#16. O artigo 200 do Código Civil na pauta do STJ
O nosso “Em pauta” desta semana é sobre o Recurso Especial 1.987.108/MG,1 que traz à tona o artigo 200 do Código Civil, com todos os desafios que o tema da prescrição suscita e muito mais: o caso é de Direito Civil, mas também tangencia o Direito Penal. Embora a responsabilidade civil seja independente da criminal (cf. art. 935 do Código Civil), o fato é que várias situações tipificadas como delito têm reflexos também na esfera cível. E como fica a prescrição nesses casos?
Contextualização necessária
O artigo 200, inovação do Código Civil de 2002, estabelece que “quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva”.2 O Código Civil de 2002, como se sabe, reduziu de forma significativa os prazos prescricionais previstos no Código Civil de 1916 – o que trouxe certas implicações sistêmicas. Atualmente, há, portanto, uma enorme disparidade entre os prazos prescricionais nas esferas cível e criminal, o que torna o artigo 200 ainda mais importante. Como registrou a Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, “[a] finalidade, pois, do preceituado no art. 200 do CC/02 é evitar a possibilidade de soluções contraditórias entre as duas searas, especialmente quando a solução do processo penal seja determinante do resultado do processo cível”.3 Firmou-se, inclusive, certa corrente na jurisprudência no sentido de que a aplicação do art. 200 só teria valia quando houvesse relação de prejudicialidade entre as esferas cível e penal.
Como qualificar o artigo 200 do Código Civil?
Em que pese a redação do dispositivo (“não correrá a prescrição”), parte relevante da doutrina não o identifica como causa impeditiva da prescrição, atribuindo-lhe o efeito suspensivo, embora esta seja uma questão longe de ser pacífica4 – como, aliás, tudo (ou quase tudo) em matéria de prescrição. De fato, a interpretação gramatical do artigo 200 poderia levar a uma extensão assombrosa do prazo toda vez em que o fato pudesse ser simplesmente “apurável” na esfera penal, mesmo sem qualquer indício de que seria realmente objeto de persecução penal, colocando, assim, em xeque a própria função da prescrição.
Como causa suspensiva da prescrição, em tese não se deveria desconsiderar o prazo que eventualmente já tenha corrido até a instauração do procedimento criminal (inquérito policial ou ação penal – marcos que também dão causa a mais controvérsias). Com o seu término, o prazo prescricional, que ficou suspenso, voltaria naturalmente a correr de onde parara. Nessa linha, não se poderia extrair do artigo 200 a conclusão de que a prescrição só começaria a fluir depois do trânsito em julgado da condenação criminal. No entanto, não são raros os acórdãos que, na ementa, afirmam que “o lapso prescricional começa a fluir a partir do trânsito em julgado da sentença” e, no voto, se referem ao artigo 200 do CC/2002 como causa suspensiva do prazo prescricional.5 Nesse grupo, inclui-se também o Recurso Especial 1.987.108/MG, ora analisado.
O caso em pauta
O caso concreto dá voz a milhares de mulheres que, no nosso país, já vivenciaram a mesma situação. A autora da “ação indenizatória” alega ter sido vítima de ameaças e abuso sexual quando tinha apenas 7 anos. O suposto ofensor era um “parente próximo” – o que sempre dificulta o exercício da pretensão –, que foi acusado de ter cometido dois crimes: (i) atentado violento ao pudor e (ii) tentativa de estupro. Embora o réu tenha sido condenado em 1ª instância, no julgamento da apelação acabou sendo absolvido pelo crime de tentativa de estupro. Já no que tange ao atentado violento ao pudor, o tribunal estadual extinguiu a ação em razão da ilegitimidade ativa do Ministério Público, que, por equívoco, propôs ação penal de iniciativa privada. Ou seja: neste caso não houve sentença penal condenatória. Depois disso, a vítima ingressou com ação indenizatória contra o suposto ofensor.
Os marcos temporais considerados na decisão
Para o texto manter-se fiel ao tema, convém traçar, desde logo, a linha do tempo que interessa à prescrição. Os marcos temporais apontados na decisão foram os seguintes:
Durante o ano de 2001: Prática das alegadas condutas ilícitas.
26.11.2010: A autora da ação completa 16 anos, tornando-se relativamente incapaz.
25.05.2012: Denúncia do Ministério Público.
26.11.2013: A autora da ação completa 18 anos, tornando-se plenamente capaz.
Maio de 2014: Julgamento da apelação criminal.
07.03.2017: Ajuizamento da ação indenizatória.
Considerando esses marcos temporais, pode-se adiantar, desde logo, que antes de 26.11.2010 não há que se falar em prescrição. Isso, porque o artigo 195, inciso I, do Código Civil, determina que não corre a prescrição “contra os incapazes de que trata o art. 3º”, que são os menores de 16 anos. Assim, o termo inicial da prescrição jamais poderia ser fixado antes de 26.11.2010, quando a vítima ainda era absolutamente incapaz. A partir de 26.11.2010, em rigor, a prescrição até poderia ter começado a correr, mas seria logo depois “suspensa” com a denúncia do Ministério Público, voltando a correr após o trânsito em julgado da decisão na esfera criminal até o ajuizamento da ação indenizatória, quando se deu o exercício da pretensão. O problema é que, seguindo esse raciocínio, a pretensão indenizatória estaria prescrita, porque a soma desses dois intervalos temporais ultrapassa três anos, que é o prazo prescricional para reparação civil. Quid juris?
