#114. A forma do contrato e a formalidade do instrumento: efeitos no plano da validade do negócio jurídico
Não é rara a confusão entre contrato e instrumento contratual.1 Toma-se, muitas vezes, o veículo pela relação, o que suscita problemas diversos. Esta coluna coloca em foco um aspecto desse equívoco, que pode custar às partes a indevida invalidação do contrato: a distinção entre a forma do contrato e as formalidades atinentes ao instrumento contratual. Antes, todavia, de enfrentar o tema, convém revisitar alguns conceitos basilares de teoria geral dos negócios jurídicos, afinal, como dizia o Professor Ebert Chamoun, em lições transmitidas pelo Professor Gustavo Tepedino nos meus tempos da graduação na UERJ, “o Direito é elementar”. Por isso, voltemos aos elementos.
A forma do contrato
Forma é o modo de expressão da vontade.2Trata-se de elemento essencial ao contrato,3 uma vez que, para produzir efeitos jurídicos, toda e qualquer vontade precisa ser representada exteriormente.
No direito brasileiro, a regra é a liberdade das partes de escolher a forma pela qual desejam celebrar o contrato, desde que não haja específica prescrição ou vedação em lei, nos termos dos arts. 104, III,4 e 107 do Código Civil.5 Cuida-se da consagração do princípio da liberdade de forma, pelo qual se supera o formalismo em favor da consensualidade, em homenagem à autonomia privada. O Direito reconhece, assim, a validade da manifestação de vontade desde que expressa de modo inteligível, qualquer que seja a forma adotada, o que garante o maior aproveitamento possível da substância do ato.6
Com efeito, apenas em casos previstos em lei, os contratos são solenes. Nessas hipóteses, diz-se que a forma é ad substantiam, ou seja, exigida para a validade do ato. De todo modo, a forma especial não se confunde com formalidades que a lei exige ou faculta para que o negócio produza certos efeitos, a exemplo (i) do registro do instrumento de compra e venda de imóvel no Registro de Imóveis, necessário para que se opere a transferência da propriedade (art. 1.245, Código Civil7), ou (ii) do registro do contrato no Cartório de Títulos e Documentos, facultado para que se produzam efeitos perante terceiros (art. 221, 2ª parte8).9
A formalidade do instrumento
A forma solene dotada de maior complexidade é o instrumento público, exigida, por exemplo, para a celebração de “negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país” (art. 108, Código Civil). O instrumento público deve respeitar as exigências contidas no art. 215, §§ 1º, 3º e 5º do Código Civil10 e na legislação complementar própria.
O instrumento particular, a seu turno, é a forma escrita mais livre à disposição das partes, que podem definir amplamente as informações que dele devem constar. De regra, é necessário que pelo instrumento particular seja possível identificar os elementos essenciais do negócio bem como a própria manifestação de vontade, o que se afere pelas assinaturas dele constantes; como aponta Pontes de Miranda, a lei não exige a legibilidade da assinatura, e “satisfaz-se com o sinal característico, que baste à autenticidade, se a pessoa sabe escrever e pode escrever. A assinatura pode ser: com pseudônimo; ou com o nome que a pessoa passou a usar; ou com o nome que pensa ser o seu; ou com o nome, com que A, simulando ser B, assina o instrumento, porque, então, A, que assinou B, se vinculou, sem que B se vinculasse”.11 Importante, com efeito, é que se possa identificar quem manifestou consentimento.
A subscrição por testemunhas, embora necessária para a qualificação do instrumento particular como título executivo extrajudicial – nos termos do art. 784, inciso III, do Código de Processo Civil12 –, não o é, em regra, para a sua validade,13 salvo quando a lei o exija, a exemplo do que ocorre no âmbito do testamento particular (art. 1.876, §1º, Código Civil).14
Inobservadas as formalidades do instrumento, ele será inválido, o que não implica automaticamente a invalidade do próprio negócio.
