#3. O que teriam em comum danos consequentes e os consequential damages?
(ou: nota brevíssima sobre as armadilhas da linguagem jurídica na responsabilidade civil)
por Judith Martins-Costa
As palavras são o instrumento do Direito. Mas palavras são fugidias, ambíguas, plenas de armadilhas que aprisionam o jurista desatento, aquele que se deixa encantar com as sinonímias aparentes e, com frequência, cai na arapuca dos falsos cognatos. A esses enganosos artifícios da língua estão sujeitos os que se aventuram, sem método, a fazer comparação jurídica.
É o que já ocorreu, por exemplo, com a expressão punitive damages, que alguns pretenderam traduzir como “danos punitivos”; ou com indemnity clause, que às vezes -não se sabe por quais estranhos caminhos - aporta em solo nacional como “cláusula penal”. Igualmente, é o que obscurece a expressão indirect damages, distinta, conceitualmente, daquela transmitida no direito brasileiro pela locução “danos indiretos”. E é o que pode vir a ocorrer com a expressão “consequência” e seus adjetivos derivados - consequente e consequencial - quando conotada ao termo dano, tema dessas brevíssimas notas que pretendem responder à seguinte questão: os consequential damages das fórmulas contratuais de common law (que, agora, começam a polvilhar contratos redigidos em língua portuguesa) seriam “danos consequenciais”? Ou seriam os “danos consequentes” mencionados, por exemplo, no art. 779 do Código Civil?
A resposta para ambas as questões é um taxativo não.
O falso cognato estabelecido entre as expressões linguísticas danos consequenciais e consequential damages não deve embaralhar os conceitos que estão por detrás da vizinha sonoridade das palavras.
A expressão “consequential damages”, a designar figura criada pelas cortes de common law[1], é ambígua, abarcando vários focos de significações[2]. Segundo critérios reiterados pela doutrina, jurisprudência, legislação internacional e consolidações práticas posteriores ao reconhecimento do leading case na matéria[3], assim se designam os danos ocasionados no âmbito de uma relação contratual, atinentes a circunstâncias especiais, as quais – por serem justamente especiais ou excepcionais (embora previsíveis) segundo determinados critérios exigidos pelo Direito para gerar o dever de indenizar – não se confundem com os prejuízos que normalmente, segundo o curso regular de um contrato similar, são indenizáveis. Sendo tais circunstâncias especiais previsíveis, ou passíveis de previsão, os consequential damages serão indenizáveis[4].
Para compreendê-los, é preciso ter em conta o contexto jurídico-cultural. No common law, os marcos teóricos da extensão do dano não estão fixados por determinada construção teórica estabelecida a priori e visualizada in abstracto, da qual são retirados, por um raciocínio dedutivo, os critérios que pautarão, nos casos concretos, a determinação do alcance do dever de indenizar (como ocorre nos sistemas que adotam, por exemplo, a Teoria da Causalidade Adequada). Assim, foi necessário preencher essa função por construção jurisprudencial. Essa se deu a partir do caso Hadley v. Baxendale ali sendo estabelecidas, por via de um raciocínio indutivo, as balizas pelas quais, nos vindouros casos concretos, um juiz poderia determinar “o que” e “o quanto” dos prejuízos seriam ressarcíveis por meio da imposição de uma indenização[5]. Como bem definiu estudiosa portuguesa – também oriunda da tradição do civil law e atenta aos marcos teóricos da Causalidade Adequada – os consequential damages “são danos diretamente resultantes do incumprimento contratual, que não resultam direta e naturalmente do ordinário decurso dos eventos”[6].
Coisa diversa é a expressão legal “danos consequentes”, que igualmente não serve para indicar, em nossa inculta e bela língua portuguesa, o instituto que, no common law, é denominado como consequential damages
Comanda o art. 779 do Código Civil que “o risco do seguro” compreende não apenas o “dano origem”: abarca, igualmente, todos os danos que sejam sua consequência na mesma cadeia causal, cabendo, então, ressarcir (por indenização e por reembolso[7]) danos e despesas (“estragos”) feitas para minorá-los, evitá-los ou salvar o patrimônio do segurado.
O telos da regra legal volta-se, em primeiro lugar, a apontar à extensão do dano situado num nexo causal que contempla não apenas o “dano origem”, mas, igualmente, aqueles outros, advindos como sua consequência lógica (embora possa ser cronologicamente distanciada) abarcando, inclusive, os derivados da adoção de ações necessárias para minimizar os efeitos do sinistro. Em segundo lugar, impõe dever legal ao segurador quando, ocorrido ou ameaçado o sinistro, desloca-se para esse o interesse em evitar ou minimizar as suas consequências. “É o segurador, responsável pela indenização contratual, que tem o interesse principal em que o sinistro não se concretize ou em que seus efeitos patrimoniais sejam contidos ou reduzidos”[8]. A Lei aí prevê o correlato necessário ao dever de minimizar o dano, imposto ao segurado no art. 771. Articula-se a parte final do art. 779, com a regra do art. 771, que contempla o chamado “dever de mitigar o prejuízo”[9]. Numa, atribui-se o dever jurídico; noutra, se estabelece a consequência do cumprimento desse dever.
Como se vê, nenhuma correspondência há entre danos consequentes e consequential damages.
