#105. Do dogma da completude da revelação do árbitro ao dever de investigação das partes: promovendo a ética e a lealdade na arbitragem
Na AGIRE #50, tratou-se do dever de investigação das partes a partir das perspectivas francesa e inglesa e apresentaram-se 4 premissas que corroboram o seu reconhecimento no direito brasileiro. O tema, contudo, ainda é objeto de debates. Catherine Rogers, por exemplo – sob a óptica da common law, diversa da abordagem de jurisdições de civil law –, rechaça a existência de um tal dever, ao argumento de que as partes devem ser “entitled to rely on the completeness of information that arbitrators have legal and ethical obligations to disclose”.1 Por vezes, encontra-se a mesma alegação em solo nacional. O equívoco do argumento reside na falsidade da premissa: o dogma da completude absoluta da revelação do árbitro.
Impor às partes um dever de investigação não implica reconhecer que elas devam desconfiar da completude da informação revelada pelo árbitro, mas apenas que ao árbitro não cabe revelar (i) fatos e circunstâncias que sejam, ou deveriam ser, por elas conhecidos, e tampouco (ii) informações que não suscitem dúvida justificada e razoável acerca de sua imparcialidade e independência. Com efeito, a completude da informação revelada é determinada à luz do que o árbitro deve revelar, não já de toda a gama de informações a seu respeito.
ALERTA: o dever de revelação encerra dever instrumental. Com efeito, a mera ausência de revelação não denota parcialidade ou falta de independência, razão pela qual não resulta automaticamente em remoção do árbitro nem em anulação da sentença arbitral,2 como restou estabelecido nas Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional revistas em 2024, bem como nas Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre dever de revelação do(a) árbitro(a), abaixo transcritas:
“General Standard 3 - Disclosure by the Arbitrator
(g): An arbitrator’s failure to disclose certain facts and circumstances that may, in the eyes of the parties, give rise to doubts as to the arbitrator’s impartiality or independence, does not necessarily mean that a conflict of interest exists, or that a disqualification should ensue.”
“3. Eventual omissão no exercício do dever de revelação do(a) árbitro(a) não implica, necessariamente, falta de independência ou imparcialidade deste(a). Eventual alegação de falta de independência ou imparcialidade daí decorrente deverá ser aferida à luz da natureza e da relevância do fato não revelado, conforme a visão de um terceiro que, com razoabilidade, analisaria a questão e as circunstâncias do caso concreto.
O porquê e o para quê do dever de revelação: o que as partes não sabem e precisam saber para aferir a integridade do árbitro
A correta identificação do que o árbitro deve revelar começa pela distinção de duas premissas fundamentais: a razão justificadora e a finalidade precípua do dever de revelação.
Ao selecionar as circunstâncias a revelar, o árbitro deve se pautar pelo porquê e pelo para quê do dever de revelação. De forma bastante singela, é possível afirmar que a imposição ao árbitro do dever de revelação decorre do fato de as partes não conhecerem certas informações a seu respeito (o porquê),3 e visa lhes permitir a escolha esclarecida daquele que, de forma imparcial e independente, decidirá a controvérsia (o para quê).4 Se referidas premissas são verdadeiras – como parecem ser –, a revelação será completa se abarcar as informações que, a um só tempo, as partes não conhecem e não têm como conhecer e se afiguram relevantes, no contexto do caso concreto, para a aferição da imparcialidade e da independência do árbitro.
A análise relativa à possibilidade de a informação suscitar dúvidas sobre a integridade do árbitro é, em definitivo, objetiva: a dúvida deve ser, a um só tempo, justificável e razoável aos olhos de um terceiro.5
Note-se, de todo modo, que mesmo na remota hipótese de se entender que a dúvida deve ser aferida aos olhos das partes, a exigência de se tratar de dúvida razoável confere objetivação à análise, como se verá a seguir.
A dúvida justificável e razoável: vedação a arbitrariedades e excentricidades
A qualificadora “justificável” afasta a arbitrariedade e exige que, à luz das concretas circunstâncias do caso, a dúvida seja fundamentada; impõe-se que o fato a ser revelado se ligue por nexo lógico com elementos da arbitragem, a justificar a dúvida suscitada.
