#29. Entre a assinatura e o fechamento: a aparentemente inofensiva cláusula que impõe o curso ordinário dos negócios
No AGIRE #20, vimos que, nas operações de fusões e aquisições (“M&A”) com fechamento diferido, muita coisa pode acontecer no interregno entre a assinatura (signing) e o fechamento (closing). De fato, diversos fatores podem impactar o desfecho de uma operação societária e, exatamente por isso, o período entre o signing e o closing constitui fase sensível e bem peculiar do negócio. Para assegurar ao comprador que a sociedade-alvo não perderá valor depois do signing, costuma-se fazer uso de uma cláusula que impõe ao vendedor a obrigação de não se desviar do curso ordinário do negócio (ordinary course of business). O objetivo desta coluna é jogar luz sobre essa cláusula, aparentemente inofensiva, mas com potencial de suscitar muitas controvérsias.
Desassossegos intelectuais, provocações e outras avenças
O que, afinal, essa obrigação significa na prática? Qual é o seu alcance? A inclusão dessa cláusula em contrato impede completamente o vendedor de fazer qualquer alteração na gestão da sociedade-alvo durante o interregno entre o signing e o closing? E se a medida a ser tomada pelo vendedor for urgente e imprescindível para salvaguardar os negócios da sociedade-alvo? Durante o período compreendido entre o signing e o closing, o vendedor precisa, necessariamente, da concordância do comprador para tomar toda e qualquer providência alheia ao curso normal dos negócios? Como o conteúdo e a redação dessa cláusula interferem nessa discussão? Qual a relevância do comportamento das partes na verificação do cumprimento das obrigações decorrentes da cláusula que impõe a manutenção do ordinary course of business? Afinal, o que impõem os deveres decorrentes da boa-fé objetiva?
O caso “AB Stables v. MAPS Hotels”
Em recente decisão proferida pela “Court of Chancery of the State of Delaware” no caso “AB Stables v. MAPS Hotels”,1 a cláusula que impõe ao vendedor a obrigação de respeitar o ordinary course of business foi intensamente discutida. A sociedade-alvo, cujo controle estava sendo alienado, era uma rede hoteleira com quinze hotéis. A pandemia da COVID-19 veio à tona exatamente no período entre o signing e o closing, impactando diretamente a operação. No contrato de compra e venda que instrumentalizou o negócio, havia uma cláusula padrão obrigando o vendedor a manter o ordinary course of business2 (além de uma cláusula MAC, que não será aqui discutida).
Com o advento da pandemia, o vendedor teve que tomar algumas medidas extremas a fim de adequar a sociedade-alvo à nova realidade:
(i) encerrou as atividades de um dos quinze hotéis da sociedade-alvo;
(ii) antecipou o fechamento temporário de um dos hotéis sazonais;
(iii) reduziu a operação dos outros treze hotéis, inclusive o número de funcionários; e
(iv) suspendeu todos os gastos financeiros que reputava não essenciais, impondo restrições ou mesmo fechando restaurantes, academias, áreas comuns etc. dos hotéis.
Diante disso, quando as partes se aproximaram da data prevista para o fechamento da operação, o comprador alegou que não estava mais obrigado a concluir o negócio, já que o vendedor teria descumprido a sua obrigação de conduzir os negócios da sociedade-alvo dentro do ordinary course of business. Inconformado com a não conclusão do negócio, o vendedor, então, ajuizou uma ação contra o comprador para obrigá-lo a cumprir o contrato avençado. O caso todo girou em torno da interpretação de duas cláusulas: (i) da cláusula MAC, rapidamente descartada em razão das especificidades da sua redação; e, principalmente, (ii) da cláusula que obrigava o vendedor a conduzir os negócios sociais conforme o ordinary course of business.
A defesa do comprador
O comprador alegou que a expressão ordinary course of business aludia à forma como o negócio operava rotineiramente em circunstâncias normais. Com as mudanças radicais que a administração implementou diante dos impactos sociais e econômicos da pandemia da COVID-19, o vendedor teria conduzido a operação dos hotéis em desconformidade com o curso normal dos negócios e, portanto, teria descumprido a obrigação ali pactuada.
