#160. Critérios para a configuração da representação aparente
A técnica da representação
A representação é técnica de atuação em nome de outrem, cuja consequência é a imputação direta dos efeitos ao representado. Por meio da representação, permite-se a vinculação da esfera jurídica do representado aos negócios jurídicos firmados pelo representante em seu nome, definindo-se, assim, “o campo de eficácia vinculativa de acordo com os limites estabelecidos”.1
A fonte do poder de representação pode ser a lei (representação legal, como ocorre em relação aos absolutamente incapazes) ou a vontade do representado (representação voluntária).2
Conquanto a representação voluntária possa derivar de negócios jurídicos diversos, típicos ou atípicos, o seu núcleo central é a contemplatio domini, isto é, o agir declaradamente em nome alheio, de modo que terceiros que tratam com o representante consideram que estão se vinculando ao representado. O contrato de mandato é o negócio jurídico paradigma por meio do qual se outorgam poderes de representação, razão pela qual diversos dispositivos desse tipo contratual se aplicam a outros negócios jurídicos que utilizem a técnica da representação.
Nos termos do artigo 116 do Código Civil,3 a atuação nos limites dos poderes outorgados constitui condição sine qua non para que a manifestação de vontade do representante vincule a esfera jurídica do representado.
Com efeito, a atuação do representante em excesso de poderes, fora dos limites dos poderes outorgados, não tem o condão de vincular o representado ao negócio jurídico celebrado, “por faltar título jurídico a legitimar o transpasse de tais efeitos”;4 cuida-se de atuação sem poderes de representação.
Nesse caso, o representante responde pessoalmente perante o terceiro, sem que este tenha ação em face do representado, salvo se houver ratificação ou, ao que mais de perto interessa à coluna de hoje, aplicação da teoria da aparência.
Como enuncia Pontes de Miranda: “[s]e houve excesso de poderes, sem ter sobrevindo ratificação, nada feito. Os negócios jurídicos foram ineficazes e continuam ineficazes”.5 É, justamente, o que se extrai do artigo 1186 bem como do artigo 6627 do Código Civil, relativo ao mandato. Por essa razão, adverte Caio Mário da Silva Pereira, “o terceiro com quem trata tem direito e dever de inteirar-se da qualidade do representante e da extensão de seus poderes, a ver e discernir que esfera jurídica suportará o impacto da declaração de vontade. No caso de representação convencional, a comprovação se fará exibindo ele o instrumento respectivo, que os terceiros podem exigir, sendo lícita a recusa de qualquer negociação em não comprovando o representante a sua qualidade e a extensão de seus poderes”.8
De outro lado, agindo o representante dentro dos poderes outorgados, mas em abuso de poderes, isto é, violando as instruções transmitidas, está o representado obrigado para com os terceiros de boa-fé, conforme dispõe o artigo 679,9 que contempla norma aplicável a outros ajustes que utilizem a técnica da representação. O dispositivo trata da autonomia da representação frente à relação jurídica base, que regula o modo de exercício dos poderes outorgados.
Enquanto a outorga de poderes de representação habilita o representante a agir como tal, vinculando o representado para com terceiros, a relação jurídica base disciplina os direitos e deveres atribuídos ao representante, cuidando-se de ajuste eficaz entre representante e representado. Dessa forma, se o representante age em excesso de poderes, não vincula o representado, a menos que haja ratificação ou incida a teoria da aparência; se age em abuso de poderes, vincula o representado perante terceiros de boa-fé, mas responde pelos danos a ele (representado) causados.
Há, ainda, a possibilidade de o representante atuar em conflito de interesses com o representado, hipótese em que o negócio jurídico celebrado é anulável, “se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou”, conforme dispõe o artigo 119 do Código Civil.10 Nesse caso, o representante atua dentro dos poderes outorgados, mas celebra negócio jurídico contrário aos interesses do representado.11
Como se nota, o ponto central da representação é que haja outorga de poderes, de modo que terceiros que negociam com o representante considerem que estão estabelecendo relação jurídica com o representado, uma vez que sabem que o representante está investido dos poderes necessários.
A teoria da representação aparente
A teoria da representação aparente se volta a tutelar a legítima confiança de terceiros, convertendo a atuação sem poderes em efetiva representação, de sorte a imputar ao representado as obrigações contraídas com terceiros pelo representante sem poderes.
Trata-se de teoria excepcional, uma vez que permite vincular o representado aparente a negócio jurídico para o qual não outorgou poderes, atribuindo-lhe deveres e obrigações com os quais não consentiu, o que vai de encontro aos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual. Nessa esteira, Ricardo Pereira Lira sublinha a “necessidade de enfrentar o fenômeno da aparência com máxima cautela, para o fim de evitar que, em nome da boa-fé de terceiros, não se termine por subverter princípios jurídicos assentes e consagrados”.12
Por isso, há de se analisar com parcimônia os requisitos necessários à aplicação da teoria, que são cumulativos, pelo que, faltando um deles, a teoria não incide:
situação cujas circunstâncias provoquem inequívoca aparência de representação;
confiança legítima daquele que incorre, de boa-fé, em erro escusável; e
contribuição efetiva, por ação ou omissão qualificada, do titular para que a representação aparentasse legítima.
O primeiro requisito se refere à própria aparência: a existência de situação de fato cercada por circunstâncias diante das quais se apresente como seguramente presente a representação. A aparência deve ser o reflexo de fatos objetivos externamente perceptíveis.
