#43. Na pauta do STJ: cartel, prescrição e indenização
O caso em pauta
No Em Pauta desta semana, o REsp. 1.971.316-SP, julgado em 25.10.2022, cujo relator foi o Min. Luis Felipe Salomão. A controvérsia cinge-se a definir o termo inicial do prazo prescricional aplicável à ação de indenização por danos materiais e morais, sofridos em decorrência da prática de atos potencialmente configuradores de cartel. Na berlinda, sociedades que atuavam no ramo de fabricação e comercialização de sucos de laranja, acusadas por desenvolver suas atividades industriais e comerciais com “inequívoca unidade de propósitos, a partir da formação de acordos, convênios e alianças, como ofertantes, visando à fixação artificial de preços e quantidades vendidas e produzidas, ao controle do mercado nacional, em detrimento da concorrência, da rede de distribuição e fornecedores, relativo a suco de laranja industrializado”.1
“Stand-alone suits” vs. “follow-on suits”
As ações de indenização por dano concorrencial podem ter como fundamento (i) condutas anticoncorrenciais relatadas diretamente pelas vítimas ou (ii) condutas que foram previamente investigadas pelas autoridades de defesa da concorrência. No primeiro caso, têm-se uma ação judicial stand-alone, em que a própria vítima apresenta as provas do ato alegado, assim como a demonstração do dano sofrido; no segundo, a chamada ação judicial follow-on, em que a vítima se vale das provas e decisões produzidas pela autoridade concorrencial que condenou o cartel, na esteira da investigação anteriormente em curso. O nosso Em Pauta é sobre uma ação stand-alone, mas, nos “follow-on suits”, surge a questão de se saber até que ponto a decisão administrativa vincula o juízo cível, controvérsia que também merece atenção.
Influência da decisão administrativa sobre o juízo cível
O Código Civil consagra, no art. 935, a independência da responsabilidade civil em relação à criminal, mas ressalva que no juízo cível não se poderá mais questionar “sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”. Se assim não fosse, graves distorções poderiam ocorrer, comprometendo os valores do ordenamento, como sistema que deve funcionar de forma harmônica e sem contradições. Na esfera criminal, portanto, a condenação pela prática de cartel define o fato e a autoria no juízo cível.
Já na esfera administrativa, o art. 47 da Lei n.º 12.529/2011, que regula a estrutura do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, estabelece apenas que os prejudicados pelas práticas que constituam infração da ordem econômica poderão ingressar em juízo para pleitear perdas e danos, “independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação”. O referido dispositivo, cuja redação difere do art. 935 do Código Civil, tem sido usado para fundamentar tanto (i) casos em que, mesmo ciente da condenação administrativa, o juízo cível discordou do CADE e entendeu que não houve qualquer conduta ilícita, como também (ii) casos em que o juízo cível acolheu a decisão condenatória do CADE como evidência significativa da prática de cartel.2
O termo inicial da prescrição
No caso em pauta, o autor da ação, produtor rural que celebrara contrato de compra e venda de laranja com uma das signatárias de Termo de Cessação de Conduta (“TCC”), pleiteava, dentre outras coisas, indenização correspondente à diferença entre o preço contratado para a venda das caixas de laranja e o preço que deveria ter sido pago no cenário hipotético sem cartel.
A grande questão do caso era definir o termo inicial da prescrição, considerando o seguinte:
(i) a operação de cartel teve início logo após a celebração de acordo entre os envolvidos, consubstanciando-se neste momento o início da produção dos danos concorrenciais;
(ii) o CADE instaurou o processo administrativo em 1999;
(iii) no curso das investigações, a ré chegou a firmar com a autoridade administrativa investigadora um TCC, como condição de suspensão do processo administrativo instaurado contra ela, mas o referido acordo foi extinto em razão do cumprimento das obrigações ali pactuadas. O Tribunal Administrativo do CADE proferiu a decisão extintiva em 2018;
(iv) não havia decisão do CADE reconhecendo a existência de cartel, nem confissão da ré em relação a esse fato, sendo o caso em pauta, como já dito, exemplo de “stand-alone suit”;
(v) os dois contratos firmados entre o autor e a ré datavam de 2001 e 2003, tendo por objeto as safras de 2001/2002 a 2005/2006; e, finalmente,
(vi) a ação indenizatória foi ajuizada pelo citricultor em 2019.
