#64. Na pauta do STJ: liberdade contratual e alocação de riscos em relações empresariais
O caso concreto
Em 23 de julho de 2014, Centro Digestivo e Transplante de Órgão Ltda. – ME (“CDTO”) celebrou contrato com o Instituto Biosaúde (“IB”) para a prestação de serviços médicos no Hospital Municipal de Araucária por prazo indeterminado. Referido contrato guardava relação direta com o Contrato de Gestão desse mesmo Hospital firmado entre o IB e a Prefeitura de Araucária em caráter emergencial, com dispensa de licitação, também em 23 de julho de 2014. Por essa razão, constou do Contrato de Prestação de Serviços que, na hipótese de extinção do Contrato de Gestão, o contrato com o CDTO seria imediatamente resilido, sem a necessidade de pagamento de qualquer remuneração, nem mesmo pelos serviços até então prestados, ainda que a Prefeitura efetuasse pagamentos ao IB pela gestão do Hospital, como se depreende da interpretação sistemática das Cláusulas 9.1, 10.1, 10.2 e 10.3:
Cláusula 9.1. (…) Na hipótese de rescisão ou não renovação do contrato nº 125/2014 celebrado entre a contratante e a prefeitura de Araucária [Contrato de Gestão], o presente contrato será imediatamente rescindido, sem necessidade de observação do prazo acima mencionado.
Cláusula 10.1. A CONTRATADA tem pleno conhecimento de que foi contratada para prestar serviços à CONTRATANTE relacionados ao Contrato de Gestão do HOSPITAL MUNICIPAL DE ARAUCÁRIA, no âmbito do Município da Araucária, no Estado do Paraná, e concorda desde já que, caso haja atraso de qualquer pagamento à CONTRATANTE ou intervenha, rescinda ou encerre, por qualquer modo, qualquer que seja a razão, o referido contrato de gestão, a CONTRATADA não fará jus a qualquer remuneração, ainda que por serviços prestados, nem a qualquer tipo de indenização, qualquer que seja sua natureza.
10.2. Na hipótese do atraso aludido na cláusula 10.1 retro, cumprirá a CONTRATANTE promover o pagamento dos serviços prestados pela CONTRATADA, desde que os pagamentos efetuados pela Prefeitura de Araucária se refiram aos meses de prestação de tais serviços, sem o acréscimo de quaisquer juros, multa ou correção monetária. O pagamento referido nesta cláusula deverá ser disponibilizado à CONTRATADA em até 10 (dez) dias úteis da regularização das pendências da Prefeitura de Araucária junto à CONTRATANTE.
10.3. Não se aplica o disposto na cláusula 10.2 acima na hipótese de intervenção, rescisão ou qualquer outro tipo de extinção do contrato de gestão, respeitando-se, nestes casos, a regra da cláusula 10.1, ainda que para serviços prestados.
Em 11 de novembro de 2014, a Prefeitura de Araucária resiliu o Contrato de Gestão com o IB, o que conduziu à resilição do Contrato de Prestação de Serviços sem que fosse pago ao CDTO o valor referente aos serviços prestados no período de 1º a 10 de novembro.
Irresignado, CDTO ajuizou ação de cobrança contra IB, cujo pedido foi julgado improcedente pelo juízo de primeiro grau, que entendeu inexistir vício do consentimento bem como que o autor teria celebrado “o contrato ciente dos seus termos e condições e certamente sopesou os custos e benefícios resultantes da sua execução”.[1]
CDTO manejou recurso de apelação, desprovido pelo TJSP, que considerou inexistir abusividade ou vício na contratação, já que CDTO teria celebrado o contrato com IB ciente de que se tratava de relação negocial atrelada a contrato emergencial, conhecendo “seus termos, custos, benefícios, condições e limitações”.[2] Em sede de embargos de declaração, o mesmo Tribunal afirmou tampouco existir enriquecimento ilícito do IB ou violação ao art. 122 do Código Civil, que dispõe sobre as condições puramente potestativas.[3]
CDTO interpôs, então, recurso especial (REsp nº 1.799.039),[4] sustentando, em síntese, que a Cláusula 10.1 do Contrato de Prestação de Serviços (i) seria abusiva, porque atribuiria vantagem exagerada ao IB, o que violaria os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento sem causa, e (ii) contemplaria condição puramente potestativa (sobre o tema, confira-se a AGIRE #63).
O voto vencido
O Ministro Moura Ribeiro, relator originalmente designado, embora tenha entendido que a Cláusula 10.1 não encerraria condição puramente potestativa, uma vez que a “condição resolutiva da eficácia do contrato não dependia de uma simples e arbitrária declaração de vontade de uma das partes contratantes, mas, sim, da vigência do contrato de gestão, então firmado entre a Municipalidade de Araucária e a IB”, considerou que a exoneração da obrigação de pagar pelos serviços prestados afrontaria “os princípio da função social do contrato e da boa-fé objetiva, bem como do enriquecimento sem causa, o que implica[ria] reconhecer a procedência dos pedidos autorais”. A seu ver, “[d]iante da natureza onerosa do contrato em questão, evidente o desequilíbrio pela falta da necessária contraprestação ao bem da vida fornecido, daí tornando-se insustentável esse enriquecimento auferido”.
