#56. Mecanismos de ajuste de preço (II): "holdback" e "escrow account"
Na coluna AGIRE #47, os holofotes do “Em Foco” apontaram em direção aos mecanismos de ajuste de preço, mas o objetivo ali era tratar da chamada cláusula de earn-out, que estrutura o pagamento do preço em parcelas, sendo o earn-out a parte variável do preço que se sujeita a condições. Agora o tema é retomado, mas com outro alvo: na mira do “Em Foco”, o holdback e a escrow account, mecanismos também muito utilizados em operações de aquisição de participações societária, mas com diferente propósito.
Contexto
Nas operações de aquisição de participação societária, é comum as partes estabelecerem que parte do preço ficará retida para fazer frente a determinadas contingências, já identificadas na due diligence, mas ainda não materializadas (ou já materializadas, mas com possibilidade de ainda serem revertidas). Isto porque o comprador não quer correr o risco de pagar integralmente o preço e ainda ter que fazer algum desembolso depois para arcar com passivos cuja origem estava na gestão dos antigos acionistas. Para lidar com essa situação, as partes podem ajustar (i) uma retenção pura (holdback) ou (ii) o depósito de uma parcela do preço em conta caucionada (escrow account). Em ambos os casos, a parcela retida ou depositada em conta caucionada servirá para “compensar” a indenização devida pelo vendedor em razão da materialização da contingência. Normalmente, essas cláusulas são acompanhadas por outra que regula, exatamente, como se dará essa “compensação”. A próxima coluna “Em Debate”, AGIRE #57, tratará justamente sobre a compensação de dívidas em arbitragem.
Para que servem?
A função desses mecanismos é intuitiva: servem, em rigor, para garantir que o vendedor arcará com as contingências oriundas do período em que a companhia estava sob o seu comando. Mais do que um mero mecanismo de ajuste de preço, a retenção realizada por meio do holdback e da escrow account figura, portanto, como uma eficiente forma de garantir o comprador. O verbo “garantir” é aqui empregado em sua acepção mais ampla, remetendo genericamente aos mecanismos de tutela dos direitos subjetivos. Quando se deposita um valor em conta caucionada, o que garante o comprador não é propriamente o valor em espécie ali depositado, mas sim o crédito escritural que passará a ter contra a instituição financeira que abriga a conta. A conta caucionada também pode ser empenhada, sujeitando-se, nesse caso, às regras do penhor, esse sim garantia em sentido estrito.
Como funciona a escrow account?
O valor é retido e depositado em conta específica. Com o passar do tempo, conforme as contingências forem sendo resolvidas – o que pode ocorrer tanto em razão de um desfecho favorável, como em razão de terem caducado ou pelo fato de as pretensões que lhes são subjacentes terem prescrito –, os recursos vão sendo aos poucos liberados ao vendedor, observando as regras dispostas pelas partes no contrato. Ao final, se ainda houver saldo remanescente, os valores que restarem depositados são integralmente liberados para o vendedor. É de todo recomendável que as partes prevejam no contrato as regras para movimentação da conta.
A escrow account também é comum em outros tipos de operação, a exemplo das operações de financiamento que são garantidas por um fluxo de recebíveis que vai sendo direcionado para uma conta empenhada em favor do credor. Os valores vão se acumulando na conta, como um vaso que vai enchendo aos poucos, até que ultrapassam determinada marca pré-estabelecida pelas partes, a partir da qual o devedor passa a poder transferi-los em seu proveito.
