#123. Efeito restitutório da resolução contratual em relação a terceiros
Resolução e restituição interpartes
Os atos de autonomia privada encontram em sua própria essência e justificativa os confins nos quais se contêm: a regulação dos interesses das partes. Por essa razão, deve haver identidade entre os sujeitos do contrato e os sujeitos cujos interesses são atingidos por esse contrato, a fim de evitar que os negócios jurídicos afetem terceiros.1 Com efeito, apenas diante de circunstâncias especiais admite-se o atingimento da esfera jurídica alheia. E a resolução da relação obrigacional facultada por cláusula resolutiva expressa não foge à regra.
Inadimplida a obrigação prevista na cláusula resolutiva expressa, autoriza-se o credor a resolver extrajudicialmente a relação obrigacional (AGIRE #1). A resolução produz, em geral, três efeitos: o liberatório, dispensando as partes de adimplir as obrigações pendentes; o restitutório, impondo a ambas as partes restituir uma a outra tudo o que houverem eventualmente recebido da contraparte, salvo previsão contratual em sentido diverso; e o indenizatório, conferindo ao credor a possibilidade de pleitear perdas e danos (AGIRE #100 (Parte 1)).
A resolução opera, no comum dos casos, interpartes, o que importa reconhecer que os efeitos retroativos são obrigacionais, a cominar somente aos contratantes a restituição à contraparte das vantagens percebidas, visto que, como aponta Luigi Mosco, “o pressuposto da resolução é estranho à fonte da relação.2 Assim, caso o devedor inadimplente tenha alienado o bem recebido por força do contrato a terceiros antes da resolução, o credor não conseguirá recuperá-lo, e ser-lhe-á restituído o equivalente pecuniário.3
No entanto, excepcionalmente, pode ocorrer a retroatividade absoluta, extinguindo todos os efeitos negociais até então verificados, de modo a repercutir sobre a esfera jurídica de sujeitos estranhos à relação obrigacional.4 A retroatividade absoluta, ao contrário daquela obrigacional, não pode ser regulada por mera previsão contratual, e requer a presença de específico fator de eficácia, a tornar o negócio oponível a terceiros. Para a adequada compreensão do tema, faz-se necessário dar um passo atrás e revisitar a clássica noção de inoponibilidade dos direitos de crédito e a sua contemporânea mitigação.
(In)oponibilidade dos direitos de crédito
Oponibilidade é, de acordo com Santos Junior, “uma manifestação de eficácia, significativa da projecção do direito subjectivo, de qualquer direito subjectivo, em relação a terceiros”.5 Opor o direito é afirmá-lo perante terceiros, é exigir que terceiros cujos interesses com ele conflitem o respeitem.
Os direitos reais são dotados de oponibilidade erga omnes, decorrente dos mecanismos de publicidade que lhes são inerentes: os atos da posse no que tange aos bens móveis, e o registro obrigatório, em relação aos imóveis.
Os direitos de crédito, a seu turno, por não gozarem dos mesmos mecanismos de publicidade, são em regra inoponíveis a terceiros, não lhes sendo exigível que respeitem direitos que não conhecem e tampouco têm como conhecer. O estado de ignorância do terceiro é, por conseguinte, a barreira à oponibilidade dos direitos de crédito, e requer a análise de sua boa-fé subjetiva, “ligada ao desconhecimento sem culpa ou à ignorância desculpável”.6 De outro lado, a ciência prévia do direito alheio o torna oponível ao terceiro, que passa a ser obrigado a respeitá-lo. Nesse caso, a violação do direito de crédito configura má-fé, pelo que se confere ao seu titular tutela em face do terceiro.
