#151. A relevância da correta qualificação dos contratos: o exemplo do built to suit
O processo de qualificação dos contratos é tarefa das mais complexas e relevantes no direito: complexa, porque a autonomia privada permite que as partes criem o regramento contratual que melhor atenda a seus interesses, a exigir que o intérprete lide com uma miríade de situações novas resultantes da atuação criativa das partes; relevante, porque é por meio da qualificação que se determinam os efeitos jurídicos produzidos pelo contrato e se identificam, dentre as diversas normas oferecidas pelo ordenamento, quais lhe serão aplicáveis.1
A qualificação requer, portanto, a análise da causa do contrato, isto é, da sua função econômico-individual.2 Conquanto o nomen iuris atribuído pelas partes possa ser um ponto de partida, não basta para qualificá-lo; afigura-se indispensável analisar os efeitos essenciais que produz para, a partir daí, identificar as normas incidentes.
Tome-se o contrato built to suit como exemplo. Sua função econômico-individual pode ser extraída do art. 54-A da Lei nº 8.245/91:
“Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei.”
De um lado, cabe ao empreendedor adquirir, construir ou reformar substancialmente, por si ou terceiro, o imóvel especificado pelo pretendente à locação a fim de lhe ceder, ato contínuo, seu uso e gozo.
Não se faz necessário que o empreendedor adquira o imóvel. Em verdade, não raro, o empreendedor já é proprietário do imóvel e procede à construção ou à reforma nos termos especificados pelo contratante. No primeiro caso, o imóvel é erigido integralmente pelo empreendedor, por encomenda do locatário; no segundo, o imóvel já existe e é reformado substancialmente conforme instruções do locatário.
Tampouco se mostra indispensável para a qualificação do contrato como built to suit que a intervenção do locador resulte em imóvel singular, passível de uso exclusivamente pelo locatário. A especificação que se exige não requer grau de customização que torne o imóvel imprestável a locatário diverso. O que se exige é a realização de obra significativa pelo locador, que permita que o imóvel desempenhe uma nova função e atenda às necessidades do locatário, sejam elas absolutamente peculiares ou corriqueiras. Com efeito, a análise se volta mais às intervenções realizadas objetivamente no imóvel sob orientação do locatário, do que ao grau de singularidades nele introduzidas para o atendimento de necessidades únicas e exclusivas daquele locatário.
Não fosse assim, a construção sob demanda e posterior cessão do uso e gozo de prédios ordinários, como um edifício de escritórios, jamais poderia ser qualificada como built to suit, dado o grau de padronização das estruturas normalmente utilizadas por qualquer sociedade. Não se pode perder de vista que, antes de celebrado o contrato, o empreendedor, ainda que já houvesse começado a desenvolver um projeto, poderia, a qualquer tempo, exercer a faculdade de não usar o imóvel e desistir da construção. Optando por usá-lo, poderia também decidir desenvolver qualquer outro projeto que lhe aprouvesse, no livre exercício dos poderes inerentes ao domínio. No entanto, uma vez celebrado o contrato built to suit, cessa a liberdade do proprietário e, em seu lugar, surge a obrigação de executar a prestação contratada, pelo que dela não se pode desvencilhar, sob pena de inadimplemento.
De outro lado, cabe ao locatário remunerar o empreendedor pelos investimentos empregados na aquisição, construção ou reforma substancial bem como pela cessão do uso e gozo do imóvel.
Nesse modelo de negócio, o locatário, “em vez de imobilizar capital na compra de um imóvel e construção de sua unidade comercial ou industrial, pode aplicar tal montante em seu próprio negócio, ganhando, assim, capital de giro e não ativo imobilizado, estranho às suas atividades”.3 É o empreendedor quem adianta as verbas para a construção ou reforma substancial do imóvel, e o locatário dilui a remuneração pelo capital investido e pela cessão do uso e gozo do imóvel em mensalidades devidas por todos os anos do contrato.
A contraprestação a cargo do locatário não se confunde, portanto, com o pagamento de um simples aluguel, correspondente à mera contraprestação pelo uso e gozo do imóvel, como ocorre em contratos de locação. O sinalagma contratual é estabelecido de forma una e indissociável entre as obrigações atribuídas a cada centro de interesses: as obrigações de construir e ceder o uso e gozo do imóvel, imputadas ao empreendedor, e a obrigação de remunerar a construção/reforma e a cessão do uso e gozo do imóvel, imputadas ao locatário. Trata-se, com efeito, de operação econômica indivisível, que não comporta fragmentação das obrigações alocadas a cada um dos centros de interesses.4
Por isso mesmo, não se afigura possível segregar as verbas remuneratórias, identificando o montante devido em razão da construção e aquele devido em razão da cessão do uso e gozo do imóvel. É artificial, do ponto de vista jurídico, referida tentativa. Embora no mundo fenomenológico seja possível separar a fase da construção da fase da cessão do uso e gozo, no mundo jurídico é justamente o amalgamento dessas duas operações que forma o singular contrato qualificado como built to suit, pelo qual o empreendedor é remunerado também de forma unificada.
E é em razão dessa unidade indissolúvel presente nos verdadeiros contratos built to suit, da impossibilidade de cindir a obrigação de construir ou reformar da obrigação de ceder o uso e gozo do imóvel e, consequentemente, da impossibilidade de identificar o quanto da contraprestação devida pelo locatário corresponde à remuneração pelos investimentos do empreendedor e o quanto corresponde à remuneração pela cessão do uso e gozo do imóvel, que a ação revisional de que trata o artigo 19 da Lei n° 8.245/915 se afigura incompatível com o contrato built to suit.
Nada obstante, a dicção expressa do artigo 54-A, § 1º, da Lei de Locações parece exigir que os contratantes convencionem a “renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação”,6 para que se afaste a incidência do artigo 19. Seja como for, a renúncia à ação revisional não impede a eventual aplicação de outros institutos, a exemplo da teoria da onerosidade excessiva, desde que presentes todos os requisitos legais, afinal, a renúncia se interpreta estritamente, nos termos do artigo 114 do Código Civil.7
No âmbito de contratos built to suit, prevalecem as condições livremente pactuadas no contrato, conforme expressamente previsto na parte final do artigo 54-A da Lei de Locações. Nessa direção, é possível, por exemplo, que as partes cumulem garantias, o que é bastante frequente tendo em vista o vulto dos investimentos realizados pelo empreendedor. Tratando-se de contrato de locação, ao contrário, o parágrafo único do artigo 37 da Lei de Locações fulmina de nulidade a pactuação de mais de uma modalidade de garantia.8
Como se nota, a qualificação em desacordo com a causa do contrato pode atrair a incidência de normas que não se coadunam com os efeitos concretamente perseguidos pelas partes. Cabe ao intérprete executar, com responsabilidade, o complexo e relevante processo de qualificação, sob pena de alterar o regime jurídico aplicável ao negócio.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. A relevância da correta qualificação dos contratos: o exemplo do built to suit. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 151, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire151>. Acesso em DD.MM.AAAA
KONDER, Carlos Nelson. Qualificação e coligação contratual. Revista Forense. vol. 406, nov./dez. 2009, p. 61.
PERLINGIERI, Pietro. Manuale di Diritto Civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2005, p. 374.
BENEMOND, Fernanda Henneberg. Contratos built to suit. São Paulo: Almedina Brasil, 2015, p. 25.
GOMIDE, Alexandre Junqueira. Contratos built to suit: aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual. 2 ed. rev., atual. e ampla. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 41.
Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado.
Art. 54-A, § 1o Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.
Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação.