#61. Na pauta do STJ: "suppressio"
No “Em pauta” desta semana, o tema em destaque é uma das figuras parcelares da boa-fé objetiva1 – a suppressio –, tendo como pano de fundo a discussão que norteou o REsp. 1.717.144-SP, julgado em 14.02.2023.2 A decisão analisou a possibilidade de configuração da suppressio nas hipóteses em que, no processo de execução, o feito permanece suspenso por longo período em virtude da falta de bens passíveis de excussão.
Contextualização
O Recurso Especial foi interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJ/SP”) que afastou a ocorrência da prescrição intercorrente e, com fundamento na suppressio, determinou a suspensão da fluência dos juros de mora e da atualização monetária incidentes durante o período de sobrestamento do feito.
A dívida era objeto de ação monitória. No entendimento do TJ/SP, a credora não fazia jus a juros, nem à atualização monetária, desde 22 de julho de 2010, quando se manifestou pela última vez, requerendo ofício à Receita Federal. Depois disso, permaneceu inerte, de modo que só poderia voltar a fazer jus aos juros e à correção monetária a partir da publicação da decisão do referido tribunal. Do contrário, na visão do tribunal, haveria um acréscimo de mais de 100%, o que dobraria o valor devido, sendo certo que, apesar de não ter localizado bens, a credora poderia ter requerido informações do Renajud, do Infojud e até mesmo do Banco Central do Brasil.
Ao julgar o Recurso Especial, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) afastou a suppressio no caso concreto, ressaltando o seguinte:
“A suppressio consubstancia-se na impossibilidade de se exercer um direito por parte de seu titular em razão de seu não exercício por certo período variável de tempo e que, em razão desta omissão, gera da parte contrária uma expectativa legítima de que não seria mais exigível. Portanto, pelo não exercício do direito passível de ser exercido por um lapso temporal – não determinável a priori – a outra parte da relação obrigacional confia que a situação se estabilizou e que não será compelida a cumpri-la, revelando-se, pois, certo abrandamento do princípio pacta sunt servanda, não mais tomado no sentido absoluto típico de sua formulação liberal. Há por conseguinte, um deslocamento do eixo meramente temporal e, em decorrência, subjetivamente indiferente, para a análise da omissão do credor distendida no tempo e do correlato efeito quanto à expectativa do devedor na preservação da estabilidade jurídica gerada por aquele comportamento”.
Com isso o STJ concluiu que a suppressio não seria aplicável, “porquanto não se permite o reconhecimento de que a suspensão do processo de execução, em razão da inexistência de bens, tenha incutido no executado a expectativa legítima de que não seria mais exercido”.
Efeito da suppressio
A figura da suppressio é fundada na estabilidade e/ou previsibilidade do comportamento, manifestada sobretudo pela consolidação no tempo de certas situações. Invoca-se a suppressio, normalmente, quando há o transcurso de razoável período de tempo desde o estabelecimento de certa situação, sem que tenha havido o exercício do direito que poderia, licitamente, modificá-la, havendo, ao invés disso, indícios objetivos e comprovados de que o direito subjetivo da contraparte não será exercido.
Sua consequência, em rigor, é tão severa quanto os próprios efeitos da prescrição: a suppressio impede, obsta, limita o próprio exercício do direito subjetivo, deixando imobilizada a pretensão em razão da incidência da boa-fé objetiva como norma impositiva de um comportamento estável, coerente. Há quem chegue a dizer que a suppressio acarreta a extinção do direito.3 E assim o faz – afirma a jurisprudência – quando o credor ainda tem uma pretensão exigível, isto é, antes mesmo do decurso do prazo prescricional.4
O tempo da confiança
Para a configuração da suppressio, porém, não basta que tenha ocorrido o decurso de um prazo razoável. Em realidade, não é tanto o decurso do prazo que importa para a sua configuração, mas antes a convicção suscitada na parte contrária de que a pretensão não será mais exercida. A figura depende, necessariamente, da criação na contraparte de uma legítima expectativa de que o credor já não mais exerceria a sua pretensão.