Titularidade da conta
O valor retido é depositado em conta cuja titularidade pode ser apenas do comprador, apenas do vendedor ou de ambos. A conta aberta em nome do vendedor suscita questionamentos fiscais acerca do ganho de capital. Sendo o vendedor pessoa física, a Receita Federal, por meio da Solução de Consulta DISIT/SRRF04 n.º 59/2013, entendeu que “somente haverá a incidência do Imposto de Renda sobre o ganho de capital, decorrente da alienação de bens e direitos, no tocante a rendimentos depositados em ‘escrow account’ (conta-garantia), quando ocorrer a efetiva disponibilidade econômica ou jurídica destes para o alienante, após realizadas as condições a que estiver subordinado o negócio jurídico”.1 Além disso, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), em sessão realizada em 13.08.21, considerou que o valor da conta-garantia utilizado para fins da indenização de débitos dos vendedores não configuraria acréscimo patrimonial. Segundo o CARF, “não integra o ganho de capital a parcela do valor da alienação, incluindo eventuais atualizações, que tenha sido destinada, por expressa previsão contratual, a pagamento de passivos pendentes da participação societária alienada”.2
Por quanto tempo os valores devem ficar retidos?
Depende muito. No caso de uma contingência já materializada, o ideal é que os valores fiquem retidos até pelo menos o trânsito em julgado da decisão, quando as partes poderão fazer os acertos devidos, respeitando sempre as regras contratuais negociadas.
Já quando se trata de uma contingência ainda não materializada, o raciocínio costuma ser bem diferente: as partes normalmente negociam um prazo fixo, durante o qual a contingência precisa se materializar para que o vendedor venha a responder por ela. Neste caso, contrata-se uma condição (ou seja, que a materialização deve ocorrer dentro de determinado período de tempo). Tudo dependerá, portanto, do poder de barganha das partes no momento da negociação. É muito comum as partes fixarem esse prazo de garantia em função do prazo prescricional das pretensões contra as quais o comprador quer se proteger,3 sem que isso altere a natureza do prazo de retenção, que é de garantia.
Dessa prática decorre uma enorme confusão conceitual, porque esse tipo de situação normalmente envolve três prazos distintos, cada qual com a sua natureza:4
· Prazo de garantia: prazo durante o qual a contingência precisa se materializar ou o fato revelador da contingência precisa aparecer para que o comprador possa se valer do mecanismo contratado. É um prazo contratual, negociado pelas partes.
· Prazo decadencial: prazo dentro do qual o comprador precisa notificar o vendedor, a fim de avisá-lo de que a contingência se materializou ou foi revelada. Também é um prazo negociado pelas partes, mas não se trata de um prazo de garantia como o anterior. Sua natureza é decadencial e, mais precisamente, de decadência voluntária.
· Prazo prescricional: depois que a contingência é materializada ou revelada para o comprador, desde que isso ocorra dentro do prazo de garantia, este poderá exercer sua pretensão contra o vendedor dentro do prazo prescricional estabelecido pelo legislador, o que, por sua vez, depende da natureza da pretensão.
Enquanto os dois primeiros prazos são negociais,5 o terceiro decorre da lei e não pode ser alterado por acordo das partes, o que significa dizer que as partes não podem aumentá-lo, nem o reduzir. Não custa lembrar que o art. 192 do Código Civil veda, expressamente, qualquer tipo de alteração em prazos prescricionais: “os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes”.6
Assim, por exemplo, se o fato revelador da contingência que a materializar ocorrer no último dia do prazo de garantia contratado, o comprador teria a partir daí um prazo, normalmente pequeno, para notificar o vendedor (prazo decadencial voluntário). Se, mesmo notificado, o vendedor se recusar a responder, o comprador poderá exercer a sua pretensão, desde que dentro do prazo legal estabelecido pelo legislador.7 No caso da responsabilidade contratual, o prazo prescricional para reparação civil é de 10 anos,8 como já pacificou o STJ.9 Se o comprador não observar o prazo decadencial de envio da notificação, terá descumprido o mecanismo ajustado – o que pode atrair eventual multa prevista para essa finalidade –, mas isso não lhe retira a possibilidade de exercer a sua pretensão ressarcitória, desde que assim o faça dentro do prazo prescricional e demonstrando que a contingência se materializou no prazo de garantia.
