#38. “Atrasos concorrentes e simultâneos" em construção: um problema puramente de causalidade
O que são os chamados “atrasos concorrentes e simultâneos”?
Há causas diversas de atraso de obra, que suscitam soluções distintas, mas uma das mais complexas é a dos atrasos concorrentes. Nas disputas de construção, não raras vezes ocorrem situações em que ambas as partes – empreiteiro e dono da obra – atrasam simultaneamente o cumprimento de alguma obrigação, impactando da mesma forma a entrega final da obra. Não são quaisquer atrasos, porém, que podem ser qualificados como “atrasos concorrentes e simultâneos”. E como as palavras têm múltiplos significados, convém alertar o leitor que, nesta edição da AGIRE, a expressão entre aspas (“atrasos concorrentes e simultâneos”) está sendo empregada para se remeter à seguinte situação:
1. Dois atrasos que são de responsabilidade contratual de partes diferentes;
2. As condutas das partes contratantes devem ter a mesma eficácia causal (ou eficácia causal aproximada) para a produção do atraso na entrega final da obra, isto é, nenhuma delas deve ser mais efetiva para a causação do atraso;
3. Dois atrasos que não são relacionados – isto é, independentes entre si, de modo que um não provoca o outro, nem favorece a eficácia do outro – e teriam impactado a obra do mesmo jeito, mesmo se não existisse o outro;
4. Cada um dos dois atrasos deve, independentemente do outro, atrasar o próprio caminho crítico da obra (são causas cumulativas, e não complementares);
5. Os dois atrasos devem ser determinantes para o atraso final da obra, e não facilmente solucionáveis;
6. Os atrasos devem ocorrer concomitantemente (ou simultaneamente), impactando exatamente o mesmo período de tempo analisado.
E para ilustrar o que foi dito, tome-se o exemplo da construção de uma obra de infraestrutura: o empreiteiro atrasa o início da obra em 1 (uma) semana porque só se deu conta de que não tinha o equipamento necessário para encetar os trabalhos no dia em que estava contratualmente obrigado a dar início às obras. No entanto, mais tarde veio a descobrir que, ainda que tivesse o tal equipamento na data ajustada, não poderia ter iniciado a obra no momento oportuno, acordado contratualmente, porque a licença necessária para o início da construção, que ficara a cargo do dono da obra, também fora obtida com 1 (uma) semana de atraso. Os dois atrasos, portanto, impactam a entrega final da obra, provocando a sua morosidade. A pergunta que se põe é: quem deve responder pelo atraso da obra nessa hipótese?
“Culpas não se compensam”
Com essa frase célebre, que é repetida em todos os manuais de Direito Civil, Pontes de Miranda explica que “[p]reliminarmente, é de afastar-se o conceito, que turvou a investigação e perturba a discussão, ainda hoje, de compensação de culpas. Culpas não se compensam. O ato do ofendido é concausa ou aumentou o dano. Trata-se de saber até onde, em se tratando de concausa, responde o agente, ou como se há de separar do importe o excesso, isto é, o que tocaria ao que fez maior o dano, que, aí, é o ofendido”.1
Significa dizer, por outras palavras, que não se deve “medir culpas”, mas, sim, danos, investigando-se as suas relações causais. E é justamente por isso que, mesmo em sede de responsabilidade objetiva, é possível “pré-diminuir (ou, mesmo, pré-excluir) a responsabilidade do ofensor. Desse modo, ‘o ofensor responde, ou deixa de responder porque só até aquele ponto foi responsável, ou não foi responsável’”.2
Breve nota sobre o fenômeno da concorrência de causas
A análise do nexo causal não é tarefa fácil, porque, à semelhança do que ocorre no Direito Penal com a figura da coautoria, também no Direito Civil é possível observar que várias circunstâncias podem interferir, de diferentes formas, na produção do resultado danoso. Embora a hipótese mais corriqueira de aplicação do art. 942 do Código Civil seja a de coautoria, em que há convergência subjetiva e objetiva na produção do dano – ou seja, autor e coautor agem (ou se omitem), de forma coordenada, para a produção do dano –, há quem entenda que o suporte fático de incidência do referido dispositivo também abarca as situações de mera convergência objetiva, em que dois agentes não “combinaram” previamente a ação (ou a omissão), mas, apesar da falta de coordenação, a conduta de ambos leva à produção do mesmo resultado danoso.
Dentro da rubrica genérica da concorrência ou concurso de causas, impõe-se desde logo distinguir o conceito de causas complementares do de causas cumulativas. Verifica-se a ocorrência de causas complementares quando duas ou mais causas concorrem para a produção de um resultado que não teria sido alcançado de forma isolada por nenhuma delas. As causas complementares são também conhecidas como concausas, causalidade conjunta ou comum. Há, portanto, concausas quando o resultado lesivo é decorrência de fatos diversos que, isoladamente, não teriam eficácia suficiente para causar o dano. Já nas hipóteses de causas cumulativas, ao contrário, cada uma das causas teria, de forma isolada, determinado a produção do resultado. As causas cumulativas são também chamadas de concorrentes.
