#63. Condição: potestatividade e vedação ao arbítrio
por Mariana Conti Craveiro
O Código Civil Brasileiro, no art. 1211, conceitua condição como “a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”, ao passo que a ilicitude das condições que sujeitarem o negócio jurídico “ao puro arbítrio de uma das partes” é determinada no art. 122, CC.2
A condição é elemento acidental do negócio jurídico, que funciona como marco delimitador de sua eficácia, atrelando-a, no todo ou em parte, a determinado evento futuro e incerto considerado relevante pelas partes e, assim, introduzido na pactuação.
Trata-se de mecanismo de modelagem do negócio jurídico às específicas necessidades e interesses das partes, no que tange à produção ou extinção de seus efeitos.
Valendo-se desse expediente, permite-se, na condição suspensiva, que as partes possam se vincular desde logo, reservando a plena produção de efeitos do negócio jurídico não a um momento futuro certo (o que se dá no termo3), mas à verificação de um evento cuja ocorrência não é certa no momento da contratação.4 Na condição resolutiva, o negócio vincula e produz efeitos desde a sua celebração, os quais cessarão com a implementação do evento futuro e incerto que as partes elegeram.5
A incerteza quanto à verificação do evento futuro é, portanto, predicado necessário à noção de condição e elemento que a distingue dos demais elementos acidentais do negócio jurídico tipificados no Código Civil (nomeadamente, o termo, já mencionado, e o encargo6).
Vedação à condição potestativa pura: o art. 122 CC
Nesse cenário, a vedação imposta pelo art. 122 CC volta-se à proteção da estabilidade dos vínculos, pois se eles tivessem seus efeitos atrelados ao mero capricho de uma das partes, não se estaria diante de negócio jurídico sério, passível de tutela jurídica, eis que inútil. Essa situação-limite é caracterizada tradicionalmente como a cláusula “si voluero” – ou seja, “se eu quiser” – e, também, conduz à categoria da falsa-condição, já que, em verdade, o negócio jurídico não seria sequer constituído no plano da existência.
Esse exemplo extremo não abrange ou explica com exatidão, porém, as situações que a vedação contida no art. 122 CC busca sancionar com a ilicitude, uma vez que a mera potestatividade, por si, não é ilícita. Nos termos do dispositivo, é necessário que haja a sujeição “ao puro arbítrio de uma das partes”.
Em excelente contribuição para a adequada compreensão do tema, o Professor Cristiano Zanetti chama a atenção para a necessidade de se perquirir, inicialmente, se a condição em questão seria potestativa – ou seja, se o evento incerto escolhido pelas partes consiste, precisamente, na manifestação de vontade de uma delas.7 Em outras palavras, se o implemento do evento incerto escolhido pelas partes exige a manifestação de vontade de uma delas.
Se assim ocorre, é preciso avaliar se a condição se reveste de caráter simplesmente ou puramente potestativo. No primeiro caso, a manifestação de vontade eleita como condição depende, também ela, de elementos objetivos e alheios às partes, o que leva à sua designação como “impura”. Ao revés, nas condições puramente potestativas – estas sim alvo da proibição constante do art. 122 CC –, a produção de efeitos do negócio jurídico depende, exclusivamente, do mero querer da parte de que assim ocorra: são as condições potestativas puras, insertas e vedadas no texto legal.
Condição potestativa vs. direito potestativo
Da incidência do artigo 122 CC há de se apartar, ainda, os negócios jurídicos que não têm seus efeitos jurídicos subordinados a uma condição, mas que, antes, contemplam a atribuição de um direito potestativo8 a uma das partes. Trata-se da hipótese em que se ajusta a possibilidade de determinada parte interferir na esfera jurídica da outra que, por sua vez, não pode evitar a consequência desse exercício jurídico (o que, como se sabe, configura a existência de sujeição próprio à categoria dos direitos potestativos): o exercício de tal direito levará à criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica (caso dos direitos formativos). Por isso, o exercício regular do direito potestativo em nada deve ser confundido com a contratação de uma condição potestativa, afastando qualquer relação com a sanção de ilicitude trazida pelo art. 122.
Em síntese, o alcance do art. 122 seria o de impedir ao devedor de determinada obrigação que dela se desvinculasse por seu mero capricho, valendo-se da previsão de uma condição potestativa pura.
Outras ocorrências de potestatividade não devem ser albergadas nesse enunciado legal, sob pena de desvirtuamento dessa função e produção de consequências atécnicas.
O tema na jurisprudência do STJ
Para ilustrar a discussão, faz-se referência ao julgamento do RESp n. 1.990.221/SC, ocorrido em maio de 2022 no, Superior Tribunal de Justiça. Tratava-se de discussão a respeito da validade de disposição contratual que estabeleceu ao credor a faculdade de exigir “quando for de se seu interesse” a transferência da propriedade de imóvel objeto da compra e venda em questão.
Em apertada síntese, o STJ afastou a aplicação do art. 122 CC, por não entrever potestatividade pura na avença, eis que a simples determinação do momento de transferência do imóvel consideraria elementos externos à mera vontade do credor (o deslinde de uma ação de usucapião) e, em verdade, mais se aproximaria da figura do termo.