O mero fato de o representante ter relação pregressa com o contratante não é suficiente, por si só, para a criação da aparência, na esteira do que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça. De acordo com a 3ª Turma, em decisão proferida no REsp nº 2.084.236/MT, a existência de operações similares no passado não legitima o representante a agir em excesso de poderes.13
A aparência, todavia, não basta. Afinal, “a aparência, de per si, não é fonte de poder de representação e, portanto, em si mesma considerada não tem jamais o efeito de tornar o dominus vinculado a negócio jurídico entabulado por quem a tanto não estava autorizado”.
Assim, ao lado da aparência objetivamente aferida, impõe-se a presença do segundo requisito: a confiança legítima daquele que, de boa-fé, incorre em erro escusável. Trata-se, aqui, de condensação do erro escusável com a boa-fé, que suscita no contratante a confiança legítima acerca da existência de poderes de representação. Sob tal perspectiva, o erro escusável encerra pressuposto da boa-fé: o contratante não agiu maliciosamente nem foi descuidado, adotou as cautelas impostas pelas circunstâncias, seguiu o padrão de conduta exigível no caso concreto, mas, ainda assim, incorreu em erro.
A escusabilidade do erro reside na sua invencibilidade para qualquer agente com as mesmas características e em iguais circunstâncias daquele que errou. Se o erro é invencível, o contratante ignora legitimamente a inexistência de outorga de poderes, age de boa-fé, configurando-se a confiança legítima na aparência de representação; de outro lado, se o erro é inescusável, o contratante sabia ou devia saber que não houve outorga de poderes, não merecendo a tutela do ordenamento jurídico.
Ao propósito, note-se que as consequências do devia saber são as mesmas do sabia. Não se exige que o contratante efetivamente soubesse da inexistência de poderes para se afastar a teoria da aparência; basta que ele devesse saber, porque devia ter adotado determinado comportamento a fim de confirmar a existência de poderes de representação, mas não o fez.
Nessa direção, circunstâncias suscetíveis de gerar dúvida objetiva no contratante acerca da existência de outorga de poderes afastam a boa-fé: “il dubbio è, per definizione, incompatibile con la buona fede”.14
O erro escusável de boa-fé gerador da legítima confiança é resultado da adoção do comportamento diligente e precavido, exigível do agente diante das concretas circunstâncias do negócio. Naturalmente, o padrão de diligência esperado varia de acordo com a pessoa e com o contexto em que se dá o erro. Imprescindível considerar o específico agente alegadamente iludido pela aparência, a sua expertise e sofisticação, ou a sua vulnerabilidade e debilidade, porquanto o metro da escusabilidade é, a toda evidência, diverso.
A invencibilidade do erro se mostra tanto mais remota quanto mais sofisticado, experimentado no setor e assessorado for o contratante. Com efeito, se no âmbito de pequenos negócios dos quais participam pessoas comuns ou pequenos empresários individuais determinado erro pode ser considerado escusável e de boa-fé considerando o padrão de diligência deles exigível, o mesmo certamente não ocorrerá na hipótese de se estar diante de operação vultosa praticada por sociedades sofisticadas, das quais se exige elevado padrão de cuidado.
No que tange ao terceiro requisito, trata-se de analisar se a conduta do representado contribuiu para suscitar a legítima aparência de representação, a justificar a proteção do terceiro em seu detrimento.15 Impõe-se que o representado tenha atuado efetivamente para a criação da aparência. Do contrário, entre proteger o terceiro – ainda que incidindo em erro escusável e de boa-fé – ou o representado que não contribuiu para a aparência, há de se tutelar o representado.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Critérios para a configuração da representação aparente. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 160, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire160>. Acesso em DD.MM.AAAA
TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil: das várias espécies de contrato, do mandato, da comissão, da agência e distribuição, da corretagem, do transporte. vol. X. Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 7.
Art. 115. Os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo interessado.
Art. 116. A manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado.
TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil: das várias espécies de contrato, do mandato, da comissão, da agência e distribuição, da corretagem, do transporte. vol. X. Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 8.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Dez anos de pareceres. vol. 10. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 257.
Art. 118. O representante é obrigado a provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado, a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo, responder pelos atos que a estes excederem.
Art. 662. Os atos praticados por quem não tenha mandato, ou o tenha sem poderes suficientes, são ineficazes em relação àquele em cujo nome foram praticados, salvo se este os ratificar.
Parágrafo único. A ratificação há de ser expressa, ou resultar de ato inequívoco, e retroagirá à data do ato.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Introdução ao direito civil: teoria geral do direito civil. vol. I. Atualizado por Maria Celina Bodin de Moraes, 30ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 499.
Art. 679. Ainda que o mandatário contrarie as instruções do mandante, se não exceder os limites do mandato, ficará o mandante obrigado para com aqueles com quem o seu procurador contratou; mas terá contra este ação pelas perdas e danos resultantes da inobservância das instruções.
Art. 119. É anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou.
Parágrafo único. É de cento e oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo de decadência para pleitear-se a anulação prevista neste artigo.
SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 7ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 211.
LIRA, Ricardo Pereira. Considerações sobre a representação nos negócios jurídicos. A teoria da aparência e o princípio da publicidade na administração publica. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. nº 1, 1993, p. 318.
“O fato de já ter realizado operações similares no passado – compra de insumos destinados à fazenda da parte embargante – não legitima o ex-funcionário para a prática de outras com o mesmo objeto, nem sequer sob às luzes da denominada Teoria da Aparência, presente a circunstância de que a recorrente, que com ele negociou, não teria agido de boa-fé, segundo as conclusões obtidas por ambas as instâncias ordinárias.” (STJ, REsp nº 2.084.236/MT, 3ª T., Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 11.12.2024).
MENGONI, Luigi. Gli aquisiti “a non domino”. 3ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 1975, p. 322.
TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Notas sobre a representação voluntária e o contrato de mandato. Revista Brasileira de Direito Civil. vol. 12, abr./jun., 2017, p. 33.