#128. Na pauta do STJ: “Você & Eu & Eu & Você”
Em setembro de 2024, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp nº 2.121.497/RJ, decidiu que viola os direitos autorais dos titulares das composições musicais de Tim Maia a comercialização de camisetas estampadas com as frases “Guaraná & Suco de caju & Goiabada & Sobremesa” e “Você & Eu & Eu & Você”.1 De acordo com o Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze, “houve a utilização não autorizada da obra intelectual do autor (música) em outro produto (camisetas), seja sob a forma de transcrição, seja pela modalidade de inclusão”, não se podendo falar em intertextualidade, paráfrase ou mesmo paródia. Por essa razão, impôs-se ao ofensor a obrigação de compensar as perdas e danos, consistentes no montante total percebido pela grife de roupas com a venda das camisetas – critério que se adotou em razão do art. 103 da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98)2 – e no montante correspondente ao valor da autorização para utilizar as músicas do artista.
A relevância da decisão vai muito além da discussão relativa à configuração da violação de direitos autorais, e convida à reflexão sobre critérios para a quantificação da compensação e, consequentemente, sobre a natureza da regra estabelecida no art. 103 da Lei de Direitos Autorais. É justamente sobre esse aspecto da decisão que tratará a coluna desta semana.
O caso concreto
“Vale, vale tudo”3
Em julho de 2016, o espólio de Sebastião Rodrigues Maia ajuizou ação em face do Grupo Reserva, em razão de a grife ter estampado em camisetas alguns títulos de músicas e trechos de Tim Maia como “Tomo guaraná, suco de caju, goiabada para sobremesa” e “Você e Eu, Eu e Você”, com a inserção do conectivo “&”, sem autorização. No entender do espólio, teria havido violação ao direito do autor de reprodução das obras musicais, pelo que o réu deveria (i) indenizar os “danos emergentes” correspondentes ao valor da licença que lhe permitiria explorar os direitos autorais de Tim Maia, no montante mínimo de R$ 600.000,00 – tomando como parâmetro o valor médio das licenças anteriores –; (ii) restituir integralmente a receita obtida com a exploração não autorizada das obras musicais do artista por meio da venda das camisas, na forma do art. 884 do Código Civil;4 e (iii) compensar os danos morais, na forma do artigo 102 da Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais).5
Em março de 2017, a Reserva apresentou contestação. Sustentou inexistir violação aos direitos autorais. Subsidiariamente, afirmou que eventuais danos materiais deveriam ser calculados com base no lucro auferido por ela em decorrência da comercialização das camisetas; a seu ver, o “pedido de dano material de R$ 600.000,00, mais o que foi indevidamente auferido, seria verdadeiro bis in idem”.
Em maio de 2018, a sentença julgou os pedidos autorais procedentes, condenando a Reserva, ao que interessa a estes comentários, ao pagamento de compensação a título de danos morais e de danos patrimoniais.
Os danos patrimoniais, todavia, foram limitados àquilo “que o autor deixou de ganhar, lucros cessantes, adotando-se, por base, o lucro auferido indevidamente” com a fabricação e comercialização das camisetas, a ser apurado em liquidação de sentença. O juízo entendeu, ainda, não ter havido dano emergente, ao argumento de que não “houve celebração contratual para autorizar o uso de trechos da obra do Autor, [pelo que] não se pode[ria] presumir valores daquilo que inexiste”.
Ambas as partes interpuseram recurso de apelação. Em janeiro de 2019, a 18ª Câmara Cível do TJRJ manteve a condenação estabelecida em sentença e majorou a compensação fixada pelos danos morais.6
Nos termos do acórdão, a indenização por lucros cessantes deveria ser mantida, uma vez que “o enriquecimento indevido de uma parte em detrimento da outra é princípio geral de direito, vedado pelo ordenamento jurídico, conforme art. 884 do Código Civil”. De outro lado, não teria havido danos emergentes, “na medida em que não houve perda ou diminuição direta do patrimônio do autor”.
As partes apresentaram recurso especial. Alegou o espólio “violação frontal aos artigos 101, 102 e 103 da Lei nº 9.610/98” e pleiteou a majoração da “condenação imposta à Reserva para os valores requeridos na petição inicial (equivalentes ao preço de uma autorização legitimamente negociada e conferida pelo Recorrente), observando-se o caráter punitivo determinado pelo legislador federal”. A parte ré, por sua vez, pleiteou a reforma do acórdão.