A decisão do STJ
A Ministra Nancy Andrighi abriu a divergência, no que foi seguida pelos Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze. Após concordar com a inexistência de condição puramente potestativa, a Ministra afirmou ser válida e eficaz a previsão de não pagamento da remuneração pelos serviços prestados, não se verificando violação aos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento sem causa, uma vez que:
havia equilíbrio entre CDTO e IB na contratação, sendo certo que ambos desfrutaram de ampla liberdade para determinar os termos da relação contratual; o contrato não foi celebrado por adesão e não envolvia relação de consumo ou disciplinava atividade econômica regulada por legislação específica apta a conferir tutela diferenciada, devendo prevalecer a determinação do art. 421, do Código Civil, na redação conferida pela Lei de Liberdade Econômica;
não houve violação de legítimas expectativas, já que o próprio Contrato previa o não pagamento dos serviços prestados em caso de extinção decorrente da resilição do Contrato de Gestão; e
inexistiam elementos indicando que teria havido “enriquecimento ilícito ou vantagem exagerada em detrimento da recorrente, porquanto não foi provado que a recorrida recebeu da Municipalidade valores que seriam destinados exatamente aos serviços prestados pela recorrente”.
Breves reflexões sobre alocação de riscos a partir do caso
Conforme já se afirmou em outra sede, “compreendido como a plausibilidade de prejuízo financeiro proveniente de acontecimentos incertos, o risco é inerente a qualquer operação econômica, e pode impactar diretamente o resultado projetado dos pactos. Ao contratar, os agentes ignoram a totalidade dos riscos a que se sujeitam e, ainda que – e na medida que – os conheçam, ignoram se e quando se concretizarão, a tornar duvidosa a efetiva obtenção do resultado útil programado. Por isso mesmo, a possível materialização dos riscos inquieta os contratantes, que podem ter seus interesses não satisfeitos por razões alheias à sua conduta. (...) Em contexto marcado por incertezas, as partes devem procurar gerir, por meio do livre exercício da autonomia privada, os riscos do negócio, alocando-os entre si de modo a minimizar os impactos adversos da sua concretização”.[5] Nesse cenário, a questão que se põe é precisamente esta: quais os limites à autonomia privada na gestão dos riscos contratuais?
No caso em análise, as partes celebraram contrato de prestação de serviços qualificado, conforme sua disciplina legal, como contrato comutativo, assim entendido por haver “equivalência entre prestação e contraprestação, ambas definidas quanto à existência e extensão, de modo proporcional e de prévio conhecimento das partes”.[6] No entanto, chama a atenção um aspecto que não foi enfrentado nos autos: a Cláusula 10 ostenta um certo caráter de aleatoriedade, que não altera a natureza comutativa do contrato, mas qualifica como aleatória a referida parcela do programa contratual.
De fato, nos ajustes aleatórios, ambas as partes ignoram, no momento da celebração do contrato, o lucro ou o prejuízo em termos de atribuição patrimonial, que depende da verificação de evento incerto por elas incontrolável,[7] como se verifica na Cláusula 10: posto CDTO fizesse jus à remuneração mensal pelos serviços regularmente prestados durante a vigência do contrato, a materialização do específico risco consistente na resilição unilateral do Contrato de Gestão pela Prefeitura autorizava a resilição unilateral do Contrato de Prestação de Serviços e afastava a obrigação do IB de executar a sua contraprestação pelos serviços prestados, independentemente de ele ser ou não remunerado no âmbito do Contrato de Gestão por ocasião da sua extinção. Resta saber se uma tal alocação de riscos revela o exercício legítimo da autonomia privada.
Para tanto, um dos aspectos a analisar é a qualidade dos contratantes. De regra, em relações empresariais em que não haja assimetria de poder de negociação, as partes ostentam considerável liberdade para alocar os riscos a que estão expostas e estabelecer a equação econômica a ser observada em toda a vigência contratual. Afinal, a repartição dos riscos traduzirá a finalidade almejada com o concreto negócio pelos contratantes, que buscam satisfazer os seus interesses por meio daquela específica alocação de riscos. Isso não significa que a autonomia privada encerre, mesmo no âmbito de tais relações, um poder absoluto, infenso a qualquer controle. O ato de autonomia deve ser não apenas lícito, mas exercido de acordo com o seu fim econômico ou social, a boa-fé objetiva e os bons costumes, nos termos do art. 187 do Código Civil. No caso em tela, o STJ focou a sua análise na qualidade das partes, e entendeu que não estaria presente qualquer fator que pudesse justificar alguma restrição à autonomia privada.
Partindo, portanto, da conclusão do acórdão quanto à validade da alocação de riscos estabelecida pelas partes, é certo que, mesmo se o IB houvesse sido remunerado pela Prefeitura quando da resilição do Contrato de Gestão e não houvesse repassado qualquer valor ao CDTO (fato que não foi comprovado, conforme consta da decisão), não haveria enriquecimento sem causa, afinal, a causa do enriquecimento do IB seria, justamente, a Cláusula 10, que, como se viu, ao estabelecer um pacto aleatório, contemplou a possibilidade de o IB lucrar, mantendo consigo a integralidade de eventual remuneração recebida da Prefeitura, sem remunerar o CDTO por serviços prestados.
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] TJSP, 2ª Vara Cível da Comarca de Mogi das Cruzes, Processo Digital nº 1006623-28.2015.8.26.0361, Juiz de Direito Dr. Domingos Parra Neto, j. 28.10.2015.
[2] TJSP, 25ª Câmara de Direito Privado do TJSP, Apelação nº 1006623-28.2015.8.26.036, Rel. Des. Marcondes D'Angelo, j. 07.07.2016.
[3] TJSP, 25ª Câmara de Direito Privado do TJSP, ED nº 1006623-28.2015.8.26.0361/50000, Rel. Des. Marcondes D'Angelo, j. 22.02.2018.
[4] STJ, 3ª T., REsp 1.799.039, Rel. para o acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 04.10.2022.
[5] TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, jan./mar. 2022, p. 136.
[6] TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil: contratos. v. 3, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 77.
[7] Sobre o tema, confira-se: BANDEIRA, Paula Greco. Contratos aleatórios no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 45.