A qualificadora “razoável”, por sua vez, afasta eventuais excentricidades das partes e impõe “a consideração daquilo que normalmente acontece”.6 Cuida-se, em verdade, de interpretar a extensão da regra que atribui ao árbitro o dever de revelação de acordo com o postulado normativo da razoabilidade, a ser utilizado como diretriz que exige a identificação de uma espécie de “standard de confiança”, estabelecido de forma indutiva à luz das características do caso concreto. Nessa direção, o árbitro apenas deverá revelar informações que, na generalidade dos casos, suscitariam dúvidas quanto à sua integridade.
As informações que as partes conheciam ou deveriam conhecer: o dever de investigação
Ainda que a informação possa despertar dúvida razoável e justificada sobre a integridade do árbitro, se as partes a conhecem ou deveriam conhecê-la, não estará abarcada pelo dever de revelação, na linha, inclusive, do que o Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) fez constar de suas Diretrizes sobre o dever de revelação do árbitro.7
De fato, se as partes já conhecem a informação, nada há a revelar, e cabe a elas formular os questionamentos que entenderem necessários ao árbitro.
De outro lado, se as partes não conhecem a informação, mas deveriam conhecê-la, compete-lhes empregar a diligência esperada e acessá-la sponte propria, endereçando ao árbitro, então, as questões sobre as quais desejarem esclarecimentos. Nesta categoria estão compreendidas não apenas as informações públicas e facilmente acessíveis, bem como aquelas às quais, mesmo não sendo públicas, as partes têm acesso em razão de uma sua circunstância objetiva.
Ora, se as partes falham em questionar o árbitro, na primeira oportunidade, acerca dessas informações que conheciam ou deveriam conhecer, não poderão, posteriormente, delas se valer para investir contra o árbitro, impugnando-o, ou contra a sentença arbitral, perseguindo a sua anulação.
As bases jurídicas sobre as quais o dever de investigação está alicerçado já foram apresentadas, em linhas gerais, na AGIRE #50. Somam-se a elas relevantes razões de ordem prática:
incentivo a comportamentos éticos e coibição de inércia maliciosa das partes. Ao obrigar as partes a buscar, desde já, as informações a elas acessíveis, estimula-se o comportamento ético e leal e impede-se que aguardem eventual desfecho desfavorável do procedimento para, só então, apresentar a informação que sempre esteve a seu alcance a fim de atacar a sentença arbitral;
eliminação de tratamento paternalista das partes. De regra, as partes são qualificados players do mercado, e dispõem de meios para acessar considerável gama de informações sobre o árbitro, sobretudo diante do crescente desenvolvimento das tecnologias de comunicação. Ignorar referida realidade é subestimar a sofisticação e a capacidade das partes; e
atribuição de efeitos jurídicos a situação fática amplamente difundida na prática arbitral. Como revelaram os resultados de pesquisa conduzida pela Queen Mary University of London em 2018 no âmbito da arbitragem internacional, a maioria dos entrevistados (70%) está “satisfeita com a informação a que tem acesso quando considera a nomeação de árbitros”.8 Quanto às fontes dessas informações, ofereceu-se aos entrevistados lista com seis opções, sendo-lhes permitido indicar fonte diversa das elencadas. O resultado pode ser conferido no gráfico a seguir:9
Os dados revelam que as partes (elas próprias ou por meio de seus advogados) fazem o dever de casa: perguntam aos seus pares sobre o árbitro indicado, buscam informações em diversas bases de dados, acessam o perfil online do árbitro etc. Investigar o potencial árbitro é, portanto, prática comum na arbitragem internacional, e a experiência revela que o mesmo se passa no cenário doméstico. Ao fim e ao cabo, atribuir às partes o dever de investigação implica apenas reconhecer efeitos jurídicos a uma prática amplamente difundida.
Como se nota, dever de revelação do árbitro e dever de investigação das partes atuam harmoniosamente: cada qual abarca fatos e circunstâncias diferentes, de modo que as informações sob a incidência de um não são alcançadas pela incidência do outro; a depender das circunstâncias do caso concreto, um se expande enquanto o outro se retrai, como se fossem círculos tangentes entre si em constante movimento inversamente proporcional, sem, contudo, se anularem. Essa dinâmica se afigura essencial para garantir a imparcialidade e independência do árbitro e, assim, promover a legitimidade da arbitragem como sistema privado de solução de controvérsias.