A réplica do vendedor
Considerando que o cerne da controvérsia estava na análise da rigidez da referida cláusula, o vendedor argumentou que a administração (i) precisava ter flexibilidade para lidar com circunstâncias adversas e eventos imprevisíveis e (ii) não teria se afastado do ordinary course of business ao adotar práticas de gestão que correspondiam a “respostas comuns a eventos extraordinários”. Segundo o vendedor, a pandemia da COVID-19 foi uma situação extraordinária, que exigiu uma resposta à altura, de forma que a gestão nada mais fez do que operar no curso normal dos negócios considerando o que seria comum em um cenário pandêmico. No cerne da controvérsia, portanto, está a questão de se saber o quão rígida é a cláusula que impõe ao vendedor a obrigação de não se afastar do curso normal dos negócios.
A decisão da Court of Chancery of the State of Delaware
Na decisão do caso “AB Stables v. MAPS Hotels”, a Corte de Delaware, fazendo referência a outro precedente – o caso “FleetBoston” –, reconheceu que, mesmo diante de uma situação extraordinária, a administração não poderia tomar medidas extraordinárias e alegar que são comuns sob as circunstâncias do caso concreto. Para a Corte, a cláusula do curso ordinário dos negócios não permitiria que a administração implementasse medidas extremas, ainda que empregadas por outras redes hoteleiras para enfrentar a pandemia. Ao interpretar a cláusula, a Corte também comparou as medidas adotadas pela administração da sociedade-alvo com a forma como a empresa operava rotineiramente no passado.
Destaque
O caso suscita diversas questões interessantes. Embora essa cláusula não represente uma camisa de força para o vendedor, não se pode perder de vista que a função dela é proteger o comprador, assegurando-lhe que, no closing, o ativo não terá perdido valor. Importa destacar que tanto o comprador, quanto a Corte, posteriormente na sentença, exploraram o fato de a redação da cláusula mencionar expressamente práticas passadas.3 Com efeito, a cláusula discutida estabelecia que “the business of the Company [...] shall be conducted only in the ordinary course of business consistent with past practice in all material respects”. Ou seja: as próprias partes qualificaram, de forma restritiva, o que seria o curso ordinário dos negócios, fazendo referência a práticas passadas.
Moral da história: se o texto importa – e sempre há de importar –, cuidado com a redação. E não custa lembrar: se o Direito brasileiro for aplicável, preste atenção também nos deveres decorrentes da boa-fé objetiva.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Entre a assinatura e o fechamento: a aparentemente inofensiva cláusula que impõe o curso ordinário dos negócios. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 29, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/69758142>. Acesso em DD.MM.AA.
C.A. No. 2020-0310-JTL, julgado pela Court of Chancery of the State of Delaware e conhecido como caso “AB Stables v. MAPS Hotels”.
Naquele programa contratual, o “Ordinary Course Covenant” estava previsto na Section 5.1 do contrato de compra e venda, com a seguinte redação: “Except as otherwise contemplated by this Agreement or as set forth in Section 5.1 of the Disclosure Schedules, between the date of this Agreement and the Closing Date, unless the Buyer shall otherwise provide its prior written consent (which consent shall not be unreasonably withheld, conditioned or delayed), the business of the Company and its Subsidiaries shall be conducted only in the ordinary course of business consistent with past practice in all material respects, including using commercially reasonable efforts to maintain commercially reasonable levels of Supplies, F&B, Retail Inventory, Liquor Assets and FF&E consistent with past practice, and in accordance with the Company Management Agreements”.
Assim, a “Court of Chancery of the State of Delaware” entendeu o seguinte: “Generally speaking, there are two principal sources of evidence that the court can examine to establish what constitutes the ordinary course of business. First, the court can look to how the company has operated in the past, both generally and under similar circumstances. Second, the court can look to how comparable companies are operating or have operated, both generally and under similar circumstances. (…) By including the adverb “only” and the phrase “consistent with past practice,” the parties created a standard that looks exclusively to how the business has operated in the past. When determining whether a party has acted ‘consistent with past practice’, the court must evaluate the company’s operations ‘before and after entering into’ the transaction agreement to determine whether those operations are ‘consistent’. (...) Because of the standard that the parties chose, the court cannot look to how other companies responded to the pandemic or operated under similar circumstances” (Trecho da decisão C.A. No. 2020-0310-JTL, no caso AB Stables v. MAPS Hotels, julgado pela “Court of Chancery of the State of Delaware”).