#30. A autonomia da vontade no direito de família internacional
A experiência do Protocolo da Haia sobre a Lei Aplicável às obrigações alimentares
por Nadia de Araujo
As relações jurídicas, quando dotadas de um elemento de estraneidade, encontram-se conectadas a mais de um ordenamento jurídico nacional. Nessas situações, instauram-se conflitos de duas ordens: o primeiro deles relativo à investigação sobre a possibilidade (ou não) de atribuição da jurisdição a um tribunal para conhecer e resolver eventual litígio associado à relação jurídica em questão (conflito de jurisdições); e o segundo relacionado à lei que rege o conjunto de direitos e obrigações das partes (conflito de leis). Apesar da importância da determinação da jurisdição para os casos multiconectados, é preciso ressaltar que o coração do Direito Internacional Privado (“DIPr”) segue atrelado às questões relativas ao conflito de leis.
As regras de DIPr possuem caráter eminentemente interno apesar de disciplinarem situações jurídicas com conexões internacionais. Assim, a depender do local em que proposta a ação, a solução obtida pelas partes quanto à lei aplicável poderá variar daquela eventualmente alcançada em outra jurisdição. Daí a necessidade de, e o constante esforço por, uma uniformização das regras de DIPr, a fim de evitar o tratamento discriminatório por diferentes foros de situações jurídicas similares.
O trabalho realizado pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (“HCCH”) sempre buscou construir pontes entre os diversos sistema jurídicos nacionais, produzindo um conjunto de convenções multilaterais e demais instrumentos de soft law.[1]
Atualmente, muito se debate a sobre a extensão e manifestação do princípio da autonomia da vontade no direito de família, especialmente para fins de determinação pelas partes da lei aplicável às suas relações jurídicas.[2] Apesar do seu surgimento em um caso de direito de família ligado ao regime de bens e relatado por Charles Dumoulin no século XVI, o princípio acabou por se desenvolver de forma mais abrangente no campo dos negócios internacionais.[3] Quando escolhida pelas partes a lei aplicável ao contrato internacional, tem-se o afastamento das regras de conexão próprias do foro,[4] que, não fosse a escolha, seriam aplicáveis à demanda pelo magistrado ou pelo tribunal arbitral. Depois de muitos anos de debate, agora se pode dizer que, na seara obrigacional, o princípio se reveste de caráter universal.
A definição ex ante do direito aplicável pelas partes possui a vantagem de reduzir as inseguranças geradas pela multiplicidade de regras nacionais de conflito de leis, gerando maior previsibilidade e uniforminade na solução dos litígos internacionais. Nos últimos anos, nota-se que a autonomia da vontade tem se espraiado para o direito de família, uma vez que os indivíduos também têm o desejo de planejar e assegurar certas opções dentre as múltiplas questões subjacentes às suas relações familiares.
Entretanto, é certo que ainda existe resistência à aplicação e manifestação do princípio nas famílias, especialmente ante a possibilidade de as partes se encontrarem em níveis diversos de vulnerabilidade. Além disso, muitas das vezes estão em disputa o exercício de direitos de caráter indisponível, com características muito diferentes daqueles que envolvem as relações comerciais.[5] Por isso, cada ordenamento, a depender da cultura jurídica e dos interesses objeto de tutela, permite uma maior ou mais restrita autonomia.
No entanto, a autonomia para escolher uma determinada lei pode ser permitida, ainda que de forma mais limitada do que nos contratos internacionais, principalmente à luz das vantagens associadas à determinação prévia do conjunto normativo que rege os direitos, deveres e obrigações existentes no núcleo familiar. Na mesma medida, não podemos nos descuidar do fato de que o princípio pode atuar como um importante mecanismo que permite a escolha de uma lei que se encontra mais próxima aos interesses subjetivos das partes e/ou que reflita, com maior precisão, a cultura de uma sociedade específica, de alguma forma ligada aos membros da família.[6]
Considerando que as regras de DIPr brasileiras ainda são aquelas da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especialmente os artigos 7º a 17, nota-se que pouco se evoluiu no tempo, no sentido de oferecer maior liberdade aos indivíduos no tratamento das suas relações jurídicas. Isso não significa, porém, que inexiste qualquer manifestação do princípio para o direito de família na legislação brasileira, especialmente quando consideradas as disposições do Protocolo da Haia sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares, concluído no âmbito da HCCH, do qual o Brasil é parte signatária.[7]
De acordo com este instrumento, e limitado ao campo das obrigações alimentares, podem as partes, em acordo por escrito, determinar a aplicação da lei de qualquer país do qual um deles seja nacional ou possua residência habitual no momento da designação, assim como a lei aplicável ao seu regime de bens ou a lei que rege o seu divórcio/separação judicial.[8] Nestes dois últimos casos, a autonomia exerce uma precípua função coordenativa, já que defere às partes a possibilidade de submeter os variados aspectos de sua relação jurídica a uma única lei.[9]
É patente, entretanto, que a manifestação do princípio na família em geral, e nos alimentos em especial, não é tão amplo quanto nos contratos internacionais. Neste último campo, verifica-se que é possível, inclusive, a escolha de uma lei “neutra”, proveniente de um país sem qualquer conexão com a relação jurídica. Já no direito de família, observamos uma restrição das alternativas de leis potencialmente aplicáveis. Faculta-se às partes escolher dentre opções previamente definidas, e que tenham conexão direta com a entidade familiar, como é o caso da lex patriae (lei da nacionalidade) ou da lei do local de residência habitual.