O registro do contrato encerra um dos mecanismos de atribuição de eficácia dos direitos nele contidos perante terceiros, conforme previsto no art. 221, 2ª parte, do Código Civil, segundo o qual os efeitos das obrigações convencionais materializadas em instrumento particular “não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público”.7 Cuida-se, o registro, de mecanismo de publicização do direito de crédito atributivo de eficácia em face de pessoas (naturais ou jurídicas) estranhas ao negócio e titulares de direitos que possam se chocar com os direitos dos contratantes, impondo-lhes o dever de não exercer as suas titularidades em violação ao crédito alheio. De todo modo, tratando-se de registro facultativo, a sua realização “servirá apenas para facilitar a comprovação de que o terceiro tinha ciência efetiva dos fatos, atos ou negócios registrados”.8
O conhecimento proporcionado pelo emprego de mecanismos de publicidade pode ser dividido em conhecimento reputado e conhecimento efetivo. O conhecimento reputado decorre apenas dos registros públicos, quando sua adoção como mecanismo de publicidade for obrigatória (imposta pelo legislador). Nesse caso, a simples disponibilidade dessas informações ao público gera presunção relativa de conhecimento sobre os fatos ali expostos, como ocorre com os direitos reais. O conhecimento efetivo, por outro lado, resulta da adoção de mecanismos de publicidade que exijam esforço maior de terceiros que pretendam obter informações a respeito de bens, fatos ou atos, exatamente como se passa com os direitos de crédito. A distinção releva para fins de estabelecimento do ônus da prova, como explica Roberta Mauro Medina Maia:
“enquanto há atribuição de conhecimento reputado, recairá sobre o terceiro o ônus de provar que, em virtude de uma falha no mecanismo de publicidade obrigatório que se aplicava à hipótese, violou direito alheio ou adotou conduta com ele incompatível porque, por motivos alheios à sua vontade, o desconhecia por completo. Em contrapartida, se o conhecimento atribuído pelo mecanismo de publicidade é efetivo, o ônus de provar que o terceiro conhecia o direito oposto ou mesmo os fatos ou atos que lhe deram origem recai sobre o seu titular”.9
O registro público encerra, todavia, apenas um dos mecanismos de imposição de dever de inviolabilidade aos direitos de crédito: se ao terceiro for dado conhecer, por qualquer outra forma e a qualquer tempo, o teor do contrato, surge imediatamente o dever de respeitá-lo, configurando-se a sua má-fé caso o viole, ignorando os direitos de crédito dele decorrentes.
Efeito restitutório oponível a terceiros
A essa altura, já é possível concluir que, constatada a ocorrência de um dos suportes fáticos previstos na cláusula resolutiva expressa e resolvido o contrato, o credor poderá recuperar o bem entregue ao devedor e por ele transferido a terceiro se provar que o terceiro tinha conhecimento efetivo não apenas do contrato, mas da pendência de cumprimento pelo devedor, uma vez que estará configurada a sua má-fé.10
Conforme já se afirmou em outra sede, não basta, todavia, à oponibilidade do efeito restitutório da cláusula resolutiva expressa, a transcrição do respectivo contrato no Registro de Títulos e Documentos. Por se tratar de registro facultativo, o conhecimento a respeito da existência e do conteúdo do contrato não será reputado, inexistindo presunção relativa de ciência dos fatos dele constantes. Exigir-se-á o conhecimento efetivo, a demandar do credor a prova de que o terceiro conhecia os eventos referidos. Nessa direção, para que a cláusula resolutiva expressa produza efeitos retroativos absolutos, mister que o terceiro tenha ciência não só da existência do contrato, mas também de seu conteúdo.11
De outro lado, se o contrato versar sobre direitos reais relativos a imóveis, haverá conhecimento reputado acerca da existência da cláusula resolutiva expressa se o instrumento constar do registro de imóveis, por se tratar de registro obrigatório, pelo que a resolução da relação obrigacional produzirá efeitos retroativos absolutos, alcançando o bem mesmo nas mãos de terceiros.12
Em síntese, versando o contrato sobre direitos reais que recaem sobre imóveis, o efeito restitutório da resolução decorrente da cláusula resolutiva expressa produzirá efeitos retroativos em relação a terceiros se o instrumento do qual constar for levado ao respectivo registro de imóveis. De outro lado, tratando-se de bem móvel, deverá o credor se desincumbir do ônus de provar que o terceiro sabia da existência não só do contrato, mas da própria cláusula resolutiva e da pendência de adimplemento pelo devedor, sob pena de produzirem-se apenas efeitos retroativos interpartes.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Efeito restitutório da resolução em relação a terceiros. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 123, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire123>. Acesso em DD.MM.AAAA.