Bônus track: o dever de investigação na Suíça em 2023
Assim como a França, as Cortes suíças atribuem às partes o dever de curiosidade, consistente na investigação de fatos e circunstâncias que possam suscitar dúvidas a respeito da independência e da imparcialidade do árbitro.
Em 2023, o Swiss Federal Tribunal ratificou o dever de curiosidade em duas decisões. Na primeira delas, afirmou que as partes são obrigadas a utilizar os principais mecanismos de busca informatizada e a consultar fontes que possam fornecer elementos que permitam identificar possível risco de parcialidade do árbitro, a exemplo dos sites (i) das principais instituições arbitrais, (ii) das partes, (iii) pessoais dos árbitros, bem como (iv) dos escritórios de advocacia em que eventualmente atuem.10 Na segunda, caminhou na mesma direção, e reconheceu que, em procedimentos de arbitragem internacional conduzidos em inglês, espera-se que as partes consultem os sites da indústria internacional comuns e geralmente acessíveis bem como os diretórios online voltados para advogados que possam fornecer indicações sobre a potencial parcialidade do árbitro, a exemplo do “lawyers.com” e do “martindale.com”, ainda que a parte e seus patronos sejam de nacionalidade diversa da do árbitro cuja imparcialidade se questiona.11
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Do dogma da completude da revelação do árbitro ao dever de investigação das partes: promovendo a ética e a lealdade na arbitragem. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 105, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire105>. Acesso em DD.MM.AAAA.
ROGERS, Catherine A. The ethics of international arbitrators. In.: Bocconi Legal Studies Research Paper. v. 19, n. 1, 2007, p. 19.
ELIAS, Carlos. Imparcialidade dos árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 223. Assim, também, a jurisprudência: TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Jorge Tosta, Ap. Cível nº 1097621-39.2021.8.26.0100, j. 22.11.2022, v.p.m.
YU, Hong-Ling; SHORE, Laurence. Independence, impartiality, and immunity of arbitrators: US and English perspectives. The International and Comparative Law Quarterly. v. 52, n. 4, p. 937.
LEMES, Selma Maria Ferreira. O dever de revelação do árbitro, o conceito de dúvida justificada quanto a sua independência e imparcialidade (art. 14, § 1º, da Lei 9.307/1996) e a ação de anulação de sentença arbitral (art. 32, II, da Lei 9.307/1996). Revista de Arbitragem e Mediação. v. 10, n. 36, jan.-mar. 2013, p. 236.
LAMAS, Nathália Mizrahi. Dever de Revelação. Alegado Descumprimento. Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesse em Arbitragem Internacional. Dúvida Justificada. Violação ao Princípio da Imparcialidade Tribunal de Justiça de São Paulo. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Apelação Cível nº 1056400-47.2019.8.26.0100. Rel. Des. Fortes Barbosa. J. 11.08.2020. Revista Brasileira de Arbitragem. n. 68, out.-dez./2020, p. 140. PUCCI, Adriana Noemi. Impugnação dos árbitros, In.: CARMONA, Carlos Alberto; LEMES, Selma Ferreira; MARTINS, Pedro Batista. 20 anos da Lei de Arbitragem – Homenagem a Petrônio R. Muniz. São Paulo: Atlas, 2017, p. 175.
É o que consta também do item 3 das Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre dever de revelação do(a) árbitro(a), já transcrito no texto.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 103.
“6.1. As informações públicas e de fácil acesso às partes, como, por exemplo, aquelas obtidas na plataforma LATTES do CNPq; currículos divulgados em website pessoal ou de escritórios de advocacia; divulgações de atividades profissionais em redes sociais; participações em atividades institucionais ou acadêmicas; participações em congressos, seminários, eventos divulgados publicamente; e textos publicados em mídias impressas ou eletrônicas, tais como livros, artigos, periódicos, jornais, revistas etc., devem ser consideradas como de conhecimento das partes, de forma a não demandar revelação específica do(a) árbitro(a).”