#5. Impossibilidades como perturbações estruturais e funcionais do negócio jurídico
O Código Civil de 2002 tratou das impossibilidades da prestação[1] sob perspectiva exclusivamente estrutural,[2] deixando de concebê-la também como espécie de perturbação funcional do negócio jurídico, em que impossível não é a prestação em si, mas a satisfação do interesse do credor por meio da execução da prestação.
Pense-se, por exemplo, na impossibilidade temporária e definitiva. Diz-se temporária a impossibilidade que está limitada no tempo, sendo fadada a desaparecer, como ocorre quando o contrato de transporte rodoviário não pode ser temporariamente executado por interdição passageira da estrada em razão de deslizamento de terra. Definitiva, por sua vez, é a impossibilidade irreversível, como se verifica quando o objeto infungível é destruído por evento fortuito. No plano dos efeitos, esta resolve a relação obrigacional, enquanto aquela apenas suspende a exigibilidade da prestação, que fica postergada para o momento em que a execução se tornar possível novamente.
O parâmetro é, portanto, exclusivamente estrutural, revelando-se insuficiente. Por vezes, ainda que sua duração seja limitada no tempo, a impossibilidade estruturalmente temporária é funcionalmente definitiva, pelo que devem ser produzidos os efeitos normalmente deflagrados pela clássica impossibilidade definitiva. De fato, ainda que temporária, se o credor não puder aguardar a cessação da impossibilidade porque o retardamento na execução da prestação a tornará inútil, incapaz de promover os fins perseguidos com a celebração do contrato, há de se qualificá-la como definitiva,[3] como ocorre quando o cantor contratado para se apresentar em certo casamento é acometido por doença que, embora curável, lhe impede de estar presente na data do enlace. Da mesma forma, a fim de conciliar o interesse do credor em conservar o vínculo contratual enquanto a prestação lhe é útil, com a inadmissibilidade de se manter a posição debitória por prazo indeterminado, sobretudo considerando-se a temporariedade dos vínculos contratuais, deve-se considerar definitiva a impossibilidade temporária quando o seu prolongamento excessivo se revelar abusivo. Imagine-se a situação em que o governo proíba a importação de certo bem típico de determinado país enquanto durar a guerra por ele deflagrada; o prolongamento excessivo da guerra poderá liberar o importador que contratara com certo distribuidor da obrigação anteriormente assumida.
Raciocínio semelhante tem sido empregado na análise da impossibilidade total e da parcial. Afigura-se total a impossibilidade que impede a realização de toda a prestação e parcial aquela que compromete apenas uma certa parcela da prestação. A primeira resolve a relação obrigacional, ao passo que a segunda conserva a relação, posto que reduzida. Contudo, se somente uma parte da prestação se tornar impossível, mas a fração remanescente for incapaz de satisfazer o interesse objetivo do credor, privando a relação obrigacional de sua função, a impossibilidade há de ser qualificada como total, a resolver a relação obrigacional.
Em todas as situações analisadas, mesmo quando se procede à análise funcional, investigando-se a repercussão do fato no interesse do credor, o fato impeditivo atinge, de forma direta e imediata, a prestação-objeto. Há, contudo, situações em que o fato atinge exclusivamente a prestação-utilidade: embora a execução da prestação-objeto pelo devedor se afigure plenamente possível, ela será estéril, pois a utilidade que dela se buscava originalmente extrair já não pode mais ser alcançada. O conceito de prestação-utilidade se liga, portanto, à ideia de prestação enquanto resultado.
Ora, se a relação obrigacional deixa de ser analisada apenas sob perspectiva estrutural, assumindo destacada relevância o viés funcional, também a prestação há de ser examinada sob essa dupla abordagem, reconhecendo-se que o conceito de prestação abarca o interesse do credor na conduta devida. Nessa esteira, a impossibilidade da prestação deve ser compreendida como fenômeno abrangente, apto a contemplar não apenas a impossibilidade da prestação-objeto, mas também a impossibilidade da prestação-utilidade.
Aliás, em sentido semelhante, é o que se verifica no âmbito do inadimplemento absoluto, que resta configurado não apenas quando a prestação se torna impossível por fato imputável ao devedor, mas também quando se torna impossível satisfazer o interesse útil, concreto e objetivo do credor, por fato imputável ao devedor (art. 395, p. único, do Código civil).
Com efeito, se no inadimplemento absoluto o credor fica impedido de buscar a execução específica porque ela não é mais factível diante da impossibilidade da prestação-objeto, ou fica dispensado de buscá-la simplesmente porque a prestação se lhe tornou inútil, raciocínio semelhante deve ser aplicado no âmbito da teoria das impossibilidades: o credor fica impedido de pleitear a execução específica porque ela já não se afigura mesmo viável diante da impossibilidade da prestação-objeto, ou então o credor fica dispensado de persegui-la diante da impossibilidade de se realizar a prestação-utilidade, voltada ao atingimento do fim do contrato.
Assim, conquanto possível a execução da prestação-objeto, tornando-se impossível a prestação-utilidade por evento superveniente, resolve-se a relação obrigacional. É o que ocorre quando o barco encalhado é desencalhado por forte onda antes de o reboque contratado executar o serviço (impossibilidade por perda de sentido prático da prestação); o paciente morre antes da cirurgia (impossibilidade por desaparecimento do fim); ou, no caso conhecido de todos, o rei Eduardo VII é acometido por apendicite e o desfile da coroação é suspenso após a locação de imóveis localizados na rua em que passaria o cortejo (impossibilidade por frustração do fim).
Em suma, o fenômeno da impossibilidade só pode ser adequadamente compreendido a partir de concomitante exame estrutural e funcional, perquirindo-se não apenas a possibilidade ou impossibilidade da prestação-objeto, mas também a possibilidade ou impossibilidade da prestação-utilidade. Referida percepção permite estender o regime das impossibilidades a situações como a frustração do fim do contrato, a perda de sentido prático da prestação e o desaparecimento do fim, autorizando o credor, nessas hipóteses, a não perseguir a execução específica e resolver a relação obrigacional que se tornou, ao fim, inútil. Nesses casos, o desafio do intérprete reside em definir quem arcará com eventuais gastos já incorridos pelo devedor para a execução da prestação antes de configurada a sua inutilidade, o que será tratado em coluna futura.
[1] O regime jurídico das impossibilidades da prestação pressupõe a inimputabilidade. Se a impossibilidade decorrer de fato imputável ao devedor, já não se aplicará o regime das impossibilidades, mas sim o do inadimplemento.
[2] Como se depreende, por exemplo, dos arts. 234, 248 e 250 do Código Civil.
[3] À semelhança do que ocorre quando a mora é convertida em inadimplemento absoluto, nos termos do parágrafo único do art. 395 do Código Civil.