# 23. Enriquecimento sem causa por lucro da intervenção e responsabilidade civil: funções distintas, mas complementares
No direito brasileiro, a responsabilidade civil percorreu virtuoso caminho em direção à proteção prioritária da vítima: expandiram-se os danos indenizáveis com a identificação de novos interesses merecedores de tutela; mitigou-se o nexo de causalidade a partir do desenvolvimento da noção de fortuito interno; e facilitou-se a imputação de responsabilidade ao agente com a superação da noção de culpa subjetiva em favor da ideia de culpa normativa, bem como com a ampliação das hipóteses submetidas à responsabilidade objetiva.[1] A responsabilidade civil assume, assim, crescente protagonismo na prática jurídica, sendo invariavelmente invocada diante da violação de direitos.
Ocorre, todavia, que a ampliação do espectro de atuação da responsabilidade civil não a transformou em remédio que tudo cura. Embora flexibilizados, os elementos para sua incidência são bem definidos e, ausente qualquer deles, não há que se cogitar de indenização, ainda que os demais estejam presentes. Nem sempre, portanto, a lesão a interesse tutelado autoriza o seu titular a buscar ressarcimento; para tanto, é imprescindível a presença – e a prova – do dano, elemento que não apenas estabelece o direito à indenização (an debeatur), mas que também determina a medida da indenização (quantum debeatur).
De fato, à luz do art. 944, caput, do Código Civil, em regra, nenhum outro fator deve ser considerado para fins de quantificação da indenização além da extensão do dano. Pouco importa o quão dolosa ou maliciosa tenha sido a conduta do ofensor, ou mesmo a extensão (não já do dano sofrido, mas) do lucro por ele auferido a partir da violação do interesse alheio. A responsabilidade civil não se ocupa da conduta do agente, de punir o malfeito ou de impedir a obtenção de proveitos econômicos com base em violações de direitos de terceiros. O foco da responsabilidade civil é a vítima, razão pela qual todos os critérios de quantificação da indenização devem se reconduzir ao dano e às suas repercussões para a vítima. Com efeito, situações em que a lesão a direito não causa dano ao seu titular, mas gera lucro para o agente ou gera um lucro maior do que o dano sofrido pela vítima, não são resolvidas pela responsabilidade civil.
Pense-se, por exemplo, na situação em que alguém usa, sem a autorização, a casa de veraneio do vizinho enquanto ele viaja para o exterior, poupando o aluguel que pagaria para alugar outra casa pelo mesmo período; ou, ainda, na hipótese em que certa empresa farmacêutica se utiliza de imagem de famosa atriz em campanha publicitária, sem a sua autorização, para promover produto supostamente emagrecedor, incrementando consideravelmente suas vendas. No primeiro caso, se o proprietário fosse manter a casa fechada durante a sua viagem e se o agente não tiver danificado qualquer bem do imóvel, provavelmente o proprietário não terá sofrido danos com a utilização não consentida da sua propriedade; no segundo, é bem possível que o lucro auferido pela empresa tenha sido significativamente superior ao dano sofrido pela atriz com o uso não autorizado da sua imagem. Em situações como essas, a responsabilidade civil não será capaz de remover do patrimônio do agente a vantagem por ele obtida com a poupança de despesa ao usar a casa sem autorização, e tampouco de retirar do patrimônio da empresa o lucro excedente ao dano sofrido pela atriz. Esse lucro ilegitimamente auferido não pode ser considerado critério para a quantificação de danos.[2]
Isso não significa, todavia, que o “crime compense”. Embora a responsabilidade civil só atue se houver dano e na medida do dano, o ordenamento jurídico brasileiro oferece outro instituto capaz de retirar do patrimônio do agente o lucro obtido com a conduta violadora de interesses alheios: o enriquecimento sem causa por lucro da intervenção.
Como se sabe, enquanto a responsabilidade civil se volta à reparação do dano sofrido pela vítima, o enriquecimento sem causa se ocupa da reprovabilidade da conduta do agente perante os princípios do sistema e visa à remoção do enriquecimento obtido sem título jurídico legítimo do patrimônio do enriquecido. Pouco importa em sede de enriquecimento sem causa a modificação do patrimônio do titular da situação jurídica que fundamentou o locupletamento alheio, ou a existência, ou não, de dano, mas apenas o incremento juridicamente reprovável do patrimônio do agente.
No lucro da intervenção, o enriquecimento decorre da exploração de bens, trabalho ou direitos alheios: o agente interfere, sem autorização, em situação jurídica subjetiva alheia e experimenta efetivo aumento do ativo, diminuição do passivo ou poupança de despesa. A ideia que subjaz à construção é esta: tudo o que os bens e direitos são capazes de produzir e render pertencem ao seu titular com exclusividade, e a ninguém é dado disso se beneficiar sem título que o autorize. Desse modo, se alguém interfere, sem título jurídico, em bens e direitos alheios e aufere vantagens a partir dessa intervenção, o faz indevidamente, e deve retirar do seu patrimônio os proveitos granjeados, entregando-os ao titular desses bens e direitos. Cuida-se, portanto, de figura ligada ao direito restitutório: sua função é restituir o patrimônio do ofensor à situação em que estaria se não tivesse havido a intervenção.
Considerando-se a subsidiariedade do enriquecimento sem causa (art. 886, CC), o lucro da intervenção se limita à parcela de benefício econômico a que não corresponda qualquer dano sofrido pelo titular. Ou seja: se da intervenção também sobrevier dano ao titular do bem ou direito, a responsabilidade civil cuidará de indenizá-lo na medida exata do dano, ao passo que o enriquecimento sem causa se ocupará de retirar do patrimônio do agente o lucro remanescente, isto é, o valor que ainda permanecer no seu patrimônio após o pagamento da indenização. Significa, portanto, que se a situação locupletativa e a situação lesiva forem as mesmas, isto é, se o evento gerador do enriquecimento for também o causador da lesão, todos os montantes pagos pelo agente a título de indenização devem ser considerados para a quantificação do montante a ser excluído do seu patrimônio a título de enriquecimento sem causa. E é precisamente este aspecto um dos mais complexos do lucro da intervenção: a quantificação do valor a ser restituído ao titular do direito, sobre o qual se tratará em um próximo “Em foco”.
Por ora, vale destacar a relevância de qualificar corretamente cada uma das verbas entregues ao titular do direito. Como se tem insistido, é a correta qualificação dos fatos que permite identificar o regime jurídico a eles aplicável. Ao se qualificar determinada situação como dano ou como lucro da intervenção e, consequentemente, as verbas atribuídas ao titular do bem ou direito como indenização ou como restituição, atrai-se a disciplina da responsabilidade civil para a primeira e a do enriquecimento sem causa para a segunda, com repercussões práticas relevantes. Basta pensar que, havendo cláusula limitativa de responsabilidade ou cláusula penal, apenas a verba devida a título de indenização será por elas impactada, sem qualquer repercussão sobre a verba devida a título de restituição, e essa distinção pode, evidentemente, repercutir de forma significativa no montante final total a que o titular do bem ou direito fará jus.
Aline Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Sócia em Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[1] Sobre referidos temas, seja consentido remeter a TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. vol. 4, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2022, pp. 59, 112, 121, 131.
[2] A despeito da incompatibilidade do conceito de dano com a utilização do lucro auferido pelo ofensor como um dos parâmetros para a quantificação da indenização, o art. 210 da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996) permite a utilização de referido critério para o cálculo dos lucros cessantes, a excepcionar o art. 944 do Código Civil.