FERRARA, Luigi Cariota. Il negozio giuridico nel diritto privato italiano. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2011, p. 56.
No original: “Quanto agli effetti, il diritto alla risoluzione estingue il rapporto retroattivamente, ma si tratta, come suol dirsi, di una retroattività obbligatoria, non estensibile ai terzi, appunto perchè il presupposto della risoluzione è estraneo alla fonte del rapporto” (MOSCO, Luigi. La risoluzione del contratto per inadempimento. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1950, p. 8).
Afasta-se a possibilidade de invocação dos arts. 1.359 e 1.360 do Código Civil, por não se confundir a aposição de cláusula resolutiva expressa no contrato com a constituição de propriedade resolúvel. Sobre o tema, veja-se por todos NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 652-656.
FERRARA, Luigi Cariota. Il negozio giuridico nel diritto privato italiano. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2011, p. 15.
SANTOS JUNIOR, Eduardo. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito. Coimbra: Almedina, 2003, p. 466, grifos no original. Por outro lado, “há inoponibilidade do negócio quando ele não tem valor contra terceiros, como se, em relação a eles, não houvesse negócio; sua situação jurídica de forma alguma é influenciada pelo negócio” (FERRARA, Luigi Cariota. Il negozio giuridico nel diritto privato italiano. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2011, p. 393, tradução livre).
MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001. p.409. Para abordagem a respeito da aferição da boa-fé subjetiva do terceiro com vistas a avaliar a possível oponibilidade do direito de crédito, confira-se: MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria geral dos direitos reais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 193 et seq.
Art. 221. O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público.
“Em contrapartida, quando o registro é meramente facultativo, a sua utilização garantirá a oponibilidade do fato, ato ou negócio registrado, bem como dos direitos por trás deles, mas não há inversão do ônus da prova a favor do titular do direito. Nesse caso, o registro servirá apenas para facilitar a comprovação de que o terceiro tinha ciência efetiva dos fatos, atos ou negócios registrados” (MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria Geral dos Direitos Reais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 237).
MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria geral dos direitos reais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 212.
No mesmo sentido, confira-se: NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 659. Assim também já decidiu o STJ: “No caso em exame, a cláusula resolutiva inserida no contrato particular de permuta previa o desfazimento do negócio caso as adquirentes incorressem em inadimplemento de sua obrigação correspondente ao pagamento, como veio a ocorrer, é incontroverso. Contudo, o pacto comissório convencionado pelas partes não fora transcrito no registro de imóveis. Dessa forma, não se revestiu da publicidade necessária para que tivesse efeito perante terceiros de boa-fé que não participaram do contrato primevo. Entretanto, as consequências do pacto comissório podem ser impostas a terceiro que tenha agido com má-fé ou de modo temerário. E conforme delineado nas instâncias ordinárias e transcrito linhas acima, na hipótese, entendeu-se que o terceiro conhecia a restrição imposta ao imóvel ou, ao menos, fora descurado de forma inescusável. Portanto, não se aplica ao caso a regra de que ao terceiro de boa-fé não podem ser impostas as consequências de condição resolutiva contratualmente estipulada, mas a exceção, segundo a qual o terceiro de má-fé, adquirente do imóvel, pode ser atingido pelos efeitos do pacto comissório não transcrito no registro de imóveis. Ademais, como bem ressaltado no v. acórdão recorrido, a presunção de veracidade dos registros imobiliários não é absoluta, mas juris tantum, admitindo-se prova em contrário” (STJ, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, REsp. 664.523, julg. 21/06/2012).
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 197.
ASSIS, Araken; ANDRADE, Ronaldo Alves de; ALVES, Francisco Glauber Pessoa. Comentários ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, v. 5, p. 594; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao novo Código Civil: da extinção do contrato. Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011, v. 6, t. 2, p. 696.