O tempo da confiança, diria a Professora Judith Martins-Costa, “é constatável circunstancialmente”.5 E por isso mesmo depende das circunstâncias fáticas e jurídicas que cercam o caso concreto. Não se constata a suppressio em tese ou no plano abstrato. O julgador deve, necessariamente, voltar-se para o caso concreto, a fim de verificar se o não exercício da pretensão, aliado a outros indícios objetivos, que precisam estar devidamente comprovados, criaram na contraparte a legítima confiança de que a pretensão não seria exercida, de tal modo que o exercício retardado da pretensão possa ser considerado forma de deslealdade. A suppressio, portanto, não se adequa a um modelo de aplicação mecânica; ao contrário, nunca poderá ficar afastada dos elementos de concreção.
De volta ao caso concreto
No caso concreto, a 4ª Turma do STJ entendeu que o mero decurso de um longo período não seria capaz de configurar suppressio. Segundo o STJ, ainda que algumas vicissitudes a que estão sujeitos os processos judiciais possam implicar delongas em seu desenvolvimento ou mesmo na concretização do direito das partes, tais circunstâncias não poderiam ser consideradas verdadeiramente significativas, de modo a qualificar uma omissão como relevante para a extinção do direito. Na hipótese, o elemento significativo para a circunstância da suspensão do processo não seria propriamente a omissão do credor, mas, sim, a ausência de patrimônio passível de excussão. Assim, concluiu a 4ª Turma: “não se encontram presentes os pressupostos para a configuração do instituto da suppressio e, por tal razão, não há fundamento para a exclusão da incidência dos juros e da correção monetária”.
Suppressio v. renúncia
Ao contrário da renúncia, que ainda tem um traço subjetivo, a suppressio é instituto totalmente objetivo, não se confundindo, pois, nem mesmo com a renúncia tácita. Suppressio e renúncia têm natureza, requisitos e efeitos diversos: enquanto a suppressio se situa no mesmo plano da boa-fé, a renúncia é negócio jurídico; a suppressio depende de inércia e legítima confiança, ao passo que a renúncia depende apenas de vontade; enquanto a suppressio subtrai o exercício do direito, a renúncia extingue por completo o direito.6
Além disso, na renúncia, em caso de prejuízo de terceiros, estes poderão agir de tal forma que seus interesses sejam preservados. Poderão, por exemplo, alegar fraude contra credores e serão legitimados para buscar judicialmente a proteção de seus direitos. Já na suppressio, os terceiros que sejam eventualmente afetados não contam com uma proteção específica, exatamente pelo fato de a imobilização do direito ser determinada não pela vontade do seu titular, mas pela interpretação da situação concreta sob a ótica da boa-fé objetiva.7
Apesar de tantas diferenças...
O próprio legislador confundiu renúncia com suppressio, a exemplo do disposto no art. 330 do Código Civil, que ilustra bem o problema. Segundo o referido dispositivo, o pagamento “reiteradamente feito em outro local faz presumir a renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. A própria referência à “renúncia” já é, em si, equivocada, porque a renúncia constitui negócio jurídico unilateral em cujo suporte fático está, necessariamente, a vontade. Já a suppressio, como visto, independe de qualquer prova de vontade; seus requisitos, não passam por qualquer valoração subjetiva.8
Reconhecimento da suppressio pelo STJ
Num sobrevoo rápido pela jurisprudência do STJ, a suppressio já foi reconhecida em diversos casos (como, por exemplo, recentemente no campo dos direitos autorais),9 embora por muitas vezes a análise dos fatos que levam a sua configuração esbarre no Enunciado da Súmula n.º 7.10 De toda forma, tão importante quanto conhecer os casos em que a figura foi aplicada é prestar atenção naqueles, como esse que se comenta, em que ela foi devidamente afastada. A suppressio não se presta a apagar os efeitos da mora.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: "suppressio", n.º 61, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/115105056>. Acesso em DD.MM.AA.