Tanto as causas complementares (concausas) como as causas concorrentes (causalidade cumulativa) podem ocorrer de forma simultânea (causas simultâneas) ou sucessiva (causas sucessivas). Em regra, quando vários agentes causam o dano de forma simultânea, a ofensa é única, razão pela qual se justifica plenamente a regra da solidariedade,3 com base no art. 942 do Código Civil.4
Na ocorrência de causas sucessivas, de outro lado, é possível cogitar-se de danos autônomos ou de uma espécie de “causalidade parcial” (propositalmente, entre aspas) em que cada uma das causas dá origem a uma parcela independente do dano que, justamente por ser formado por partes autônomas, será imputado a diferentes autores sem a regra da solidariedade. Neste caso, em que cada agente causa uma parcela individualizada do dano, “impor a solidariedade é agredir a regra da causalidade jurídica”.5 Cada agente deverá responder tão somente pelo dano que causou ou pela parcela do dano que causou. Mas não é só. As causas sucessivas suscitam, ainda, outro problema que é o de se saber se o fato posterior (2º fato) interrompe ou não o nexo de causalidade que ligaria a conduta do 1º fato ao dano, tornando essa discussão ainda mais complicada.
Consequências jurídicas dos atrasos
De modo geral, se o atraso ocorreu no caminho crítico da obra e foi provocado exclusivamente pelo dono da obra – que, por exemplo, não obteve a licença necessária para o início dos trabalhos –, sem que tenha havido qualquer outra causa concorrente, a consequência provável é que haverá a extensão dos prazos contratuais e o empreiteiro terá de ser ressarcido pelos prejuízos eventualmente sofridos (acréscimos de despesas com mão de obra, por exemplo).
Por outro lado, se o atraso ocorreu no caminho crítico da obra, mas em razão exclusivamente da conduta do empreiteiro, sem que tenha havido qualquer outra causa concorrente, a consequência provável é que o empreiteiro não será agraciado com a repactuação do prazo, nem receberá qualquer adicional de preço. Nesse segundo cenário, o empreiteiro é que responderá pelas consequências do atraso da obra, tendo que suportar os eventuais prejuízos sofridos pelo dono da obra, que podem já estar pré-fixados em cláusula penal ou circunscritos por cláusula limitativa do dever de indenizar.
Pode acontecer, ainda, de o atraso ter ocorrido no caminho crítico da obra, mas não ser imputável a qualquer das partes, sendo antes provocado por um caso fortuito ou de força maior. Nesse terceiro cenário, será preciso verificar se o próprio programa contratual já resolve a questão, alocando o risco do fortuito para uma das partes, nos termos do artigo 393 do Código Civil (caput, parte final). Na ausência de cláusula de alocação do risco concretizado, cada uma das partes suportará os seus próprios prejuízos, o que significa dizer que o empreiteiro não responderá pelos prejuízos sofridos pelo dono da obra em razão do atraso, mas terá de suportar as eventuais despesas adicionais incorridas para contornar os efeitos do fortuito.
A esses três cenários, acresce-se agora o quarto, aventado no início desta coluna: qual é a consequência jurídica dos “atrasos concorrentes e simultâneos”? Em outras palavras: o que acontece quando duas causas concorrentes (cumulativas) atuam de forma simultânea e com a mesma eficácia, preenchendo os seis requisitos elencados acima, para provocar o atraso de uma obra, sendo cada uma delas imputável a uma das partes contratantes?
Solução do problema
Na prática, a parte ré da ação – quem quer que seja, empreiteiro ou dono da obra, dependendo de quem tiver tomado a iniciativa de propor a demanda – se defende sob o argumento de que a concorrência da outra parte para o atraso é suficiente para neutralizar os efeitos de seu próprio atraso, afastando, assim, a sua obrigação de indenizar.
Na experiência internacional,6[6] a solução é ancorada em quatro pilares: (i) nenhuma das partes se beneficia monetariamente do atraso; (ii) a única solução permitida para os “atrasos concorrentes” é a extensão de prazo; (iii) o direito à indenização de uma das partes é “neutralizado” pelo direito à indenização da outra; (iv) o atraso é tratado como “escusável” e “não controlável” por qualquer parte.
No Direito brasileiro, a questão muitas vezes é mal colocada. Esse problema nada tem a ver com culpas que não se compensam, nem, propriamente, com exceção do contrato não cumprido, sendo, em verdade, um problema puramente de causalidade. A solução, portanto, não deveria ser muito diferente da experiência internacional, devendo o prejuízo ser repartido entre os dois agentes que causaram o dano, contanto que a questão envolva, de fato, atrasos concorrentes e simultâneos, nos termos aqui tratados.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. “Atrasos concorrentes e simultâneos" em construção: um problema puramente de causalidade. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 38, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/80227361>. Acesso em DD.MM.AA.
Pontes de Miranda, Tratado de direito privado. tomo XXII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 281.
Judith Martins-Costa, “Do inadimplemento das obrigações”. In: Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.), Comentários ao Novo Código Civil, vol. V, tomo II, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2008, p. 508.
Diz-se “em regra”, porque pode acontecer de dois fatos serem simultâneos, mas só a eficácia causal de um deles ter realmente produzido o dano.
Nos termos do art. 942: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único: São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932”.
Antonio Lindbergh C. Montenegro, Responsabilidade civil, 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996, p. 344.
E aqui cabe mencionar o Protocolo AACE® - Práticas recomendadas internacionalmente n.º 29r-03. Cf. também: Raid Abu-Manneh, Ulrich Helm, Jonathan Stone, Marcelo Richter, “Concurrent analysis of concurrent delay: the approach in England, the UAE, Germany and Brazil”. The International Construction Law Review, 2020, pp. 106-129; Hamish Lal, Brendan Casey and Josephine Kaiding, “Comparative Approaches to Concurrent Delay”.