A solução da Terceira Turma
Sensível a essa situação, no julgamento do Recurso Especial 1.987.108/MG, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça afastou a prescrição, mas reafirmou a tese de que o artigo 200 é, de fato, causa suspensiva da prescrição. Apesar disso, o termo inicial da prescrição não foi fixado na data em que a vítima se tornou relativamente incapaz, mas sim na data do julgamento (e não do trânsito em julgado) da apelação criminal, como se se tratasse de uma causa impeditiva da prescrição. Como a apelação criminal foi julgada em maio de 2014 e a ação indenizatória ajuizada em 07.03.2017, a Terceira Turma entendeu, por unanimidade, que ainda não tinham transcorrido os três anos para o exercício da pretensão indenizatória. Além disso, a Ministra Nancy Andrighi ressaltou que “o art. 200 do CC/02 incidirá independentemente do resultado alcançado na esfera criminal. Tal entendimento prestigia a boa-fé objetiva, impedindo que o prazo prescricional para deduzir a pretensão reparatória se inicie previamente à apuração definitiva do fato no juízo criminal, criando uma espécie legal de actio nata”.
O desfecho poderia ser diferente?
O artigo 200 do Código Civil deve ser interpretado como causa suspensiva da prescrição, sob pena de levar o intérprete a soluções inconsistentes, contrárias à própria função da prescrição. Há, porém, outra reflexão importante que se põe nesse caso: o fato de a vítima ter se tornado relativamente incapaz é suficiente para dar início ao prazo prescricional? Ao mesmo tempo em que o ordenamento submete o relativamente incapaz aos efeitos regulares da prescrição, não lhe permite agir validamente sem assistência. Nesses casos, a sua proteção fica reduzida ao artigo 195 do Código Civil, que lhe resguarda apenas a possibilidade de ajuizar ação indenizatória contra os seus assistentes ou representantes legais. Mas essa proteção seria suficiente no caso ora analisado?6 A vítima de um atentado violento ao pudor ou de um estupro (cometido pelo padrasto, pelo tio, pelo padrinho ou, quiçá, pelo próprio pai – a decisão, no caso, não aponta7) é sempre devidamente assistida para exercer sua pretensão indenizatória? Se o ofensor fosse o pai – o que não esclarece a decisão –, o Código Civil resolve o problema: a prescrição já não correria por força do artigo 197, inciso II, do Código Civil.
Por outro lado, mesmo não se tratando do pai, nem de tutores (art. 197, inciso III, do Código Civil), de qualquer forma a pretensão poderia ter sido exercida (i) quando a vítima atingiu a maioridade, mas nesse momento já havia ação penal em curso e, assim, também o risco de as decisões proferidas na esfera penal e cível serem contraditórias; ou (ii) tão logo a decisão na esfera criminal tivesse transitado em julgado, o que também não ocorreu, embora a ação tenha sido ajuizada em menos de 3 anos a contar “do julgamento da ação penal”.
Como se nota, a redução drástica dos prazos prescricionais causa certas perplexidades, tanto mais em se tratando de dano extrapatrimonial, o que convida à reflexão se os valores da justiça e da segurança jurídica estão sendo proporcionalmente promovidos em situações como essas.
Como você, leitor(a) da Agire, resolveria esse caso?
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O artigo 200 do Código Civil na pauta do STJ. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 16, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/56096292>. Acesso em DD.MM.AA.
Na mesma esteira, determina o artigo 288 da Lei das S.A. que “quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não ocorrerá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva, ou antes da prescrição da ação penal”. A diferença entre esses dois dispositivos situa-se, portanto, (i) no emprego do verbo – “correrá” no Código Civil; “ocorrerá”, na legislação societária – e (ii) na parte final em que o artigo 288 da Lei das S.A. acrescenta a expressão “ou antes da prescrição da ação penal”.
STJ, 3ª T., REsp. 1.987.108/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 29.03.2022.
STJ, 3ª T., REsp. 1.987.108/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 29.03.2022 - trecho do voto da Relatora.
Sobre essa discussão vale conferir o texto “Análise funcional do artigo 200 do Código Civil”, de Louise Vago Matieli, publicado em: Maria Celina Bodin de Moraes, Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Eduardo Nunes de Souza (coord.). A Juízo do Tempo: estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019.
STJ, 4ª T. AgRg no AREsp 377.147/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 03.04.2014, DJe 05.05.2014; STJ, 3ª T, REsp 1.354.350/MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.02.2014, DJe 06.03.2014; STJ, 3ª T., AgInt no AREsp 909.464/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. em 13.06.2017, DJe 26.06.2017). Por vezes, na ementa lê-se que a norma do artigo 200 do CC/2002 é causa impeditiva do prazo prescricional, mas no inteiro teor que o prazo é “retomado” com o trânsito em julgado da ação penal, dando a impressão de se tratar de suspensão (STJ, 4ª T., AgInt nos EDcl no REsp 1.600.252/GO, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 17.08.2017, DJe 22.08.2017).
Veja-se a crítica de Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia Silva, no texto “Incapacidade civil e discernimento reduzido como causas obstativas da prescrição e da decadência”, publicado em: Maria Celina Bodin de Moraes, Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Eduardo Nunes de Souza (coord.). A Juízo do Tempo: estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019.
A decisão apenas menciona “parente próximo”, o que, em tese, excluiria o padrasto, se a expressão for interpretada no seu sentido técnico.