caso fosse reconhecido o direito de o acionista ser indenizado pelo dano indireto, poder-se-ia estar diante de hipótese de enriquecimento ilícito. O pagamento de indenização à companhia majora o patrimônio social, com base no qual o acionista poderá usufruir direitos ao recebimento de dividendos, de participação nos haveres no caso de liquidação da sociedade e, muitas vezes, de fixação do preço da ação para fins de sua alienação (utilização do patrimônio líquido da companhia para definir o preço da ação). Caso recebesse indenização autônoma pelo dano indireto, o acionista auferiria, além do incremento decorrente do aumento patrimonial da companhia, uma indenização individual, recebendo, assim, duas vezes por um único dano causado a seu patrimônio[7].
Mandamentos societários: Autorizar os acionistas a recuperar os danos indiretos também implicaria entregar-lhes os resultados financeiros que, nos termos da lei societária, seriam a eles atribuídos somente se observadas as normas legais sobre distribuição de dividendos ou se findo o processo de liquidação, o que acabaria por infringir as preferências legais e a partilha universal do produto das atividades sociais entre todos os acionistas. Ademais, a atribuição do direito à companhia de recuperar os prejuízos que os administradores venham a causar diretamente a seu patrimônio também se fundamenta na proteção dos direitos dos credores e dos demais stakeholders. Caso fosse impedida a recuperação dos danos pela companhia e atribuída a recomposição do patrimônio individual dos acionistas, a garantia geral dos credores da sociedade permaneceria desfalcada.
Dessa forma, elementos relativos à estrutura e à natureza das relações jurídicas que se formam no âmbito da companhia e os requisitos inerentes à atribuição do dever de indenizar constituem fundamentos para que, na hipótese de danos causados pelos administradores de forma direta à companhia e indireta aos acionistas, prevaleça o dever reparatório em relação aos danos ao patrimônio social.
Ana Carolina Weber
Advogada. Atua em procedimentos arbitrais como árbitra. Doutora em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito Internacional pela UERJ.
[1] Artigo 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto.
[2] A atuação com culpa ou dolo dos administradores deve ser examinada à luz do standard do dever de diligência a eles atribuído: ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade Civil dos Administradores de S/A e as Ações Correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 213.
[3] O entendimento majoritário da doutrina brasileira é de que essa modalidade de responsabilidade do administrador depende da comprovação da culpa do agente. Ver CEREZETTI, Sheila C. Neder. Os Deveres e Responsabilidades dos Administradores das Companhias Abertas. In: Danilo Borges dos Santos Gomes de Araújo (org.). Regulação Brasileira do Mercado de Capitais. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 251.
[4] Artigo 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembleia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio. (...) § 3º Qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 (três) meses da deliberação da assembleia-geral. § 4º Se a assembleia deliberar não promover a ação, poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social.
[5] Artigo 159 (...) § 7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador.
[6] Para uma proposta de conceituação de danos diretos e indiretos causados por administradores de sociedades anônimas, ver WEBER, Ana Carolina. Responsabilidade Societária: Danos causados pelos administradores. São Paulo: Quartier Latin. 2021.
[7] “The ‘no reflective loss’ principle rightly selects the company as the injured party that may recover, instead of a shareholder, thus preventing double recovery”. JONG, Bas J. de. Shareholders’s Claims for Reflective Loss: A Comparative Legal Analysis. European Business Organization Law Review, v. 14, março, 2013, Issue 1, p. 100.