Em 1ª instância, mesmo tendo sido aplicado o prazo decenal, a pretensão do autor foi considerada prescrita, porque o juiz entendeu que o termo inicial da prescrição era a data de celebração dos contratos.
O autor então recorreu ao TJ/SP, sustentando que prescrição deveria ser contada da publicação da decisão extintiva do CADE. A 31ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP manteve a sentença, sob o fundamento de que, nas ações follow-on, a prescrição fluiria a partir da decisão condenatória do CADE por infração da ordem econômica, mas, no caso concreto, o CADE teria proferido decisão meramente homologatória de TCC, de natureza diversa, razão pela qual a prescrição teria fluído desde a celebração dos contratos, conforme decidido na sentença. Já no que concerne ao prazo prescricional, dissentindo do juiz de 1º grau, o TJ/SP registrou que a demanda estava embasada em suposto cartel de preços (ilícito concorrencial), e não em descumprimento contratual, então o prazo aplicável teria que ser o trienal, atinente às pretensões reparatórias provenientes de ilícito extracontratual.
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento unânime, decidiu em linha com o TJ/SP, nos seguintes termos: “o início do prazo prescricional, nessas hipóteses, não pode ser a data da decisão condenatória proferida pelo CADE, simplesmente porque decisão condenatória não há. Em situações como essa, o início do prazo prescricional (tratando-se de responsabilidade extracontratual) é o momento em que o prejudicado teve ciência da conduta que afirma ser ilícita, conforme a regra geral prevista no diploma material civil e o entendimento desta Corte Superior”.3
O momento em que o lesado teve conhecimento (ou poderia, objetivamente, ter tido conhecimento) do ilícito é, de fato, importante para a análise da prescrição, porque a partir daí a pretensão já pode ser exercida. Em vez de tratar da prescrição a partir dos seus efeitos, como fazia o Código Civil de 1916 sem muito rigor científico, o Código Civil de 2002 ancorou a disciplina da prescrição na noção de pretensão, que significa “somente aquilo que se pode exigir”.4 No cerne do debate está, portanto, o conceito de pretensão, que muitas vezes é confundido com “direito”, “lesão” ou mesmo ainda com “ação” no sentido processual. Apesar de a noção de pretensão não estar bem definida pela doutrina brasileira, a ideia denota um “poder exigir” – no sentido de possibilidade de exigir – e, no atual Código Civil, aparece desvinculada do direito processual.
Assim, o antigo rigor que existia em torno da vetusta concepção de segurança jurídica e da “possibilidade jurídica de exercício do direito” cedeu lugar à “exercibilidade concreta da pretensão”, que só pode ser identificada no âmbito de determinada relação jurídica.5 O próprio conceito de inércia passou a ser visto numa perspectiva mais dinâmica e funcional, com referência: “(i) ao comportamento exigível do titular, avaliando-se o modo pelo qual o direito é desfrutado e realizado; (ii) ao momento em que a pretensão surgiu e se tornou exercitável, investigando-se se restou configurada a impossibilidade de agir; (ii) o comportamento adotado pelo titular do direito”.6
Embora a decisão do STJ se refira ao “momento em que o prejudicado teve ciência da conduta que afirma ser ilícita”, aparentemente em linha com o conceito de pretensão, algumas dúvidas persistem. Tanto a decisão de 1ª instância, quanto a decisão do TJ/SP e do STJ tomaram como marco inicial da prescrição a data dos contratos firmados pelo citricultor, e não a decisão extintiva do CADE, mas será que, ao firmar tais contratos, o citricultor já tinha realmente ciência de que era vítima do cartel? Não seria possível aplicar, analogicamente, o art. 200 do Código Civil ao caso, suspendendo-se o prazo prescricional até a decisão extintiva do CADE?
Prova e quantificação do sobrepreço
No caso dos cartéis, o dano patrimonial decorre do chamado “sobrepreço”, que nada mais é do que o valor pago a maior pelo adquirente do produto ou do serviço em virtude do aumento artificial dos preços provocado pelo cartel.
