#47. Mecanismos de ajuste de preço (I): a cláusula de "earn-out" à luz da boa-fé objetiva
Nas operações de aquisição de participações societária, como em qualquer contrato de compra e venda, vendedor e comprador ocupam polos de interesses opostos. Enquanto aquele tende a ter uma visão mais otimista da sociedade-alvo (no jargão do mercado, a target), este costuma ter uma visão mais conservadora do negócio. O primeiro Em Foco de 2023 inaugura uma série de textos sobre os mecanismos de ajuste de preço em operações de fusões e aquisições, como é o caso da chamada cláusula de earn-out, figura que protagoniza diversas arbitragens, nacionais e estrangeiras, e que será objeto desta primeira coluna.
Parcela variável do preço
A cláusula de earn-out revela técnica negocial que estrutura o pagamento em parcelas, sendo o earn-out a parte variável do preço que se sujeita a condições. É geralmente utilizada nas operações em que não há convergência das partes sobre a avaliação financeira da sociedade-alvo,1 seja porque discordam da metodologia utilizada (fluxo de caixa descontado, múltiplos etc.), seja porque discordam da avaliação de determinado passivo ou simplesmente porque têm interesses contrapostos e não conseguem chegar a um consenso sobre preço. O earn-out representa, portanto, como sintetiza Paulo Aragão: “a parcela variável do preço, um acréscimo ao valor fixo, mas apenas será devido, se e somente se, em determinado período de tempo após o fechamento da operação (também chamado ‘período de earn-out’), certas metas econômicas/financeiras futuras e predefinidas forem atingidas”.2
Natureza jurídica
Utilizada como forma de postergar o pagamento de parcela contingente do preço de aquisição, sob a condição do bom desempenho da sociedade adquirida, a cláusula de earn-out assume a feição de forma de pagamento condicionada,3 ostentando, quando efetivamente devida, natureza jurídica de preço. Estabelece, portanto, uma obrigação sujeita a condição suspensiva, em que o dever do comprador de pagar parte adicional do preço fica vinculado a evento – futuro e incerto – delimitado pelas partes, baseado não em suas expectativas subjetivas, mas antes em verificações objetivas e concretas na sociedade-alvo, cujo resultado financeiro precisará atingir determinadas metas de desempenho definidas previamente no contrato de compra e venda.
Função
A cláusula de earn-out é, em uma palavra, verdadeira “ponte” de entendimento entre comprador e vendedor,4 já que este último aceita, condicionalmente, as premissas otimistas do vendedor. Trata-se, portanto, de mecanismo de alocação de riscos: o comprador assume o risco de ter que pagar quantia adicional se o desempenho da sociedade superar as métricas definidas; ao passo que o vendedor assume o risco de não receber nada além do valor fixo já pago, caso a condição não venha a ser implementada pelo fracasso da sociedade vendida.
A referida cláusula revela-se, por isso mesmo, conveniente para ambas as partes sob diversos sentidos:5 “(i) alinha interesses; (ii) reduz a assimetria informacional presente nas transações de aquisição de sociedade; (iii) reduz o risco de comportamentos oportunistas; (iv) aloca riscos; e (iv) permite que a avaliação da sociedade seja fruto do efetivo faturamento obtido, e não somente do prognóstico esperado pelas partes, cuja precisão normalmente é incerta”.6 Da cláusula de earn-out despontam, portanto, múltiplas funções, assim como diversos efeitos.
Obrigação de meio
A previsão contida na cláusula de earn-out não consiste em obrigação de resultado, mas sim em obrigação de meio, cuja exigibilidade se verifica mediante o implemento de condição suspensiva. O comprador não se compromete a atingir determinado resultado que conferirá ao vendedor seguramente o pagamento do earn-out. Até porque a diligência que deve nortear a atuação da administração de uma sociedade não gera, necessariamente, sucesso empresarial ou um resultado positivo para a sociedade. Como já se afirmou, “[o]s maus resultados de uma companhia não decorrem, necessariamente, da violação do dever de diligência”.7
Onde entra a boa-fé nessa discussão?