Após decisão de inadmissão e apresentado agravo interno, os autos foram remetidos ao STJ.
A decisão do STJ
“Agora sofre / Sofre! / Todo o mal que 'cê me fez / Você bem cedo irá pagar”7
Como já anunciado, o STJ entendeu ter havido violação aos direitos autorais. No que tange ao montante compensatório, afirmou-se que a Lei de Direitos Autorais dispõe de forma superficial sobre o tema, nos arts. 102 e 103, pelo que se deve considerar, para fins de quantificação, o art. 944 do Código Civil, segundo o qual a indenização se mede pela extensão do dano,8 bem como “a finalidade ressarcitória como também a punitiva, de modo que haja o desencorajamento do infrator, inibindo novas práticas semelhantes”, nas palavras do Relator. Com base em referidas premissas, o STJ majorou a indenização por danos materiais, adotando como critérios para a sua quantificação:
o montante total percebido pela grife de roupas com a venda das camisetas estampadas com a música do compositor, na esteira do quanto disposto no art. 103 da Lei de Direitos Autorais. De acordo com o Relator, o critério adotado pelas instâncias ordinárias para quantificação da indenização consistente no lucro indevidamente auferido com a venda das camisetas “não se compatibiliza com o duplo caráter indenizatório aplicável à ofensa perpetrada”, compensatório e punitivo; e
“o montante correspondente à autorização para utilizar as músicas do artista, conforme os valores praticados no mercado pelo próprio autor, de acordo com outras autorizações por ele já concedidas, limitado ao valor de R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais), requerido na exordial” (grifou-se).
Breves considerações sobre o caso
“Mas lendo atingi bom senso / A imunização racional”9
Além das discussões relativas ao suporte fático ao qual se aplica o art. 103 da Lei de Direitos Autorais bem como à forma de cálculo dos valores perdidos pelo ofensor em benefício do autor,10 a decisão em comento suscita outras reflexões importantes decorrentes da interpretação sistemática da Lei de Direitos Autorais em cotejo com a pluralidade de fontes do ordenamento, a exemplo da natureza da regra constante daquele dispositivo legal. Isso, porque a existência de lei especial aplicável ao campo dos direitos autorais não lhe confere autonomia normativa absoluta e tampouco o blinda de regras provenientes de outras fontes normativas. Nesse cenário, cumpre estabelecer algumas premissas gerais que podem iluminar a análise proposta:
No direito brasileiro, a responsabilidade civil se volta à tutela da vítima e assume exclusiva função reparatória, pelo que todos os critérios de quantificação da indenização devem se voltar para a análise do dano e das suas repercussões em relação à vítima. A responsabilidade civil não tem a função de punir o ofensor,11 nem de prevenir condutas causadoras de danos e tampouco de retirar do patrimônio do agente o benefício econômico eventualmente auferido por meio do ato lesivo.12 Com efeito, deve-se recusar a consideração de qualquer circunstância relativa ao ofensor como critério de quantificação dos danos, a exemplo da reprovabilidade da sua conduta ou do lucro por ele obtido – que não corresponda, na mesma medida, a dano emergente ou lucro cessante –, sob pena de violação ao art. 402 do Código Civil.13 Apenas excepcionalmente, em razão de expressa – e atécnica14 – previsão legal, o lucro auferido pelo ofensor pode servir como parâmetro para a quantificação do dano patrimonial, a exemplo do que se passa no âmbito da Lei de Propriedade Intelectual (Lei nº 9.279/1996), cujo art. 210, inciso II, admite como critério para o cálculo dos lucros cessantes a análise dos “benefícios que foram auferidos pelo autor da violação do direito”.15
O lucro ilegitimamente auferido pelo ofensor por meio da conduta danosa se qualifica como lucro da intervenção. Não é função da responsabilidade civil – repita-se – a sua retirada do patrimônio do agente; de todo modo, o pagamento da indenização à vítima pode acabar alcançando referido resultado de maneira indireta. Na hipótese de parcela do lucro permanecer com o agente mesmo depois de ressarcida a vítima ou da incidência de qualquer outro instituto, o montante deve ser retirado do seu patrimônio por meio da aplicação das regras do enriquecimento sem causa16 (já se tratou especificamente do tema na AGIRE #23).17
Reconhece-se a existência de penas privadas no direito brasileiro, sobretudo quando previstas expressamente pelo legislador. Costuma-se assim qualificar – não sem controvérsia –, por exemplo, a devolução em dobro por quem demandar por dívida já paga (art. 940 do Código Civil)18 e as sanções pecuniárias aplicáveis no âmbito do condomínio edilício (arts. 1.336 e 1.337 do Código Civil).19 Em razão da diversidade das figuras assim designadas, revela-se desafiadora a identificação de uma teoria geral das penas privadas.