Muito embora seja impossível identificar uma definição apriorística da boa-fé objetiva, segundo Judith Martins-Costa, tal expressão pode ser compreendida como: “um modelo ou instituto jurídico indicativo de (i) uma estrutura normativa dotada de prescritividade; (ii) um cânone de interpretação dos contratos e (iii) um standard comportamental” (Judith Martins-Costa. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 40).
STJ, 4ª T., REsp n.º 1.717.144/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 14.02.2023, v.u., DJe 28.02.2023.
Nesse sentido: STJ, 3ª T., REsp 1520995/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 13.06.2017, DJe 22.06.2017.
“O caráter subsidiário e complementar da suppressio viabiliza sua aplicação sempre que o prazo legal de prescrição e decadência for inexistente ou insuficiente para assegurar a proteção ao princípio da boa-fé objetiva” (STJ, 3ª T., REsp 1643203/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17.11.2020, DJe 01.12.2020). Sobre o tema, e com algum constrangimento, pede-se licença para remeter o leitor para: Gisela Sampaio da Cruz Guedes, “Suppressio e prescrição: a confiança na estabilidade da situação jurídica subjetiva pode afetar o exercício da pretensão?”. In: Giovanna Benetti, André Rodrigues Corrêa, Márcia Santana Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, Mariana Pargendler e Laura Beck Varela (coord.). Direito, Cultura, Método: Leituras da obra de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019, pp. 334-356. Disponível também em: www.giselasampaio.com.br.
Judith Martins-Costa. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 650.
Julio Gonzaga Andrade Neves. A suppressio (verwirkung) no direito civil. São Paulo: Almedina, 2016, p. 95.
Nesse sentido: Marcella Campinho Vaz. Renúncia de direitos: limites e parâmetros de aplicação no direito civil. Rio de Janeiro: Processo, 2022, pp. 208-209.
Como explica Judith Martins-Costa, não andou bem o Código ao se referir a uma espécie de “ficção de renúncia”: “Já não andou bem o Código, ao nosso juízo, ao referir a ficção de renúncia, pelo titular do direito ou situação jurídica. Essa presunção é útil ou inútil à configuração da suppressio. Qual é a sua natureza, absoluta ou relativa? Observe-se que, tomada do ponto de vista do beneficiário, a suppressio não carece da prova da vontade: basta o decurso de razoável lapso de tempo no qual é feito “reiteradamente”, o pagamento em local diverso do pactuado e a confiança despertada no beneficiário, a ser averiguada objetivamente, segundo o parâmetro da “pessoa razoável”. A presunção é, pois, quanto ao menos, inútil, à vista dos outros dois elementos de incidência da regra. Além de inútil, por levantar problemas desnecessários à solução da causa - passível de resolução apenas com a consideração dos efeitos objetivos -, a presunção de renúncia introduz o tema da vontade das partes. A renúncia, como é sabido, constitui negócio jurídico unilateral receptício, e no seu suporte fático está, necessariamente, a vontade. Ora, como comprovar a “falta de vontade de renúncia”? Se a tomarmos como presunção júris tantum, será preciso que o credor prove que não existiu a “vontade de renúncia”, e essa prova deve ser suficiente para afastar a proteção da confiança do beneficiário, claramente pretendida pela ratio do texto. A melhor solução é, assim, tomá-la como presunção absoluta, decorrente de um “comportamento concludente” (Judith Martins-Costa. Do adimplemento das obrigações. In: Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.), Comentários ao novo código civil, v. 5, t. I. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 300-318).
A exemplo do seguinte caso, no campo dos direitos autorais: STJ, 3ª T., REsp 1643203/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17.11.2020, DJe 01.12.2020.
Nesse sentido, entre outros: STJ, 3ª T., AgInt no REsp 1634050/MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas, j. 19.10.2020, DJe 29.10.2020.