#28. Interrupção da prescrição: quando o credor sai da inércia em defesa da sua pretensão
STJ decide que o ajuizamento de ação revisional pelo devedor interrompe a prescrição
Nota preliminar: a prescrição e o binômio tempo/inércia
Cuida-se a prescrição de instituto por meio do qual o legislador busca promover a estabilização das relações, equilibrando dois princípios caros à ordem jurídica brasileira: o da justiça e o da segurança jurídica.[1] De fato, posto justo que o titular do direito subjetivo exija o cumprimento da prestação que lhe é devida, o devedor não pode ficar indefinidamente à mercê da sua vontade. Por isso, o legislador estabeleceu prazos dentro dos quais lhe é facultado exercer a sua pretensão, após os quais, mantendo-se inerte, não poderá mais fazê-lo. O decurso do tempo e a inércia do credor são, portanto, os elementos constitutivos da prescrição. Nesse contexto, se o credor está inerte porque não pode agir, suspende-se a prescrição (arts. 197 e 198, Código Civil). Da mesma forma, quando o próprio devedor reconhece a subsistência do direito, ou quando o credor sai da inércia e age no sentido de exercer a sua pretensão, interrompe-se a prescrição (art. 202, Código Civil). A Terceira Turma enfrentou, justamente, esta última situação no REsp 1.956.817/MS em comento.[2]
O tema em pauta
Os Recorrentes celebraram contrato de mútuo com garantia hipotecária. Ajuizaram ação para revisão da dívida, antes de o credor iniciar a ação de execução. Cingiu-se a controvérsia em saber se a ação revisional movida pelo devedor interrompeu a prescrição da pretensão executiva em favor do credor demandado.
O tema não é novo no STJ, e tem sido objeto de decisões divergentes mesmo no âmbito de cada uma das duas Turmas de Direito Privado. As decisões contrárias à eficácia interruptiva da ação revisional – embora, em sua maioria, não tenham debatido detalhadamente o tema por se tratar de julgados oriundos de decisões monocráticas mantidas depois do julgamento dos agravos internos contra elas interpostos – baseiam-se, no mais das vezes, no enunciado da Súmula nº 380/STJ, segundo o qual “a simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe a caracterização da mora do autor”. Afirma-se que “como a ação revisional não exclui a mora do devedor (Súmula 380/STJ), também não possui o condão de interromper o prazo prescricional da ação executiva. Isso, porque o manejo da revisional não impede que o credor busque a satisfação do seu crédito”.[3] Esse, todavia, não foi o entendimento da decisão em pauta.
A decisão em pauta
Em voto condutor, seguido à unanimidade, o Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva afirmou que a ação revisional movida pelo devedor é causa interruptiva da prescrição da pretensão executiva. Para alcançar referida conclusão, o Ministro desconstruiu, em primeiro lugar, o raciocínio silogístico das decisões contrárias à eficácia interruptiva e, na sequência, justificou o seu entendimento a partir da análise do fundamento das causas de interrupção da prescrição. O caminho percorrido foi este:
1. Não há necessária relação de causa e efeito entre mora e transcurso do prazo prescricional. De acordo com o Relator, o fato de o devedor estar em mora não implica, necessariamente, o concomitante transcurso do prazo prescricional. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, por exemplo, considera-se em mora o devedor desde que o praticou (art. 398, Código Civil), embora a jurisprudência do STJ entenda que “em caso de responsabilidade civil decorrente de ato ilícito, o prazo prescricional começa a correr a partir da ciência do fato ensejador da reparação”.[4] Não se pode, portanto, considerar a mora como “marco definitivo da fluência da prescrição”, razão pela qual o fato de o ajuizamento da ação revisional não inibir a mora do devedor não significa que não possa produzir efeitos em relação ao transcurso da prescrição.
2. Basta à interrupção da prescrição o exercício de ação por qualquer das partes. O que importa para a interrupção da prescrição é a quebra da inércia do credor, que pode decorrer do ajuizamento da ação executiva ou de “qualquer outro meio que evidencie a defesa do crédito representado pelo título executivo”. O art. 794, §1º do CPC, segundo o qual “a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”, não pode ser interpretado como se estivesse a indicar o ajuizamento da ação executiva como a única forma de o credor demonstrar atitude ativa voltada ao exercício da sua pretensão. Nesse sentido, concluiu o Ministro Relator que “o exercício do direito de ação por qualquer uma das partes interrompe a prescrição relativa à determinada pretensão, exatamente porque o ajuizamento de uma demanda, tanto pelo credor quanto pelo devedor, buscando ou impugnando precisamente o objeto da relação obrigacional, conduz à quebra da inércia que frustra a prescrição”.
Nota final
Suspensão e interrupção da prescrição se baseiam em circunstâncias distintas: a primeira decorre da dificuldade ou da impossibilidade de o credor exercer sua pretensão, e independe da sua vontade; a segunda deriva de fatos subjetivos provocados pelas partes que denotam a ausência de inércia do credor ou o reconhecimento do direito pelo devedor. O fato de o credor não estar impedido de ajuizar a ação executiva durante a ação revisional se afigura irrelevante para fins de interrupção. Cuidando-se de interrupção, o STJ afirmou que o foco da análise não é se o credor pode ou não agir (seara da suspensão), mas se ele sai ou não da inércia para tutelar o seu crédito, o que se verifica quando, mesmo no âmbito de ação movida pelo devedor, ele comparece aos autos para defender o seu direito. Não é, portanto, quem toma a iniciativa para o ajuizamento da ação que releva para a interrupção da prescrição, mas a constatação de que, no âmbito dessa ação, o credor deixou a inação e o comodismo, para, enfim, perseguir a satisfação de seus interesses.
Aline Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Sócia em Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[1] Em passagem clássica sobre os fundamentos da prescrição, Clóvis Bevilaqua pondera que “a prescrição é uma regra de ordem, de harmonia e de paz, imposta pela necessidade de certeza nas relações jurídicas: finis sollicitudinis et periculi litium, exclamou Cicero. Tolhe o impulso intempestivo do direito negligente, para permitir que se expandam as forças sociais, que lhe vieram ocupar lugar vago. E nem se pode alegar que há nisso uma injustiça contra o titular do direito, porque, em primeiro lugar, ele teve tempo de fazer efetivo o seu direito, e, por outro, é natural que o seu interesse, que ele foi primeiro a desprezar, sucumba diante do interesse mais forte da paz social” (BEVILAQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1908, p. 382). Sobre o fundamento da prescrição, vide TERRA, Aline de Miranda Valverde; CERVASIO, Daniel Bucar. Autonomia privada e prazos prescricionais. In: Pensar. Fortaleza, v. 22, n. 3, set./dez. 2017, p. 1-19.
[2] STJ, 3ª T., REsp 1.956.817/MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 14/6/2022.
[3] STJ, 4ª T., AgInt no AREsp 1.339.926/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, j. 5/2/2019.
[4] STJ, 4ª T., AgInt no REsp 1.759.188/DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 29/3/2021. Sobre a ciência do lesado e o início do prazo prescricional, vide STEINER, Renata C. A ciência do lesado e o início da contagem do prazo prescricional. In: Revista de Direito Privado | vol. 50/2012 | p. 73 e sg.