Diante dessas considerações, fazem-se duas provocações:
o art. 103 da Lei dos Direitos Autorais estabelece que “[q]uem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido”. O dispositivo não remete a critérios de quantificação de danos – como o faz o art. 210, II, da Lei de Propriedade Industrial. Nesse cenário, o art. 103 deve ser aplicado no contexto da responsabilidade civil, ou se trata de previsão atinente a outro efeito decorrente da violação de direitos autorais?
o eventual enquadramento do art. 103 da Lei de Direitos Autorais como outro efeito decorrente da violação de direitos autorais, diferente da responsabilidade civil, tem repercussão prática? Dito de outra forma: é possível extrair efeitos distintos da qualificação do art. 103 como regra de categoria diversa da responsabilidade civil?
A coluna encerra com uma homenagem ao saudoso Tim Maia, que cantava sabiamente:
“Toda verdade deve ser falada
E não vale a gente se enganar”20
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: “Você & Eu & Eu & Você” In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 128, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire128>. Acesso em DD.MM.AAAA.
Art. 103. Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido.
Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos.
MAIA, Tim. Vale tudo, 1993.
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Art. 102. O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível.
MAIA, Tim. Sofre, 1972.
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.
MAIA, Tim. Bom senso, 1975.
“É exatamente no campo da responsabilidade civil afeita a tutela dos bens intelectuais que, comumente, se observa toda sorte de equívoco no momento do cálculo do dano reparável, em especial com a banalização das hipóteses de dano presumido. Entre a exegese de aplicação do art. 210 do CPI ou do art. 103, parágrafo único, da Lei 9.610/98, se costuma olvidar que o preço total de um produto ou insumo é objeto de tributação, pode não estar totalmente coberto pelo bem intelectual (a exemplo de uma universalidade – carro – cuja peça contrafeita reside no volante, mas não no restante) e é agregado pelo próprio custo trabalhista no manuseio fabril. Deste modo, não é sábio ao Juízo ou ao Árbitro dirimir esta sorte de pretensão ignorando que tanto os danos concorrenciais ordinários quanto os valores brutos que sobrepujem o ato de violação em si, devem ser excluídos do cálculo do quantum debeatur” (BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de concorrência desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 101 e 102).
Para a crítica à função punitiva da responsabilidade civil especificamente no âmbito da propriedade intelectual, confira-se: BARBOSA, Dênis Borges. Tratado da propriedade intelectual. Tomo I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 151.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; TEPEDINO, Gustavo; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2024, pp. 1-5.
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
“A função dos lucros cessantes na responsabilidade civil é flagrantemente reparatória, não sendo, portanto, recomendável introduzir na aferição desta faceta do dano patrimonial critérios que sequer são afeitos à responsabilidade civil, sob pena de a reparação dos lucros cessantes se transformar numa verdadeira caixa de Pandora que, embora incite a curiosidade, é sempre preferível não tocar” (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 223, grifos no original).
Art. 210. Os lucros cessantes serão determinados pelo critério mais favorável ao prejudicado, dentre os seguintes:
I - os benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; ou
II - os benefícios que foram auferidos pelo autor da violação do direito; ou
III - a remuneração que o autor da violação teria pago ao titular do direito violado pela concessão de uma licença que lhe permitisse legalmente explorar o bem.
Isso em razão da subsidiariedade do enriquecimento sem causa, nor termos do art. 886 do Código Civil:
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.
Art. 1.336. São deveres do condômino: (…)
§ 1º O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito.
§ 2º O condômino, que não cumprir qualquer dos deveres estabelecidos nos incisos II a IV, pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na convenção, não podendo ela ser superior a cinco vezes o valor de suas contribuições mensais, independentemente das perdas e danos que se apurarem; não havendo disposição expressa, caberá à assembleia geral, por dois terços no mínimo dos condôminos restantes, deliberar sobre a cobrança da multa.
Art. 1337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem.
Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento antissocial, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembleia.
MAIA, Tim. Não vou ficar, 1969.