Finalizando, conclui-se que a utilização do princípio da autonomia da vontade pelas partes na área de família encontra certos limites, que visam ao equilíbrio entre a necessidade de proteção do núcleo familiar, a tutela da identidade cultural, e o exercício da liberdade pelos indivíduos, mas sempre com a finalidade de assegurar maior previsibilidade às suas relações jurídicas de caráter internacional.
Nadia de Araujo
Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (1996). Mestrado em Direito Comparado pela George Washington University (1984). Professora Associada de Direito Internacional Privado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Advogada e árbitra em arbitragens domésticas e internacionais.
[1] Para aprofundamento sobre a organização intergovernamental e sua contribuição para o DIPr, ver ARAUJO, Nadia. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 59-64.
[2] Veja-se que o direito escolhido não se limita a regência apenas dos direitos e obrigações assumidos, mas também se estende a outras matérias. A extensão da autonomia das partes dependerá, em última instância, das prescrições de cada foro. No caso dos contratos, também se comunga a possibilidade de as partes escolherem diferentes leis, cada uma regendo determina matéria ou questão. Tal fenômeno se denomina dépeçage ou fracionamento. Para um aprofundamento sobre a questão, v. ARAUJO, Nadia. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 397-399.
[3] A autonomia da vontade não se confunde com a autonomia privada, esta última voltada a liberdade das partes para definir o conteúdo do negócio jurídico por elas entabulado.
[4] Segundo Jean-Michel Jacquet, o princípio da autonomia da vontade possui uma função de regra de conexão, uma vez que, inserido em convenções internacionais, passa a ser um princípio conflitual, cf. Principe d’autonomie et contrats internationaux, p. 15/16. Para uma visão da common law sobre o princípio, v. HARTLEY, Trevor. The Modern Approach to Private International Law. International Litigation and Transactions from a Common-Law Perspective. General Course on Private International Law. Recueil des Cours de l'Académie de droit international de La Haye, v. 319, 2006. p. 205 e ss.
[5] “Family traditionally has been the field where relationships are not at the disposition of the parties. Certainly, one is free to marry or not, to petition for a divorce or nor, or to establish or not parent-child family law relationships like by the way of adoption or recognition of a child born out of wedlock, but in principle, always within the mandatory framework of a given law. Shrewd escapes from such law were sanctioned as fraus legis. The freedom to designate the applicable law has been for a long time a long step too far”. STRUYCKEN, A. V. M. Co-ordination and Cooperation in Respectful Disagreement.Recueil Des Cours - Académie De Droit International De La Haye, v. 311, 2004. p. 370
[6] Cf. reflete Cristina González Beilfuss: “(…) some individuals and families would feel more attached to their State of origin, whereas others would be more connected to the State of reception. In this vein, party autonomy could be used as a tool for the defence of cultural identity. By permitting parties to select their national law, private international law would show respect for cultural identity”. BEILFUSS, Cristina González. Party Autonomy in International Family Law. Recueil Des Cours - Académie De Droit International De La Haye, v. 408, 2020.p. 184.
[7] A Convenção da Haia sobre Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família e o Protocolo sobre Lei Aplicável às Obrigações de Prestar Alimentos foram internalizados no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 9.176/2017.
[8] Artigo 8º do Protocolo da Haia. No mesmo sentido, v. artigo 15 do Regulamento (CE) nº 4/2009 do Conselho relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares.
[9] Cf. BEILFUSS, Cristina González. The Role of Party Autonomy in Pursuing Coordination. VIARENGO, Ilaria; VILLATA, Francesca Clara (Orgs.).In: Planning the future of cross border families: a path through coordination, 2020. p. 243-257.