# 36. Negócio processual: breve apresentação
por Fredie Didier Jr.
Negócio processual é o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se reconhece ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados pelo ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento.
O negócio jurídico processual está inserido numa categoria mais ampla: negócio sobre o modo de solução de um problema jurídico, atual ou futuro – modo esse que pode não ser o processo jurisdicional. O § 3º do art. 3º do CPC é uma cláusula geral que permite aos interessados engenhar, consensualmente, o modo como o conflito pode ser resolvido. Na mesma linha, o art. 2º, V, Lei n. 13.140/2015 é expresso ao determinar que a mediação é regida pelo princípio da autonomia da vontade, o que permite que as partes definam as respectivas regras.
A ampla possibilidade de as partes de um conflito poderem definir o modo como este conflito pode ser resolvido é uma das principais características do sistema brasileiro de justiça multiportas, que está em permanente expansão: é sempre permitido que se crie uma nova “porta” pela autonomia da vontade.
Há diversos exemplos de negócios processuais:
(i) a eleição negocial do foro (art. 63, CPC);
(ii) o negócio tácito de que a causa tramite em juízo relativamente incompetente (art. 65, CPC);
(iii) o calendário processual (art. 191, §§ 1º e 2º, CPC);
(iv) renúncia ao prazo (art. 225, CPC);
(v) o acordo para a suspensão do processo (art. 313, II, CPC);
(vi) organização consensual do processo (art. 357, § 2º);
(vii) o adiamento negociado da audiência (art. 362, I, CPC);
(viii) a convenção sobre ônus da prova (art. 373, §§ 3º e 4º, CPC);
(ix) a escolha consensual do perito (art. 471, CPC);
(x) o acordo de escolha do arbitramento como técnica de liquidação (art. 509, I, CPC);
(xi) o acordo de impenhorabilidade (art. 833, I, CPC);
(xii) a desistência do recurso (art. 999, CPC);
(xiii) o pacto de mediação prévia obrigatória (art. 2º, § 1º, Lei n. 13.140/2015);
(xiv) o acordo para escolha do meio de comprovação da autoria;
(xv) integridade e confidencialidade de documentos em forma eletrônica (art. 18, I, Lei n. 13.874/2019);
(xvi) o acordo de não persecução cível (art. 17-B, Lei n. 8.429/1992, acrescentado pela Lei n. 14.230/2021);
(xvii) acordo para interrupção de prazo de contestação (art. 17, § 10-A, Lei n. 8.429/1992) etc.
Todos são negócios processuais típicos.
O CPC-2015
O tema “negócio processual” ganhou enorme tração após o CPC-2015, que não apensa ampliou o rol de negócios típicos, como também trouxe uma cláusula geral de negociação processual, que permite o surgimento de negócios processuais atípicos (art. 190). O assunto repercutiu em leis posteriores, com a da Liberdade Econômica, o Pacote Anticrime, a da Transação Tributária e a Lei de Falência e Recuperação Judicial.
O negócio processual se distingue do negócio material pelo objeto: o negócio é material quando serve para resolver o problema, o conflito; o negócio processual serve para definir as “regras do jogo”, sem estabelecer quem será o vencedor. Negócio processual é negócio sobre o processo; negócio material é negócio sobre o mérito, para simplificar.
Os negócios processuais atípicos
No CPC-2015, é possível verificar negócios processuais típicos e atípicos. O espectro de negócios jurídicos processuais que podem ser celebrados é muito variado. É possível haver negócios jurídicos unilaterais e convenções processuais. Os acordos podem ser convenções dispositivas, e terem como escopo estipular a regra de procedimento (por exemplo, acordo sobre a competência executiva ou sobre os bens penhoráveis), como podem também ter por objeto uma situação jurídica processual, quando as partes deliberam a respeito de um agir ou não agir no processo (por exemplo, o pactum de non exequendo). Em qualquer caso, o negócio jurídico cria vínculos de natureza processual que impõem deveres entre os convenentes, ainda que seja atípico.
0 art. 190 do CPC autoriza que as partes firmem convenções processuais atípicas. Uma das questões que deve ser enfrentada pela doutrina e pelos tribunais é a da possibilidade de as pares firmarem negócio jurídico processual em torno do título executivo extrajudicial.
Há duas possibilidades básicas. Primeiro, poderiam as partes convencionar para retirar a eficácia de título executivo de algum documento que conste da lista do art. 784 do CPC, porque a executividade de um título é efeito que se encontra no âmbito da disponibilidade do credor, que pode, inclusive, optar por não promover a execução. As partes podem, por exemplo, decidir que o título serve apenas à ação monitória. O art. 785 do CPC, que permite ao sujeito que possua título executivo propor ação de conhecimento, em vez de ação de execução, reforça esse entendimento.
A segunda variante é mais controversa. Trata-se de uma convenção sobre a exequibilidade de um determinado documento, uma disposição negocial determinando que um documento é válido e eficaz para a instauração da atividade executiva. Em alguns países, admite-se, nos limites estabelecidos em lei, a inserção da cláusula executiva em contratos com efeito atributivo de exequibilidade.
No Brasil, poderiam as partes convencionar para atribuir a eficácia de título executivo de algum documento que não conste da lista do art. 784, CPC? Embora a doutrina normalmente negue tal possibilidade, parece-nos que sim, também. O rol de títulos executivos extrajudiciais do Direito brasileiro é basicamente formado por atos jurídicos, todos eles produtos do exercício do poder de autorregramento da vontade.
Já dissemos isso em diversas oportunidades: a expansão dogmática dos negócios processuais, pós CPC-2015, é a maior transformação do Direito Processual Civil brasileiro pelo menos desde dezembro de 1994. Conhecê-lo é absolutamente fundamental.