#32. Quanto vale o lucro da intervenção?
Critérios para quantificar o montante a ser excluído do patrimônio do interventor
Na AGIRE #23, tratou-se da distinção entre enriquecimento sem causa por lucro da intervenção e responsabilidade civil. A distinção assume especial relevância quando o agente comete ilícito contratual ou extracontratual e obtém lucro superior ao dano causado à vítima. Nesses casos, a atribuição de indenização ao lesado – que se mede pela extensão do dano, sem consideração à reprovabilidade da conduta do ofensor – não é capaz de retirar do patrimônio do agente o lucro remanescente.[1] Para que o “crime não compense”, impõe-se lançar mão do enriquecimento sem causa. Como se anunciou na coluna anterior, a grande dificuldade em torno do tema reside, justamente, na quantificação do valor a ser retirado do patrimônio do interventor. Esta coluna se propõe a identificar alguns critérios que auxiliem nessa tarefa.
Nexo causal
Embora responsabilidade civil e enriquecimento sem causa encerrem institutos com funções absolutamente distintas, considerando o notável desenvolvimento teórico da doutrina naquele campo, algumas lições lá desenvolvidas podem ajudar na identificação de critérios para quantificar o valor a ser expurgado do patrimônio do agente, a exemplo daquelas ligadas à análise do nexo causal.
No âmbito da relação entre causador do dano e vítima, reconhece-se amplamente que o nexo causal desempenha duas funções: determina a quem se deve atribuir o resultado danoso, e quantifica a extensão do dano a indenizar. Já na relação entre os coautores do dano, o nexo de causalidade atua na distribuição dos prejuízos entre eles, já que, frente à vítima, são todos solidariamente responsáveis (art. 942, Código Civil). De fato, entende-se que o agente cuja conduta teve mais eficácia na causação do dano deve arcar com a maior parcela da indenização.[2] Assim, no momento de partilhar o prejuízo entre os corresponsáveis pelo dano (na relação interna entre eles, frise-se) o julgador deverá avaliar quanto cada conduta contribuiu para a produção do resultado danoso, atribuindo ao agente cuja conduta teve mais eficácia causal uma parcela proporcionalmente maior dos prejuízos. Todas essas ideias podem, com as devidas adaptações, ser aplicadas ao enriquecimento sem causa por lucro da intervenção para permitir a identificação do montante a ser entregue ao titular do direito objeto da intervenção.
Em primeiro lugar, é necessário perquirir se todo o lucro auferido pelo agente decorreu da intervenção ou se parte dele é fruto da sua atividade e dos seus esforços exclusivos. Assim como na responsabilidade civil o nexo de causalidade liga o dano ao seu autor, no enriquecimento sem causa por lucro da intervenção o nexo causal pode ligar o lucro ao agente interventor ou, então, ao objeto da intervenção. O nexo causal permitirá, assim, identificar quanto do lucro obtido foi gerado pelos próprios esforços do interventor, devendo, em princípio, com ele permanecer, e quanto decorreu do objeto da intervenção, podendo vir a ser entregue ao seu titular.
Posto a análise nem sempre se afigure simples, a eventual experiência pretérita do interventor naquela atividade pode tornar mais fácil identificar se o lucro foi gerado pela intervenção ou pelos esforços exclusivos do interventor, adotando-se como parâmetro os lucros que ele normalmente auferia antes de violar o direito alheio. A comparação entre o que o agente vinha auferindo e o que passou a auferir depois da intervenção é um critério, ainda que aproximativo, para identificar a parcela do lucro que não se liga por nexo de causalidade com a intervenção e que, por isso, deve ser mantida com o interventor. Como se nota, a análise é semelhante àquela realizada para a indenização dos lucros cessantes na responsabilidade civil;[3] a diferença reside no fato de que, para fins de indenização por lucros cessantes, analisa-se a experiência pretérita para aferir o que o lesado razoavelmente deixou de ganhar em razão da lesão, enquanto para fins de enriquecimento sem causa por lucro da intervenção, analisa-se a experiência pretérita para aferir a parcela do lucro a ser mantida em seu patrimônio porque decorrente do seu exclusivo esforço, não já da intervenção no direito alheio.
Identificado o valor máximo que pode vir a ser entregue ao titular do direito objeto da intervenção – porque a ele relacionada –, mister verificar se alguma parte desse montante deve permanecer com o interventor. Para tanto, será importante investigar se o agente estava de boa-fé ou de má-fé ao intervir no direito alheio, a fim de avaliar a ilegitimidade da sua conduta.
