1. Introdução[1]
Em dois julgados recentes o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de decidir feitos em que concorrentes imputavam ao contendente (mercadológico e processual) abusos na liberdade de expressão comunicativa. Em suma: (a) no primeiro feito – UNILEVER vs. HEINZ (sociedades empresárias que também atuam no ramo de ketchup) – a Autora imputou à sua concorrente a práxis de deslealdade competitiva, por também se autodenominar “melhor” e “verdadeira”[2]; e (b) no segundo caso – BURGER KING vs. MADERO (sociedades empresárias no ramo de lanchonetes) – a Demandante compreendeu que o uso da expressão de publicidade alheia (“o melhor hambúrguer do mundo”) era apto a gerar concorrência desleal, e para que o ato comunicacional fosse lícito, caberia ao emissor prová-lo em Juízo a veracidade informativa[3].
2. Contexto
Há ramos profissionais que exigem um grau de sobriedade, objetividade e precisão comunicativa que qualquer hipérbole pode ser vista como ato ilícito e violação da ética profissional. Como exemplos clássicos de tais labores, cogite-se a função do médico-paciente, do advogado-cliente, dos auxiliares do Juízo ou do próprio Órgão Judicial-jurisdicionado. “Dourar a pílula” seria um desserviço ao interlocutor, além de uma severa violação a deveres fiduciários.
De outro lado, quando se está diante da “indústria criativa”, roteiristas, desenhistas industriais e publicitários são alguns dos profissionais incumbidos da produção de narrativas sedutoras ainda que imprecisas. Dificilmente algum profissional da comunicação seria contratado ao propor como lema de venda do veículo automotor “1.0” os dizeres genuínos e descritivos ao mote de: “menos caro do que modelos mais potentes, desconfortável, apertado, feio, despido de benfeitorias/partes integrantes úteis, mas que está na moda”.
Em um contexto transformativo do que se passou entre a queda da segunda ditadura brasileira do século XX e o advento da Constituição Cidadã (além do Código de Defesa do Consumidor), alguns parâmetros foram alterados na compreensão da liberdade de expressão em um contexto capitalista. Por exemplo, era bastante comum que a doutrina privatista tomasse como distintas a prática do “dolus malus” e do “dolus bonus”.
Assim, no Brasil, autores como Francisco Amaral[4] e Francisco Clementino de San Tiago Dantas[5] enunciavam a tolerância com os exageros não enganosos do dolus bonus. Ainda entre os lusófonos, o saudoso jurista angolano José de Oliveira Ascensão apontava que “[q]uanto mais vasta a afirmação, menos perigosa é. A afirmação de que se é o melhor alfaiate do mundo é menos perigosa que a de que se é o melhor alfaiate daquela rua. (...) O comerciante afirma sempre que os seus serviços são excelentes, e só é enganado quem quer. Tem de haver um elemento concreto de engano para o tipo poder funcionar”[6].
Entretanto, tais posicionamentos ou focavam (i) na realidade edificada pre-CDC/1990; ou (ii) na legitimidade do concorrente em impugnar a conduta de quem com ele disputa a preferência da clientela/freguesia; sem (iii) atentar se os exageros comunicativos eram lícitos à parte mais frágil da relação: o consumidor. Por tal razão, parte da doutrina passou a criticar a tolerância com as interlocuções exageradas no comércio, vaticinando que nenhum tipo de imprecisão ou obscuridade comunicativa seria compatível com a Lei 8.078/90[7].
3. Crítica
A doutrina do citado professor Ascensão indica que as relações de concorrência traduzem um contexto em que um magoa o outro, pratica dano lícito e pode desviar o consumidor se o fizer por meios legítimos. Tal apresentação denota que a concorrência desleal é o abuso da liberdade de concorrência, havendo algum grau de penumbra entre o que é agressivo-lícito e o agressivo-ilícito.
No caso (a) acima descrito, o Tribunal da Cidadania compreendeu que o consumidor não realiza exegese literal das hipérboles descritivas de cada agente econômico. O destinatário da comunicação pode ter menos poder econômico, técnico e jurídico do que o emissor, mas isso não o transformaria em um néscio. Como compreendeu a 4ª Turma daquele Órgão Jurisdicional, “a recorrente, em sua argumentação, realiza uma excessiva infantilização do consumidor médio brasileiro, como se a partir de determinada peça publicitária tudo fosse levado ao pé da letra, ignorando a relevância das preferências pessoais, bem como a análise subjetiva de custo-benefício”.
Por sinal, o fato de que o demandante/recorrente gozava de um histórico de publicidades exageradas e mais apelativas que os da demandada/recorrida também foi tido como pertinente para o desacerto da pretensão. Afinal de contas, qual deslealdade haveria se a Ré pratica o que é comum naquele nicho econômico; e como exigir virtude alheia se a própria prática seria viciada[8]?
