#60. Em que momento se constitui o condomínio edilício no âmbito das incorporações imobiliárias?
Algumas reflexões sobre os impactos da Lei 14.382/2022
por Roberta Mauro Medina Maia
Introdução
Com o advento da Lei 14.382/2022, algumas modificações foram introduzidas na Lei 4.591/64 (Lei de Condomínio e Incorporações), contribuindo para melhor instruir a atividade registral no que tange à constituição de condomínios edilícios resultantes de incorporações imobiliárias e, consequentemente, reforçando a tutela endereçada por lei aos adquirentes de unidades autônomas alienadas “na planta”. Por tal motivo, as considerações a seguir se destinam a explicar as referidas mudanças e contextualizá-las diante dos percalços decorrentes da atividade exercida por incorporadores.
1. A especialidade dos direitos reais e o condomínio edilício resultante de incorporação imobiliária
Dentre as características tradicionalmente atribuídas aos direitos reais consta a especialidade, a qual reflete a exigência de o objeto do direito real recair sobre objeto certo e determinado, ao contrário do que ocorre na esfera das obrigações, as quais podem ter objeto indeterminado[1]. Por tal motivo, a atividade conduzida em incorporações imobiliárias, cujo escopo é a construção e ulterior entrega de unidades autônomas a terceiros adquirentes, sempre gerou certa perplexidade: consistindo na venda antecipada de apartamentos de um edifício a ser erigido, as unidades autônomas postas a venda quando do lançamento da incorporação ainda não existem fisicamente, o que poderia gerar dúvidas a respeito da observância do dogma da especialidade.
Nesse sentido, a Lei 14.382/2022 introduziu algumas mudanças na Lei 4.591/64 (Lei de Condomínio e Incorporações), ajudando a evidenciar que, mesmo diante das peculiaridades decorrentes da atividade de incorporação imobiliária, a especialização dos direitos reais por meio dela constituídos restará inequivocamente observada. Assim, o art. 32, i da Lei 4.591/64 impõe atualmente que o incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terreno e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação, do qual deverá constar, dentre outros documentos, “o instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão”.
Tal mudança legislativa demonstra que, quando resultante de incorporação imobiliária, o condomínio edilício se constituirá com o registro do Memorial de Incorporação no registro de imóveis, uma vez atendida a exigência disposta no art. 32, i da Lei 4.591/64. Assim, embora em tal ocasião inexista fisicamente a discriminação entre as partes de propriedade comum e as partes de propriedade exclusiva que compõem e caracterizam o condomínio edilício – espécie de condomínio especial –, é forçoso reconhecer que o registro do memorial de incorporação com a descrição das unidades futuras já está apto a, por si só, transformar terra nua em frações ideias a serem acrescidas de acessões previamente estipuladas. Tal fenômeno revela que, a partir de então, as referidas unidades, embora ainda não existam fisicamente, podem ser postas à venda, sendo objeto de novos direitos de propriedade ou de direitos decorrentes de promessa de compra e venda (CCB, art. 1.417). Resta atendida, portanto, a especialidade, sendo a individuação do objeto do direito real uma exigência decorrente de sua oponibilidade perante terceiros[2].
2. Problemas decorrentes do regime legal anterior
Como se não bastasse, o art. 32, §1º-A da Lei 4.591/64, com a redação introduzida pela Lei 14.382/2022 dispõe, atualmente, que o “registro do memorial de incorporação sujeita as frações ideais de terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe da anuência dos demais condôminos”. Com isso, resta cristalino o intuito legislativo de submeter tais frações ideais ao regime próprio do condomínio edilício desde o registro do memorial de incorporação no registro de imóveis, quando, por força do disposto no art. 32, i, acima mencionado, já se saberá quais são as características e a destinação das unidades futuras. Portanto, a despeito de sua inexistência física, o regime jurídico próprio do condomínio especial já lhes será aplicável, o que, para além de assegurar a observância do dogma da especialidade, impede, na hipótese de falência do incorporador ou sua destituição, que a Comissão de Representantes dos adquirentes de unidades autônomas atue, por certo tempo, numa espécie de limbo jurídico.
Esse último aspecto é relevante porque, quando a incorporação imobiliária é objeto de patrimônio de afetação (Lei 4.591/64, arts. 31-A e ss.), o terreno e as acessões que caracterizam o seu objeto constituem patrimônio apartado do restante patrimonial do incorporador. Assim, o §1º do art. 31-F da Lei 4.591/64 determina que nos casos de falência ou insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, convocado pela Comissão de Representantes para manifestar-se por meio da deliberação ali descrita, “instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, III)”.
Ora, a despeito da terminologia adotada no art. 31-F, o “condomínio da construção” é espécie condominial não tipificada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não estando, portanto, claros os seus efeitos. Por tal motivo, é benéfica a mudança contemplada no art. 32, §1º-A, o qual sujeita as frações ideais de terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial. Todavia, mudanças legislativas posteriores ao advento da Lei 4.591/64 fizeram com que diversas nomenclaturas fossem empregadas para descrever o “condomínio edilício”, expressão adotada no Código Civil em detrimento de “propriedade horizontal” – a preferida pelo Professor Caio Mario da Silva Pereira[3] –, bem como de “condomínio em edificações”, sendo essa última a opção esposada pelo legislador quando do advento da Lei 4.591/64. Tal aspecto pode, eventualmente, gerar dúvidas interpretativas acerca do que de fato desejava o legislador ao empregar a expressão “condomínio especial” no art. 32, §1º-A.