No entanto, se uma parcela do preço tiver sido retida pelo comprador ou depositada em uma conta caucionada, a grande vantagem é que o comprador não precisará exercer sua pretensão contra o vendedor, pois poderá simplesmente se valer dos mecanismos de “compensação” previstos no contrato. Assim, o importante é estabelecer um prazo de garantia que seja suficiente para as principais contingências surgirem, mas não existe uma regra definida.10
Assim, posta de lado a discussão tributária – que deve ficar a cargo, evidentemente, dos tributaristas –, tais mecanismos são, de fato, uma forma eficiente de o comprador se resguardar de eventuais passivos que afetam a própria avaliação da sociedade-alvo.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Mecanismos de ajuste de preço (II): "holdback" e "escrow account". In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 56, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/107709705>. Acesso em DD.MM.AA.
Receita Federal, Solução de Consulta DISIT/SRRF04 nº 59, de 27 de agosto de 2013. Disponível em http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=45353&visao=anotado. Acesso em 10.03.2023.
CARF, Processo nº 13971.723797/2015-76, Rel. Carlos Alberto do Amaral Azeredo, j. 13.08.2021.
Giacomo Grezzana, A cláusula de declarações e garantias em alienação de participação societária. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 190.
Nesse sentido, referindo-se especificamente às cláusulas de declarações e garantias em alienação de participação societária, veja-se o comentário de Giacomo Grezzana: “Nesse tipo de contrato, portanto, podemos ter três tipos de prazo incidindo sobre as declarações e garantias: um prazo de garantia dentro do qual o alienante se responsabiliza pela falsidade das mesmas; um prazo decadencial para o adquirente notificar o surgimento de uma contingência ao alienante; e um prazo prescricional para cobrar do alienante um juízo os remédios contratuais cabíveis. O prazo de garantia inicia a contagem com a celebração do contrato, ao passo que o prazo decadencial e o prescricional fluem a partir da tomada de conhecimento da contingência pelo adquirente” (A cláusula de declarações e garantias em alienação de participação societária, cit., p. 193).
Sobre o prazo decadencial convencional, o art. 211 do Código Civil dispõe que: “Se a decadência for convencional, a parte a quem aproveita pode alegá-la em qualquer grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação”.
Aline de Miranda Valverde Terra e Daniel Bucar, “Autonomia privada e prazos prescricionais”. In: Maria Celina Bodin de Moraes; Gisela Sampaio da Cruz Guedes; Eduardo Nunes Souza (Coord.), A juízo do tempo: estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Processo, 2019, pp. 273-302.
Essa questão é discutida também em casos de construção, envolvendo o art. 618 do Código Civil. Nesses casos, “[o] termo inicial da prescrição é a data do conhecimento das falhas construtivas, sendo que a ação fundada no art. 1.245 do CCB/16 (art. 618 CCB/02) somente é cabível se o vício surgir no prazo de cinco anos da entrega da obra” (STJ, 3ª T., REsp. 1.290.383/SE, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 11.02.2014, DJe de 24.02.2014).
Se a pretensão for de cobrança de dívida líquida, aplica-se o prazo de 5 anos, previsto no art. 206, §5º, inciso I, do Código Civil.
“A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a pretensão de reparação civil lastreada na responsabilidade contratual submete-se ao prazo decenal previsto no art. 205 do Código Civil” (STJ, 2ª S., AgInt nos EREsp n. 1.674.510/SP, Rel. Min. Raul Araújo, j. 14.02.2023, v.u., DJe 06.03.2023).
Como já se observou: “Não existe também uma regra definida para o estabelecimento de limites temporais pelas partes. Esta data limite costuma estar atrelada a um período de tempo razoável após a data de fechamento, dentro do qual o comprador deveria ter descoberto eventuais quebras na cláusula de declarações e garantias, e dentro do qual eventuais terceiros prejudicados pelo inadimplemento de contratos ou compromissos fariam as suas reivindicações. A prática mostra que esse lapso temporal costuma girar em torno de três anos, sendo comum também a aceitação de períodos ainda menores, vinculados à conclusão da primeira auditoria da empresa alvo pelo comprador” (Carolina Bosso Citolino, Indenização pelo descumprimento da cláusula de declarações e garantias no Brasil, 2013. Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de pós-graduação lato sensu em Direito pelo Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER, sob a orientação do Professor Doutor André Antunes Soares, São Paulo, pp. 110-111).