Quando as métricas financeiras não são atingidas e o earn-out não é pago, não raras vezes o vendedor, que já contava com o earn-out como se fosse certo, tenta responsabilizar o comprador, alegando que isso só ocorreu em razão da forma de gestão adotada após a aquisição. Esse argumento costuma ser atrelado e confundido com a obrigação de gerir a sociedade de acordo com o curso normal dos negócios, embora os efeitos da cláusula do curso ordinário dos negócios geralmente sejam vinculados ao período entre a assinatura e o fechamento, e não entre o fechamento e a data prevista para o pagamento do earn-out (mas isso depende, evidentemente, da própria redação da cláusula e do que foi combinado pelas partes8).
E para rechear a discussão, como a boa-fé, no Direito brasileiro, vem sendo superutilizada (e, muitas vezes, utilizada também pela parte que não agiu de boa-fé), o vendedor, muitas vezes, ainda acusa o comprador de ter descumprido os deveres instrumentais oriundos da boa-fé objetiva ao deixar de observar as práticas empresariais que, historicamente, tornaram rentáveis as atividades da sociedade-alvo. Com essa linha de argumentação, o vendedor sustenta, então, que o comprador deve arcar com o pagamento dos valores de earn-out, ainda que as metas financeiras previstas não tenham sido atingidas. Invoca-se, com frequência, o art. 129 do Código Civil para reputar a condição verificada.9
Às vezes essa tese é genuinamente sustentada; outras vezes, porém, serve apenas como fogo de encontro em reconvenção para tirar o foco de um passivo oculto que o vendedor não consegue explicar. A questão que se põe para reflexão é se, de fato, há um dever, que se possa extrair como corolário do princípio da boa-fé objetiva, de o comprador adotar na sociedade adquirida uma metodologia de administração conforme as práticas de gestão até então conduzidas pelo vendedor mesmo sem que isso esteja expresso no contrato.
Nessa discussão, é sempre bom lembrar que, depois do fechamento, (i) o comprador está ansioso para imprimir o seu próprio modo de gestão e tem todo interesse em que a sociedade prospere; (ii) o pagamento do earn-out representa um “ganha-ganha”. Afinal, se a sociedade bater todas as metas que formam o “gatilho” do earn-out, o vendedor sai ganhando, porque recebe a parcela variável do preço, mas inegavelmente o comprador também, porque a sociedade agora é dele. Se não há no contrato cláusula que imponha o curso ordinário dos negócios até o pagamento do earn-out, será que o comprador está mesmo obrigado, pela boa-fé, a não fazer qualquer alteração na gestão da companhia até passar o período de earn-out?
Por outro lado, pode acontecer também de o earn-out ser efetivamente devido e o comprador esteja apenas se utilizando de subterfúgios para maquiar os números, com o único propósito de se escusar de pagar a parcela variável do preço – atuando mesmo de forma contrária à boa-fé.
São por essas e outras controvérsias que a cláusula de earn-out tem sido verdadeiro ganha pão para os advogados. A solução mais eficiente para aplacar potenciais conflitos é especificar, no contrato, os pontos que formariam espécie de cláusula pétrea da administração – tudo o que não pode ser alterado e que as partes reputam relevante para influenciar o resultado do earn-out.10
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Mecanismos de ajuste de preço (I): a cláusula de "earn-out" à luz da boa-fé objetiva. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 47, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/95493625>. Acesso em DD.MM.AA.