A análise da interpretação doutrinária referente ao instituto revela que a expressão “condomínio especial” é utilizada, no Brasil, em oposição ao condomínio geral, descrito nos arts. 1.314 a 1.330 do Código Civil. Em obras como a do professor Orlando Gomes, utiliza-se a expressão “condomínio especial em edifícios”[4], havendo também quem já tenha utilizado as expressões “condomínio especial” e “condomínio edilício” como sinônimos[5]. Em outras, mais recentes, a doutrina mais abalizada utiliza a expressão condomínios especiais como gênero, do qual o condomínio edilício, o condomínio de lotes, o condomínio em multipropriedade e os fundos de investimento seriam espécies[6].
A esse respeito, é importante mencionar que embora o art. 1.368-C do Código Civil de 2002 defina o fundo de investimentos como um “condomínio de natureza especial”, no intuito de apartá-lo de outras espécies condominiais, o mesmo dispositivo legal, em seu §1º, estipula que não se aplica ao fundo de investimento nenhuma das disposições do Código Civil sobre os condomínios. Chega-se, assim, à paradoxal espécie condominial “que não se sujeita a nenhuma regra típica da copropriedade”[7].
3. Consequências práticas das mudanças introduzidas pela Lei 14.382/2022
Embora o emprego da expressão “condomínio especial” em sede legislativa tenha se dado, nos últimos anos, de forma mais abrangente que a de início imaginada por civilistas brasileiros, em virtude da expansão das espécies de condomínio que fogem das regras propostas para a copropriedade geral (arts. 1.314 e ss.), é forçoso admitir que a redação do art. 32, §1º-A, ao sujeitar as frações ideais de terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial (grifos nossos), está se referindo ao condomínio edilício, o qual conjuga partes de propriedade comum a partes de propriedade exclusiva em edificações. Assim, a inexistência física do edifício no momento do registro do memorial de incorporação no registro de imóveis é irrelevante, pois a propriedade antes dita “horizontal” recairá sobre as unidades a serem erigidas, nascendo do registro do ato que as descreve e qualifica.
Relativamente a tal aspecto, é importante considerar que, nos termos do art. 1.227 do Código Civil, os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por ato entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos. Era no mínimo estranho, portanto, admitir, até a introdução do art. 32, §1º-A na Lei 4.591/64, que o adquirente de unidade autônoma resultante de incorporação imobiliária por preço global se tornasse seu proprietário a partir da averbação do habite-se da construção, sem que tivesse sido, antes, coproprietário de fração de terra nua. Não se constitui direito real por meio da averbação, a qual somente descreve modificação nele sofrida.
No caso em tela, é de se notar que o comprador de unidades resultantes de incorporação imobiliária por preço global não adquire previamente a propriedade de fração ideal de terra nua. A aquisição, nessa hipótese, recai sobre unidade a ser entregue pronta, em data posterior à da celebração do contrato, por estar ainda em construção: conforme se extrai do art. 41 da Lei 4.591/64, quando as unidades imobiliárias forem contratadas pelo incorporador por preço global compreenderão quota de terreno e construção (grifos nossos).
Consequentemente, é sobre unidades autônomas futuras, e não sobre frações ideias de terreno, que recaem os direitos reais constituídos a partir do registro do memorial de incorporação.
Não foi à toa, portanto, que Serpa Lopes, ainda antes do advento da Lei 4.591/64, alertou para o vácuo legislativo então existente a respeito do tema: comparando as unidades futuras a frutos pendentes numa árvore, os quais poderiam ser objeto de relações jurídicas de direito imobiliário, o autor defendia a previsão, por lei, da “criação desde logo da propriedade em planos horizontais, antes mesmo da construção de todos os apartamentos, justificando uma hipoteca sobre bens futuros”[8].
Por fim, o §15º do art. 32, também introduzido na Lei 4.591/64 por meio da Lei 14.382/2022, dispõe que o “registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre frações ideais constitui ato registral único”, revelando-se também aí a intenção legislativa de considerar que a constituição do condomínio edilício se dá com o registro do memorial, por ser esse o ato adequado à identificação das unidades – e não frações ideais de terra nua – como o efetivo objeto dos direitos reais constituídos sobre elas a partir do lançamento da incorporação. As mudanças legislativas aqui mencionadas destinam-se, portanto, a demonstrar que o registro do memorial de incorporação é ato apto a constituir novos direitos de propriedade, os quais terão como objeto unidades autônomas, integrantes de condomínio edilício instituído na mesma ocasião.
É necessário, portanto, que as corregedorias dos Estados adequem suas normas às mudanças impostas pela legislação federal, a exemplo do novo Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Provimento CGJ n. 87/2022), o qual estipula, no art. 1.351, que o registro da incorporação imobiliária institui o condomínio edilício, ensejando a cobrança de emolumentos por um único ato (art. 32, §§ 1º-A e 15º, da Lei 4.591/64).
Roberta Mauro Medina Maia
Mestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Graduação e do Mestrado Profissional em Direito Civil e Prática Jurídica da Puc-Rio. Advogada e parecerista.
[1] TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERÍA, Pablo. Fundamentos do Direito Civil, vol. 5 (Direitos Reais), 2ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2021, p. 10.
[2] Idem, p. 10.
[3] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Condomínio e Incorporações, 11ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2014, p. 42.
[4] GOMES, Orlando. Direitos Reais, 20ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2010, p. XVI.
[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Reais, 18ª ed. São Paulo: GEN/Atlas, 2018, p. 386.
[6] TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERÍA, Pablo. Fundamentos, vol. 5, pp. XVIII-XIX.
[7] TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERÍA, Pablo. Fundamentos, vol. 5, p. 290.
[8] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1952, v. VI, pp. 332/333.