#2. O termo inicial dos lucros cessantes
Todo dano tem o seu ciclo de desenvolvimento, mas o iter reconstrutivo da ressarcibilidade de qualquer lucro cessante1 é, de fato, um processo cheio de dificuldades, porque ninguém consegue saber com exatidão como os fatos teriam se desenrolado, não fosse o evento danoso. Situam-se os lucros cessantes em tempo verbal muito particular – o futuro do pretérito, com todos os seus mistérios –, em que a certeza precisa ceder lugar à probabilidade (objetiva), e o seu processo de reconstrução ainda esbarra na frieza dos critérios processuais de repartição do ônus de prova.
Da dificuldade de se construir, hipoteticamente, a situação em que o lesado estaria não fosse o evento danoso decorrem duas tendências igualmente perigosas:
De um lado, decisões que negam a reparação dos lucros cessantes mesmo quando esta faceta do dano patrimonial é claramente devida. Isto ocorre especialmente quando a experiência pretérita da vítima não demonstra a existência anterior de lucros semelhantes. O parâmetro da experiência pretérita conforta o julgador, deixando-o mais seguro para fixar o quantum devido, mas evidentemente não é o único critério apto a demonstrar a existência de lucros frustrados.2
Por outro lado, a jurisprudência também está repleta de casos em que os lucros cessantes foram arbitrados com base em presunções injustificadas, sem que nenhuma circunstância no caso concreto indicasse, efetivamente, que o “lesado” havia deixado de lucrar (ou que havia deixado de lucrar o que alegava).3 A verdade é que, quando o ressarcimento envolve reconstruir uma “realidade hipotética” – como é o caso dos lucros cessantes –, é preciso ter muito cuidado no momento de se delimitar a extensão do dano.
Nesta edição, o nosso em “Em foco” gira os seus holofotes para jogar luz sobre uma questão muito pontual dessa faceta tão importante do dano patrimonial: o seu termo inicial. Por vezes, o termo inicial do qual deve partir o cálculo dos lucros cessantes coincide com a data em que ocorre o próprio evento danoso. No entanto, dependendo das circunstâncias do caso concreto, é possível que o marco temporal que define a fluência dos lucros cessantes esteja descolado da data em que ocorre a lesão ao interesse juridicamente tutelado ou mesmo da data de início da mora,4 sendo estabelecido em momento futuro. Deve-se, portanto, prestar atenção para que no cálculo dos lucros cessantes seja considerado o período correto.
Para ilustrar o que foi dito, seguem dois singelos exemplos reais que corroboram esse alerta. O primeiro é o Recurso Especial 839.123/RJ, em que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça examinou o caso de um incêndio ocorrido numa loja de departamento.5 Na ocasião, a loja tentou valer-se do seguro contratado, cuja cobertura abarcava os lucros cessantes, mas a seguradora se recusou, injustificadamente, a levar a cabo o pagamento, o que atrasou a reabertura da loja. Diante da recusa injustificada da seguradora, a Terceira Turma entendeu que a loja de departamento fazia jus a lucros cessantes, mas o termo inicial, nesse caso, não coincidia com a data de início da mora. Os lucros cessantes foram considerados devidos “a partir do momento em que a empresa estaria apta a reiniciar suas atividades se não houvesse o descumprimento contratual por parte da seguradora” (trecho do voto do relator, o Ministro Sidnei Beneti). Questões fáticas importantes foram consideradas no arbitramento, como o tempo necessário à reconstrução do imóvel e ao reinício das atividades da loja.
O segundo exemplo é do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mais precisamente da 30ª Câmara de Direito Privado.6 O caso girou em torno de um contrato de locação para instalação de um posto de combustíveis no curso do qual o imóvel foi interditado em razão de uma contaminação causada pela locatária na armazenagem de combustíveis. Mesmo depois da interdição, a locatária continuou ocupando o imóvel por certo período. Os proprietários, então, ajuizaram ação a fim de obter os lucros cessantes devidos em razão da contaminação, já que não poderiam mais locar o imóvel a terceiros até que a área fosse recuperada.
No acórdão embargado, discutiu-se qual seria o termo inicial de cálculo dos lucros cessantes, inicialmente fixado na data de interdição do imóvel, no ano de 2007. No entanto, nessa época, o imóvel ainda estava ocupado pela locatária, que não havia encerrado suas atividades no local. Diante disso, o colegiado entendeu que “não deve mesmo ser compreendido no período para cálculo dos lucros cessantes o período em que o imóvel ainda estava ocupado pela locatária, sob pena de bis in idem” (trecho do voto da relatora). O termo inicial, inicialmente fixado em 2007, foi então alterado para 28 de maio de 2013, porque, com razão, se entendeu que a partir de sua desocupação é que os locadores poderiam ter alugado novamente o imóvel para terceiros.
Esses dois singelos exemplos servem para ilustrar a importância de se fixar corretamente o termo inicial dos lucros cessantes, que nem sempre, repita-se, coincide com a data do evento danoso ou, na responsabilidade contratual, com a data do início da mora. Como os lucros cessantes são terreno fértil para as presunções, há sempre o risco de se perder contato com a realidade, então é preciso ficar alerta, especialmente em relação aos marcos temporais. A recomendação vale não só para a fixação do termo inicial dos lucros cessantes, mas também – e principalmente – para o seu termo final (e aqui, um spoiler: em edição futura, o nosso “Em foco” se voltará para o termo final dos lucros cessantes).
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O termo inicial dos lucros cessantes. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 2, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/48625778>. Acesso em DD.MM.AA.
Código Civil: “Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.
Nesse sentido, cf. Gisela Sampaio da Cruz Guedes, Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Na falta da experiência pretérita, chega-se por vezes a fixar a indenização devida com base no salário mínimo, quando tudo está a indicar que o lesado ganharia mais, como no caso da dentista que, ao tomar banho em hotel, sofrera várias queimaduras, ficando, assim, impossibilitada de exercer sua profissão por certo período (TJ/RJ, 18ª CC, AC 2006.001.56265, Rel. Des. Cássia Medeiros, j. 06.02.2007, v.m.).
No STJ, havia um caso corriqueiro, envolvendo empresas rodoviárias em que se afirmava que “[a] empresa rodoviária tem direito aos lucros cessantes, quando um de seus veículos for sinistrado por culpa de outrem, ainda que possua frota de reserva. Segundo o artigo 1.059 do anterior Código Civil, não se exige que os lucros cessantes sejam certos, bastando que, nas circunstâncias de cada caso concreto, sejam razoáveis ou potenciais” (STJ, 3ª T., REsp. 535979/ES, Rel. Min. Castro Filho, j. 18.12.2003, v.u., DJ 25.02.2004, p. 174). Se a empresa tem frota de reserva, nada deixa de lucrar, porque apenas substitui o veículo abalroado por outro da sua frota de reserva. Nessa situação, fala-se hoje no chamado “dano de privação de uso”.
Na responsabilidade contratual, importa verificar se a mora é ex re ou ex personae, nos termos do art. 397 do Código Civil.
STJ, 3ª T., REsp 839.123/RJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 15.09.2009, v.u., DJ 15.12.2009.
TJ/SP, 30ª CDPriv., EDcl Cível 1021490-02.2016.8.26.0002, Rel. Maria Lúcia Pizzotti, j. 12.12.2018, v.u., DJ 13.12.2018.