Nesse sentido: “Com efeito, esta cláusula é em regra pactuada em operações de aquisição societária em que têm, as partes, ‘opiniões diversas sobre o valor justo da companhia-alvo e sua performance futura’. Ao fixar o preço, o alienante anuncia lucros futuros de alta monta, mas o adquirente não tem como se assegurar previamente da veracidade desta informação. Combina-se, então, o pagamento de valores discernidos no tempo e na determinação: uma parcela é fixa e paga no momento da conclusão do negócio; outra será paga se os tais lucros foram, efetivamente, alcançados em determinado período, em regra, os antigos sócios permanecendo por este período na administração do negócio” (Judith Martins-Costa, “Contrato de cessão e transferência de quotas. Acordo de sócios. Pactuação de parcela variável do preço contratual denominada earn out. Características e função (‘causa objetiva’) do earn out”, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 42. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2014, pp. 153-188).
Paulo Cezar Aragão, “Obrigações vinculadas à cláusula de earn-out prevista no contrato”. In: Carlos Portugal Gouvêa, Mariana Pargendler e Maurizio Levi-Minzi (org.), Fusões e aquisições: pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 350.
Judith Martins-Costa, “Contrato de cessão e transferência de quotas. Acordo de sócios. Pactuação de parcela variável do preço contratual denominada earn out. Características e função (‘causa objetiva’) do earn out”, cit., pp. 153-188.
A expressão é de Fernanda Aurelio Zilveti e Daniel Azevedo Nocetti, “Earn-out – aproximação interdisciplinar e a IN nº 1.700/2017”, In: Alexandre Evaristo Pinto, Fabio Pereira da Silva, Fernando Dal-Ri Murcia e Gustavo Gonçalves Vettori (org.), Controvérsias jurídico-contábeis. São Paulo: Atlas, 2020, p. 131.
Como explica Paulo Aragão: “Se, por um lado, a estipulação da cláusula de earn-out possibilita que os vendedores recebam, além do preço fixado como certo, um acréscimo, levando em consideração sua confiança no potencial de desenvolvimento da sociedade vendida, por outro lado os compradores postergam o dispêndio de parte do preço, cujo pagamento estará vinculado aos ganhos advindos do atingimento das metas financeiras, garantindo, assim, que o adicional só será devido mediante o efetivo bom desempenho da sociedade adquirida. A cláusula de earn-out atende, a um só tempo, aos interesses do credor e do devedor e proporciona verdadeiro alinhamento de interesses entre as partes” (“Obrigações vinculadas à cláusula de earn-out prevista no contrato”, cit., p. 352).
Paulo Cezar Aragão, “Obrigações vinculadas à cláusula de earn-out prevista no contrato”, cit., p. 353.
Luiz Antonio Sampaio Campos, “Deveres e responsabilidades”, In: Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (coords.), Direito das Companhias, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.1103-1104.
No caso Nilson Corrêa da Silva e outros v. Sercon (CAM-CCBC Case n.º 64/2013/SEC3), os Requerentes alegaram que, a partir da assunção das operações da Sercon, a Steris passou a alterar os negócios a fim de impedir os pagamentos de earn-out aos vendedores. O Tribunal Arbitral entendeu que as alterações provocadas pela Steris no sistema operacional da Sercon, em descumprimento à vedação de alterações operacionais durante o período de earn-out, geraram a presunção de que em condições inalteradas a Seron teria sido capaz de atingir as metas, afastando, então, a tese da Requerida de que os Requerentes não cumpriram com as suas obrigações na diretoria industrial e comercial. Nesse caso, porém, havia cláusula expressa impedindo alterações operacionais no período de earn-out. A sentença arbitral foi posteriormente questionada em ação anulatória, mas o TJ/SP manteve a decisão, embora sem julgar o mérito (TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AC 1138617-55.2016.8.26.0100, Rel. Claudio Godoy, j. 13.05.2019).
Código Civil: “Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento”.
Nesse sentido, cf. Francisco Antunes Maciel Müssnich, “A cláusula de earn-out na aquisição de sociedades: solução ou postergação do problema?”. In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques, Direito societário, mercado de capitais, arbitragem e outros temas: homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 994.