Boa-fé e má-fé do agente interventor
No campo da responsabilidade civil, afasta-se a análise acerca da reprovabilidade da conduta do agente para fins de quantificação da indenização. O mesmo, todavia, não ocorre em sede de enriquecimento sem causa. De fato, enquanto o foco da responsabilidade civil é a reparação da vítima, a exigir que todos os critérios de quantificação se reportem aos efeitos da lesão por ela suportados (art. 944, CC), o foco do enriquecimento sem causa é excluir do patrimônio do agente o lucro ilegitimamente auferido, razão pela qual é importante analisar se ele agiu de boa-fé ou de má-fé. Não se trata, com isso, de reconhecer qualquer função punitiva ao enriquecimento sem causa, que exerce função eminentemente restitutória; cuida-se apenas de investigar o montante do lucro que é efetivamente ilegítimo e aquele que, de alguma forma, ostenta certo grau de legitimidade por estar diretamente atrelado ao esforço do próprio interventor.
Com efeito, se o interventor agiu de boa-fé porque não sabia e não tinha como saber com os esforços dele exigidos que estava intervindo em direito alheio, apenas parte dos lucros devem ser entregues ao titular do objeto da intervenção. A quantificação desse montante há de ser feita com base no critério do grau de eficácia causal da conduta do interventor: a parcela dos lucros direta e exclusivamente relacionada ao objeto da intervenção deve ser entregue ao titular do direito, enquanto aquela que, mesmo obtida a partir da intervenção, decorrer da atividade e do esforço do interventor, deve com ele permanecer, já que não se revela, de fato, ilegítima. Aqui, o nexo causal desempenha, no enriquecimento sem causa, papel semelhante àquele desempenhado na responsabilidade civil quando da distribuição dos prejuízos entre os coautores do dano.
Por outro lado, se o agente estiver de má-fé, ou seja, se sabia ou deveria saber a partir dos esforços dele exigidos que estava intervindo em direito alheio, pratica conduta antijurídica, pelo que a transferência dos lucros deverá, em regra, ser total, vale dizer, a totalidade do enriquecimento patrimonial será atribuída ao titular do direito, inclusive a parcela do lucro auferida a partir do esforço do agente, mas como desdobramento necessário da intervenção. Isso, porque, ainda que proveniente de esforço do próprio interventor, a má-fé original contamina todo o lucro obtido, tornando-o antijurídico na integralidade, e por isso não se pode permitir que permaneça nas mãos do agente.
A distinção entre o tratamento conferido ao interventor de boa-fé e ao de má-fé é corroborada pelo ordenamento jurídico brasileiro que, em diversas situações, agrava a posição de quem está de má-fé, preterindo o fundamento da conservação estática dos patrimônios, em prol do titular do direito objeto da intervenção indevida. Em alguns casos, a lei afasta até mesmo o direito ao reembolso pelas despesas incorridas, como se verifica na especificação: se impraticável a redução e a espécie nova tiver sido obtida de má-fé, pertencerá ao dono da matéria-prima, sem que o especificador tenha direito a qualquer tipo de reembolso ou indenização (art. 1.270, §1º, c/c art. 1.271 – ambos do Código Civil). Em outros, o Código Civil segue na direção oposta: no caso dos frutos colhidos e percebidos, o possuidor de má-fé responde, mas deve ser reembolsado pelas despesas de produção e custeio (art. 1.216 do Código Civil).
Bônus track
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o paradigmático “caso Giovanna Antonelli”,[4] tratou da quantificação do lucro da intervenção. Cuidou-se de demanda pela qual a atriz pleiteou, em face de Dermo Formulações Farmácia de Manipulação Ltda., indenização bem como restituição de todos os benefícios econômicos auferidos com a venda dos produtos atrelados ao seu nome e imagem veiculados em campanha publicitária de suposto composto emagrecedor sem a sua autorização. A 3ª Turma, após reconhecer a impossibilidade de qualificar o lucro da intervenção como verba indenizatória e a necessidade de tratá-lo no âmbito do enriquecimento sem causa, decidiu que o lucro patrimonial a ser restituído deveria ser apurado com base em alguns critérios, dentre os quais destacou o “grau de contribuição de cada uma das partes mediante abatimento dos valores correspondentes a outros fatores que contribuíram para a obtenção do lucro, tais como a experiência do interventor, suas qualidades pessoais e as despesas realizadas” – ou seja, considerou a experiência pretérita do interventor –, bem como a má-fé da ré, que usou o nome e a imagem da autora, sabendo que não tinha autorização para tanto, violando deliberadamente direitos da personalidade.
Aline Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Sócia em Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.
[1] Sobre o tema, seja consentido remeter a TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Revisitando o lucro da intervenção: novas reflexões para antigos problemas. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 29, p. 281-305, jul./set. 2021.
[2] GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 351.
[3] Sobre o tema, veja-se, por todos: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[4] STJ, 3ª T., REsp nº 1.698.701/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 2.10.2018.