Quanto ao caso (b), discutia-se se o exagero discursivo do réu consistia em publicidade enganosa e se se deveria inverter o ônus da prova em desfavor do polo passivo, tendo em vista os mandamentos da Lei consumerista. Corretamente, o julgado da Terceira Turma do STJ compreendeu que o CDC pode ser fonte normativa apta a dirimir uma contenda entre sociedades empresárias, mas que tal não importaria em uma subsunção de todo e qualquer dispositivo.
Especificamente no contexto da situação jurídica subjetiva passiva do ônus probatório, a compreensão do deslocamento da carga para o polo passivo não teria qualquer condão de maximizar os valores protetivos ao consumidor. Como apontou o saudoso Ministro Sanseverino:
A transposição do referido dispositivo legal a uma relação concorrencial não representaria uma defesa maior do consumidor e sequer incrementaria a defesa da ordem econômica. Com efeito, em demanda envolvendo Direito da Concorrência, não se mostra correta a presunção de vulnerabilidade da parte autora, não se justificando a inversão direta e automática determinada pelo art. 38 do CDC[9].
Levando-se em consideração que em demandas de responsabilidade civil pautadas em concorrência desleal[10] já há alguma facilitação à suposta vítima/demandante com a incidência da responsabilidade objetiva (art. 187 do CC), somar tal benesse com a inversão do ônus da prova seria extremamente perigoso em termos de política judiciária. Se qualquer Réu (em demanda versando sobre suposto abuso da liberdade de concorrência) já iniciasse a contenda com maiores chances de condenação do que de “exoneração” de responsabilidade, provavelmente os concorrentes investiriam mais em litígio do que em inovação, melhorias no atendimento e em sua própria eficiência.
4. Conclusão
O STJ adotou entendimentos que compactuam com a doutrina clássica civilista segundo a qual o dolus bonus discursivo, no contexto da publicidade, é prática aceitável no Direito brasileiro. Cuidando-se de contendas entre concorrentes, hipersuficientes e contendores de mercados disputados (guloseimas, alto teor calórico, baixo teor nutricional) do hedonismo gustativo, o sodalício fez muito bem ao não adotar o paternalismo como vetor hermenêutico.
De outra monta, se as impugnações às formas exageradas de comunicação fossem ventiladas por um outro demandante (ex: uma ONG de representação de consumidores, um PROCON, o parquet Estadual), é possível que a legitimidade extraordinária trouxesse mais complexidade nos debates aos referidos julgamentos (ambos decididos por unanimidade). Fato é que o artigo 6º, III, da Lei 8.078/90 (e subsequentes), parece(m) pouco simpático(s) à ode do “tudo pode” no ambiente publicitário.
Se a nenhum padrão razoável de consumidores seria convincente a expressão publicitária de que o consumo de um energético é apto a transformar o destinatário em Ícaro (e suas asas), há mensagens mais opacas quanto à sua veracidade, podendo realmente causar embaraço, confusão e até desvio ilegítimo de clientela.
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados.
Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio.
Vascaíno e Músico Amador
[1] Agradeço às sugestões e à revisão atenta da Profa. Me. MAIA, L. B.
[2] STJ, 4ª Turma, Min. Marco Aurélio Buzzi, REsp 1.759.745/SP, julg. 28.02.2023.
[3] STJ, 3ª Turma, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, REsp 1.866.232/SP, DJ. 23.03.2023.
[4] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 9ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 601.
[5] DANTAS, Francisco Clementino de San Tiago. Programa de Direito Civil (Parte Geral). Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945). Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 286.
[6] ASCENSÃO, José de Oliveira. Concorrência desleal. Coimbra: Almedina, 2002, p. 533.
[7] “Como conseqüência desse princípio da boa-fé, há vários outros princípios que se aproximam do Código do Consumidor. Qual a conseqüência da boa-fé? Em primeiro lugar o dever de informar. Quem tem boa-fé não esconde nada, não tem dolus bonus, tudo informa, esclarece” CAVALIERI FILHO, Sérgio. O novo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. Convergências ou antinomias. Rio de Janeiro: Revista da EMERJ, v. 5, n. 20, 2002, p. 106.
[8] “Neste contexto, muito embora a relação entre as partes não seja regida por contrato, inadmissível afastar a observância à boa-fé objetiva, nem os seus princípios parcelares, não sendo razoável a Unilever exigir que a Heinz pare de veicular anúncios com técnicas publicitárias de exagero da mensagem utilizadas pela própria recorrente. Em uma relação de mercado, na qual as partes são concorrentes, se uma delas utiliza determinados recursos publicitários para acrescer sua clientela, gera-se a legítima confiança entre todos de que este modo de agir é adequado e permitido naquele cenário" (STJ, 4a Turma, Min. Marco Aurélio Buzzi, REsp 1.759.745/SP, julg. 28.02.2023).
[9] STJ, 3ª Turma, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, REsp 1.866.232, DJ. 23.03.2023.
[10] Para mais detalhes, permita-se remissão ao BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de concorrência desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 301 e seguintes.