Efeitos da inobservância de formalidades do instrumento sobre a validade do contrato
A relação entre invalidade do instrumento por inobservância de suas formalidades e invalidade do contrato por vício de forma depende de a forma do contrato ter sido imposta pela lei ou adotada voluntariamente pelas partes: se a forma for ad substantiam, a invalidade do instrumento implicará a invalidade do contrato; se, de outro lado, a forma tiver sido adotada livre e voluntariamente pelas partes, a invalidade do instrumento não acarretará a invalidade do contrato, como leciona Marcos Bernardes de Mello:
“A invalidade do instrumento somente afeta a validade do ato jurídico se lhe é essencial; não o sendo, aplica-se a regra do art. 183 do Código Civil.15 Se alguém vende ações de uma companhia por meio de escritura pública e esta é nula, o contrato de compra e venda, em si, é válido, uma vez que não há exigência legal dessa espécie de instrumentação para a venda de ações, podendo provar-se o negócio jurídico por outros meios”.16
E isso, porque o contrato não deixa de ser não solene em razão da adoção de forma especial pelas partes, no livre exercício da sua autonomia privada, por uma razão de sua conveniência.17
Em situações como essa, a invalidade do instrumento poderá impactar apenas o seu valor probatório (art. 221, Código Civil),18 o que, todavia, não impedirá as partes de provar o negócio por qualquer outro meio idôneo (parágrafo único do art. 221 c/c art. 212, Código Civil19). De fato, a preferência legislativa por determinada formalidade para fins probatórios tem relevância relativa, e deverá ser sopesada pelo árbitro ou juiz à luz de todo o acervo probatório trazido aos autos.20
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. A forma do contrato e a formalidade do instrumento: efeitos no plano da validade do negócio jurídico. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 114, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire114>. Acesso em DD.MM.AAAA.
É justamente o que explica Orlando Gomes: “[n]a prática emprega-se a palavra contrato em acepções distintas, ora para designar o negócio jurídico bilateral gerador de obrigações, ora o instrumento em que se formaliza, seja a escritura pública, o escrito particular de estilo, simples missiva, ou um recibo. Na linguagem corrente, essa sinonímia está generalizada a tal ponto, que os leigos supõem não haver contrato se o acordo de vontades não estiver reduzido a escrito. O contrato tanto se celebra por esse modo como oralmente. Não é a forma escrita que o cria, mas o encontro de duas declarações convergentes de vontades, emitidas no propósito de constituir, regular ou extinguir, entre os declarantes, uma relação jurídica patrimonial de conveniência mútua” (ORLANDO, Gomes. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 11).
“(...) isto é, o tipo de manifestação que veste a declaração (escrita, oral, mínima, através do silêncio etc.)” (AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 32).
“Elemento do negócio jurídico é tudo aquilo que compõe sua existência no campo do direito” (AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 31).
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: (...) III) forma prescrita ou não defesa em lei.
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
BESSONE, Darcy. Do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 149.
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
Art. 221. O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público.
Sobre a possibilidade de o contrato produzir efeitos perante terceiros mesmo sem registro, confira-se: MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria Geral dos Direitos Reais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 243-246.
Art. 215, § 1º. Salvo quando exigidos por lei outros requisitos, a escritura pública deve conter: I - data e local de sua realização; II - reconhecimento da identidade e capacidade das partes e de quantos hajam comparecido ao ato, por si, como representantes, intervenientes ou testemunhas; III - nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência das partes e demais comparecentes, com a indicação, quando necessário, do regime de bens do casamento, nome do outro cônjuge e filiação; IV - manifestação clara da vontade das partes e dos intervenientes; V - referência ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à legitimidade do ato; VI - declaração de ter sido lida na presença das partes e demais comparecentes, ou de que todos a leram; VII - assinatura das partes e dos demais comparecentes, bem como a do tabelião ou seu substituto legal, encerrando o ato. (...).
§ 3º. A escritura será redigida na língua nacional. (...).
§ 5º. Se algum dos comparecentes não for conhecido do tabelião, nem puder identificar-se por documento, deverão participar do ato pelo menos duas testemunhas que o conheçam e atestem sua identidade.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 334, p. 452.
Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais: (...) III) o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas.
AZEVEDO JUNIOR, Manuel Albino Ribeiro de; COSTA, Rosalina Moitta Pinto da. A Executividade dos Contratos Eletrônicos: análise do posicionamento do STJ. Periódico Quadrimestral da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ. a. 16, vol. 23, n. 2, 2022, pp. 1.206-1.207.
Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico.
§ 1º Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever.
Art. 183. A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurídico sempre que este puder provar-se por outro meio.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da validade. São Paulo: SaraivaJur, 2022, pp. 176-177.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições do Direito Civil: contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 55.
CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil Brasileiro Interpretado. vol. III. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, p. 157.
Art. 221, parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de caráter legal.
Art. 212. Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante: I - confissão; II - documento; III - testemunha; IV - presunção; V - perícia.
TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 246.