#45. A Convenção da Haia de 1970 sobre Obtenção de Provas no Exterior e as contribuições do Guia de Boas Práticas para o uso de vídeo
por Nadia de Araujo
O êxito de uma demanda judicial depende, intrinsicamente, da capacidade das partes de produzir provas, a fim de demonstrar os fatos constitutivos do seu direito ou impeditivos, modificativos ou extintivos do direito da outra parte. Para os casos de processos puramente nacionais – isto é, sem qualquer conexão com outros países –, o Código de Processo Civil (“CPC”) prevê um extenso conjunto de regras destinadas a regular a obtenção de provas pelas partes e pelo juízo, inclusive quando uma ou mais delas se localizam em comarcas, seções ou subseções judiciárias diferentes. No último caso, a legislação nacional prevê mecanismos que possibilitam a comunicação e cooperação judiciária interna entre os magistrados, facilitando a obtenção de determinada prova.
No entanto, dúvidas podem surgir quando o processo de instrução extravasa os limites do território nacional. Esse é o caso, a título de exemplo, das situações em que há necessidade de ouvir testemunhas que residem no exterior, ou realizar a inspeção de bens que estão situados em outro país. Além disso, não são incomuns os casos em que é preciso analisar documentos, de natureza pública ou particular, que se encontram em outra jurisdição ou sob a custódia de terceiro domiciliado no exterior. Nessas hipóteses, às partes e aos magistrados são impostos óbices, diretamente associados à ideia de soberania dos Estados, que restringem o exercício irrestrito de poderes – inclusive de coerção – sobre pessoas e bens localizados em território estrangeiro.
Para esses casos, tal como na esfera interna, encontram-se regras específicas, negociadas de forma bilateral, regional ou multilateral entre os Estados, que viabilizam a instrução de processos com conexões internacionais. Convencionou-se chamar essa troca entre os estados, seja através de tratados e convenções ou na sua ausência, de cooperação jurídica internacional (“CJI”).
Ao prever um procedimento típico, formal e comum para a tramitação e o cumprimento dos pedidos pelas autoridades adjudicatórias de cada país, essas convenções levam em conta não só a necessidade de preservar a soberania dos Estados, materializada nos limites impostos ao exercício da jurisdição, mas também a urgência de tutelar os direitos e garantias fundamentais daqueles que são justamente os destinatários dessas normas: os indivíduos. Por isso, além do controle realizado pela lex fori de cada Estado envolvido, esses instrumentos multilaterais fornecem um número de regras que, direta ou indiretamente, autorizam um comando material sobre o objeto do pedido de cooperação. Essas disposições visam, inter alia, garantir o respeito ao devido processo legal, tutelar o direito à ampla defesa e ao contraditório, além de afastar o cumprimento de medidas que vão de encontro aos valores fundamentais do foro.
No âmbito específico da obtenção de provas, ganha relevo – em razão da sua aplicação diuturna pelo Brasil e pelo crescente número de Estados Contratantes – a Convenção da Haia de 1970 sobre a Obtenção de Provas no Exterior em Matéria Civil ou Comercial (“Convenção de 1970” ou “Convenção”). O instrumento, que se limita à obtenção de provas no âmbito civil e comercial, está em vigor em mais de 64 Estados Contratantes. Tendo por objetivo principal conciliar diferentes visões e práticas judiciárias presentes nas jurisdições de tradição anglo-saxã e romano-germânica, a Convenção se encontra dividida em três capítulos, que correspondem, respectivamente, à utilização da carta rogatória (capítulo I, Artigos 1 a 14); ao uso dos agentes diplomáticos, consulares e comissários (capítulo II, Artigos 15 a 22); e às disposições gerais (capítulo III, Artigos 23 a 42).
Nos últimos anos, no âmbito de aplicação da Convenção, instaurou-se grande debate sobre a possibilidade de utilização do que se convencionou denominar de vídeo-link, (tecnologia que permite a interação por áudio e vídeo de duas ou mais pessoas localizadas em espaços diferentes). Endereçando a questão, e no âmbito do trabalho pós-convencional realizado pela HCCH, foi elaborado um Guia de Boas Práticas sobre o uso de Video-link na Convenção de 1970 (“Guia”), exemplo de regras de soft law, para os casos de obtenção de provas testemunhais no campos de aplicação da Convenção de 1970 (questões civis ou comerciais). Dividido em três partes, o guia inicia pelas questões preliminares, de como pode ser usado dentro do escopo da convenção; segue para as questões relativas à preparação e condução da audiência; e finaliza com considerações sobre aspectos técnicos e de segurança.
É preciso ressaltar que o Guia não é um documento obrigatório e a admissibilidade do uso da tecnologia no cumprimento dos pedidos de CJI dependerá, em última instância, da lei local do Estado Requerido. Atualmente não há unanimidade entre os Estados Contratantes sobre a possibilidade de se recorrer ao vídeo-link para cumprimento de pedidos fundamentados na Convenção de 1970. O Guia, entretanto, acentua que, embora a Convenção tenha sido concluída em uma época em que tais instrumentos não eram utilizados, “a linguagem neutra do ponto de vista tecnológico que os autores adotaram permite a utilização de tais tecnologias”.
Além disso, também se discute a possibilidade de obtenção direta da prova pela autoridade judiciária do Estado Requerente, com a participação e a assistência da autoridade competente do Estado Requerido. Certamente não são todos os Estados Contratantes que permitirão tal prática, vista por muitos como uma indevida interferência na soberania judiciária do Estado.
O STF, e posteriormente o STJ, já se posicionaram contrariamente à prática nos casos de pedidos passivos de CJI recepcionados pelo Brasil. No caso paradigma, o STF indeferiu carta rogatória que continha um pedido de oitiva de testemunhas por magistrado argentino na Missão Diplomática deste país. No mesmo sentido, em 2020, o STJ decidiu que a inquirição direta pela autoridade judiciária francesa de parte brasileira por videoconferência, além de não possuir qualquer respaldo legal, violava a soberania nacional. Além de declarar que a medida se encontrava eivada de nulidade absoluta, a Corte ressaltou ser imperioso o respeito à competência para processamento de CJI em território brasileiro, nos termos do art. 105, III, i da Constituição Federal.
Vê-se, portanto, que a utilização do vídeo-link para cumprimento de medidas de CJI deve se sujeitar à prática judiciária adotada em cada Estado e sua admissibilidade dependerá de uma análise dos casos concretos. No entanto, o trabalho realizado pela HCCH, com a elaboração do Guia, procura facilitar a compreensão do instrumento, partindo da premissa de sua compatibilidade com as regras previstas pela Convenção de 1970.