Que esse exemplo sirva para registrar a acurácia dos comparatistas[10] quando bradam ao nulo valor das traduções literais e aos enganos gerados pelo nominalismo, fenômeno manifesto quando a denominação sobrepõe-se à significação[11]. Mas que sirva também para alertar aos civilistas sobre a importância do uso rigoroso dos conceitos, aos perigos da importação de Direito Estrangeiro (que não é Direito Comparado), auxiliando-nos a evitar as arapucas do anacronismo e do valor meramente facial das palavras usadas em nossas construções jurídicas.
Canela, janeiro de 2022
Judtih Martins-Costa
Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas. Livre Docente pela Universidade de São Paulo. Foi Professora de Direito Civil na UFRGS. Membro da Academia Brasileira de Direito, dentre outras instituições e autora de livros de doutrina jurídica.
[1] FARNSWORTH, Allan. Contracts. New York: Aspen Publishers, 2004, p. 793. EISENBERG, Melvin A. Foundational principles of contract law. Nova Iorque: Oxford, 2018, pp. 239-254 (Edição Kindle).
[2] Pode-se detectar ao menos cinco significações, a saber: expectation loss; reliance loss; indirectly caused damage; indirect damage according the second branch of the Hadley rule; abnormal damage. (Assim aponta HERBOTS, Jacques. Why It Is III-Advised to Translate Consequential Damage by Dommage Indirect. European Review of Private Law, 6-2011 (931-949). Kluwer Law International BV.
[3] Hadley v. Baxendale (1854) 9 Ex Ch 341; 156 ER 145, p. 354-355.Vide: FARNSWORTH, Allan. Contracts. New York: Aspen Publishers, 2004, p. 793. WEST, Glenn; DURAN, Sara. Reassessing the ‘Consequences’ of Consequential Damages Waivers in Acquisition Agreementes. The Business Lawuer. Vol. 63, 2008, p. 785.
[4] Visando tornar o conceito compreensivel aos juristas de civil law, Jacques Herbots anota: “Uma tentativa de definir esse conceito pode ser a seguinte. Trata-se de um dano previsível, logo, provável ou possivel, que é a consequencia necessária de um inadimplemento contratual ou de um ato ilícito (absoluto). Por ser previsível, não é considerado demasiadamente remoto. Pode ou não resultar de um dano anterior causado a uma pessoa ou coisa; pode ou não estar na esfera do conhecimento das das partes no momento da conclusão do contrato; pode ou não ser anormal”. (Em tradução livre de: HERBOTS, Jacques. Why It Is III-Advised to Translate Consequential Damage by Dommage Indirect. European Review of Private Law, 6-2011 (931-949). Kluwer Law International BV)
[5] Por isso o tema tangencia o dos lucros cessantes do direito brasileiro, embora com ele não se confunda, já que, em nosso sistema, “lucro cessante” integra o conceito de “dano indenizavel”, juntamente com o “dano emergente”. Para o exame do lucro cessante, vide: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[6] CARVALHO, Ana Mafalda Soares de. O Dano Consequencial. A questão da causalidade. Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Escola do Porto. Dissertação de Mestrado, 2017. Disponível em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/23795/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf, p. 10.
[7] Atente-se a distinção: danos são indenizáveis, despesas são reembolsáveis. O dever de indenizar é a forma de recompor patrimonialmente ou a vítima de um ato ilícito extracontratual ou de um inadimplemento imputável ou quem é o credor de dever de garantia. O dever de reembolso, diferentemente, atine a despesas, que são gastos ou “diminuições do patrimônio que a pessoa se impõe por vontade própria, ou por dever, ou a favor de terceiro, ou de quem seja dono ou tenha direito real sobre bem ou bens ou patrimônio” (assim: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXII. Atualizado por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 2.731, p. 333).
[8] THEODORO JR., Humberto. Seguro de Danos – Despesas de Salvamento e Despesas de Contenção. Regime Jurídico. In: VI Fórum de Direito dos Seguros José Sollero Filho. São Paulo: IBDS/Roncarati, 2015, p. 164.
[9] Inaugura o tema entre nós FRADERA, Vera. Pode o Credor ser Instado a Diminuir o Próprio Prejuízo? Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, Padma, vol. 19, jul./set. 2004, p. 109-119, bem como Proposta de interpretação do art. 422 foi aprovada como Enunciado n. 169 na III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal. A justificativa consta de FRADERA, Véra. Proposta de Enunciado ao art. 422 do CC/2002. In: AGUIAR JR., Ruy Rosado de (Org.). III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Brasília: CJF, 2005, p. 168. A respeito da mitigação, escrevi em MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, § 37, 19, p. 383 (a respeito do contrato de seguro); §65, p.606-624 (a respeito dos contratos em geral). Na doutrina, vide ainda, ZANETTI, Cristiano de Sousa. A Mitigação do Dano e a Alocação da Responsabilidade. Revista Brasileira de Arbitragem, vol. 35, jul./ago. 2012, p. 28-36; LOPES, Christian Sahb Batista. Mitigação dos Prejuízos no Direito Contratual. São Paulo: Saraiva, 2013; e KULESZA, Gustavo Santos. Princípio da Mitigação de Danos. Evolução no Direito Contratual. Curitiba: Juruá, 2015.
[10] E.g: ZWEIGERT, Konrad; KOTZ, Hein. Introduzione al Diritto Comparato. Principi fondamentali. Vol. I. Milão: Giuffrè, 1998, p. 37. SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connaisance du droit. Paris: Economica, 1991, p. 22-28. LEGRAND, Pierre. Le Droit comparé, Paris, PUF, 2009, p. 16.
[11] SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connaisance du droit. Paris: Economica, 1991, p. 28.