No Direito brasileiro, embora o quantum debeatur possa ser deixado para a fase de liquidação, a existência do dano (an debeatur) deve ser provada ainda no processo de conhecimento e, no que diz respeito aos cartéis, passa necessariamente pela demonstração: (i) de que houve, de fato, sobrepreço no mercado em decorrência do cartel (estudos econômicos podem analisar os preços praticados no mercado7 e o contato estreito entre os concorrentes pode evidenciar como os ajustes de aumento de preço eram praticados8); e (ii) de que o autor adquiriu os produtos ou serviços das empresas que formavam o cartel no período e no mercado em que se verificou o tal sobrepreço.
A grande dificuldade é o quantum debeatur, que envolve a comparação entre o preço efetivamente pago pelo prejudicado e aquele que deveria ter sido pago no cenário contrafactual (“but-for scenario”), isto é, no cenário hipotético em que o cartel não existiria. Não por outra razão a quantificação dos danos nesses casos de cartéis costuma ser apontada pelos especialistas como um dos maiores obstáculos à reparação (e também seria no caso ora examinado, não fosse a prescrição).9 É nesse campo da reparação, sem dúvida, onde a responsabilidade civil mais tem falhado.10
Em ritmo de Copa do Mundo, o nosso Em Pauta se despede agora já de verde e amarelo, desejando a todos um excelente jogo!
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: cartel, prescrição e indenização. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 43, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/87179595>. Acesso em DD.MM.AA.
STJ, 4ª T, REsp. 1.971.316-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, v.u., j. 25.10.2022.
A crítica é de Daniel Costa Caselta, Responsabilidade civil por danos decorrentes de cartel, p. 97 e seguintes. Dissertação de mestrado defendida em 2015, perante a Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor José Marcelo Martins Proença.
Trecho da decisão comentada.
André Fontes, A pretensão como situação jurídica subjetiva, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 18.
Paolo Vitucci, La prescrizione, t. 1, Milão: Giuffrè, 1999, p. 205.
Rachel Saab, “Análise funcional do termo inicial da prescrição”. In: Maria Celina Bodin de Moraes, Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Eduardo Nunes de Souza, A juízo do tempo: estudos atuais sobre prescrição, Rio de Janeiro: Processo, 2019, p. 146.
Em 2009, a Comissão Europeia classificou as diferentes metodologias de cálculo dos danos causados por práticas competitivas em 3 grupos, conforme os critérios empregados para a estimação do cenário contrafactual: (i) “comparator-based approach”; “financial-analysis-based approach” e, finalmente, (iii) “market-structure-based approaches” (Oxera Consulting, Quantyfying Antitrust Damages: towards non-binding Guidance for Courts – study prepared for de European Commission, 2009. Disponível em: https://ec.europa.eu/competition/antitrust/actionsdamages/quantification_study.pdf. Acesso em 26.11.2022).
Recentemente, aliás, o STJ discutiu a aplicação do art. 942 do Código Civil para um caso de cartel, condenando, solidariamente, todas as sociedades envolvidas (STJ, 2ª T, AgInt no Agravo em REsp. nº 1011234/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 28.03.2022).
Outra discussão interessante é se o Direito brasileiro admite a chamada “pass-on defense”, que consiste na alegação de que o adquirente direto dos produtos não teria direito à indenização por não ter arcado com os prejuízos decorrentes do cartel, tendo apenas repassado o montante do sobrepreço aos destinatários finais do produto. Acolhendo espécie de “pass-on defense”, o TJ/SP, por exemplo, já confirmou sentença de 1ª instância que havia negado o pedido de indenização formulado por concessionária de veículos por alegados prejuízos sofridos em decorrência de suposto cartel de frete de veículos (TJ/SP, 4ª Câm. de Dir. Priv., AC n.º 0149141-75.2009.8.26.0100, Rel. Des. Milton Carvalho, j. 25-10.2012).
E aqui vale uma importante recomendação de leitura: Micaela Barros Barcelos Fernandes, Danos concorrenciais nas relações interempresariais: a caracterização do dano indenizável e os caminhos da tutela reparatória de interesses econômicos. Tese de doutorado defendida perante a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação do Professor Carlos Nelson Konder e de cuja banca tive o prazer de participar.