De outro lado, segundo o STJ, a estipulação de suspensão de eficácia do negócio em benefício do credor da prestação não retiraria do negócio jurídico a sua seriedade, não gerando qualquer mácula à sua existência: o negócio jurídico existe, tendo apenas o momento de execução da prestação sido diferido para aquele em que melhor conviesse ao credor, em vista de elemento externo.
Nessa linha, o entendimento externado aponta que a ausência de seriedade do negócio e a proibição da potestatividade pura somente fazem sentido
“quando referida cláusula aproveitar ao devedor, pois quando aproveitar ao credor, todos os elementos necessários à configuração do negócio jurídico estarão presentes, sendo descabido falar em nulidade, inclusive em respeito ao princípio da boa-fé objetiva. Uma coisa é o proprietário de determinado bem dizer a outrem - "vendo-lhe esse bem quando eu assim desejar". Outra coisa, bastante diversa é ele dizer: - "vendo-lhe esse bem quando você assim desejar". Existe uma diferença substancial quando alguém fala: - "eu faço quando eu quiser" e - "eu faço quando você pedir".
Questões práticas
A relevância prática do estudo do tema da potestatividade e da real dimensão da vedação prevista no art. 122 CC para as condições é inconteste, considerando-se a sempre maior sofisticação dos agentes econômicos para formatarem negócios jurídicos com todo o vasto instrumental que lhes oferece a autonomia privada.
Como bem apontou Fernanda Martins-Costa na coluna AGIRE #39, a propósito da satisfação de exigências para fechamento de operações de M&A, as operações de compra e venda de participações societárias são frequentemente engendradas com base na paulatina e complexa produção de efeitos de diversas facetas do negócio jurídico, notadamente para que o “fechamento” do negócio seja verificado, em tentativa de mitigação de riscos de parte a parte.
Para além das condições previstas para que se dê o “fechamento” da operação, é preciso avaliar o tema da potestatividade, também, com relação a outros aspectos dessas operações tão intrincadas como, por exemplo, as regras de determinação de preço e o seu pagamento, e ainda que não se esteja diante de uma verdadeira condição.
Isso porque entra em cena, nesses casos, a previsão constante do art. 489 CC, que sanciona de nulidade o contrato de compra e venda “quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço”.9 Trata-se de outra previsão legal vinculada, em sentido largo, à potestatividade.
Ao se estipularem cláusulas de pagamento de preço, portanto, há que se cuidar não apenas para que eventuais condições para sua exigibilidade futura não recaiam na potestatividade pura, vedada pelo art. 122 CC, mas, igualmente, que o regramento contratual escape à incidência do art. 489 CC.
Nesse particular, tanto as opções de venda (put option) e opções de compra (call option), quanto as cláusulas de drag along requerem prudência em sua redação, na medida em que têm como essência a pré-determinação de parâmetros de preço para a compra e venda das participações societárias em questão.
Assim, deve haver clareza no texto contratual, quanto ao quadro formado por essas balizas de fixação de preço, dentro do qual a parte declara efetivamente estar sujeita ao direito potestativo do beneficiário em exigir-lhe a venda ou a compra de participações societárias.
Em conclusão, espera-se ter indicado alguns reflexos da adequada análise e interpretação dos dispositivos legais que se referem à vedação do arbítrio não apenas nas condições, mas em outros registros da prática negocial dos nossos dias.
Mariana Conti Craveiro
Mestre e Doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Sócia de Conti Craveiro Advogados. Árbitra independente.
Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.
Art. 122 - São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes
Segundo a doutrina, “termo é a cláusula que subordina a acontecimento futuro e certo o nascimento ou a extinção de um negócio jurídico”. (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito (atualizadores). 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 288, acesso pela Plataforma Minha Biblioteca) Diferencia-se, pois, da condição em razão da certeza do evento.
Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.
Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.
O encargo pode ser singelamente descrito como o elemento acidental do negócio jurídico pelo qual ao beneficiário de uma liberalidade é imposto um ônus. O Código Civil assim o regula: Art. 136. O encargo não suspende a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva; art. 137. Considera-se não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico.
ZANETTI, Cristiano. Querer e Poder no Direito dos Contratos: As Chamadas Condições Potestativas. In: José Augusto Bitencourt Machado Filho ed altri (coord). Arbitragem e Processo – Homenagem ao Prof. Carlos Alberto Carmona, vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 365-368.
“Potestativos são os direitos que permitem a uma pessoa, por simples manifestação unilateral de sua vontade (isto é, sem necessidade de concurso de qualquer outra pessoa), modificar ou extinguir uma relação jurídica preexistente, que é de seu interesse. As pessoas sujeitas a direitos deste tipo não têm propriamente uma obrigação, estão em posição puramente passiva, chamada de sujeição, ou estado de sujeição.“ (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 32, acesso pela Plataforma Minha Biblioteca).
Art. 489. Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço.