#65. Redução da cláusula penal (artigo 413 do Código Civil)
De inegável utilidade prática, a cláusula penal cumpre múltiplas funções: ora a doutrina alude à sua função ressarcitória ou de pré-fixação das perdas e danos, ora à sua função coercitiva. Por reforçar o vínculo contratual, há também quem atribua ao instituto uma função garantista da dívida, acenando, evidentemente, para a acepção mais ampla do termo “garantia”.1 A multiplicidade de funções da cláusula penal revela pequena enseada no mar de controvérsias que cercam o instituto. Nesta edição, os holofotes do Em Foco se voltarão para um único dispositivo do Código Civil: o art. 413, que trata das hipóteses de redução da cláusula penal.2
As hipóteses de redução
O artigo 413 estabelece que “[a] penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”. O dispositivo traz, claramente, duas hipóteses de redução, que devem ser analisadas separadamente: o julgador deve reduzir a cláusula penal (i) “se a obrigação tiver sido cumprida em parte”; ou (ii) “se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”.
Norma cogente
Assim como o artigo 812 do Código Civil português, o artigo 413 do nosso Código Civil impõe – e não apenas faculta, como já se observou3 – que o julgador reduza a cláusula penal nas hipóteses ali referidas. Trata-se de norma cogente e, como tal, não pode ser afastada pelas partes. No entanto, “por restringir o desempenho da cláusula penal acordada, a possibilidade de redução deve ser entendida como excepcional, já que, em regra, o credor pode exigir a penalidade tal qual pactuada”.4 A redução justifica-se apenas nas hipóteses em que a exigência da integralidade representar exercício disfuncional do direito. E como a própria redação do dispositivo indica, o juiz deve reduzi-la, mas não está, de forma alguma, autorizado a aumentá-la – a possibilidade de majoração, para além de não estar autorizada, esbarraria no art. 416 do Código Civil –, tampouco a reescrever a cláusula para tornar o contrato supostamente mais equilibrado.
A primeira hipótese de redução: cumprimento parcial
No artigo 413, o advérbio “equitativamente” alude à ideia de equidade, que é um dos conceitos jurídicos indeterminados mais abertos. Segundo a Professora Judith Martins-Costa, na primeira hipótese de redução, o advérbio deve ser lido como se o legislador tivesse se referido ao postulado normativo da proporcionalidade5 : “A penalidade deve ser reduzida proporcionalmente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte”. Não se trata, evidentemente, de uma proporcionalidade matemática6 , mas antes axiológica, até porque o devedor pode ter cumprido a maior parte do contrato, mas deixado de cumprir a parte que mais interessava ao credor.
O julgador, em rigor, deve primeiro observar se a prestação principal comporta, de fato, o cumprimento parcial, para só depois, em caso positivo, reduzir a cláusula penal, levando em consideração a relevância da parcela descumprida para aquele específico programa contratual e se o cumprimento parcial atendeu, pelo menos em parte, aos interesses e expectativas do credor. Se o credor não tirou qualquer proveito do cumprimento parcial, não há que se falar em redução da cláusula penal: deve-se reduzir a multa apenas nas situações em que o cumprimento parcial da prestação foi útil ao credor. O comando também não se aplica às cláusulas penais moratórias, já que seria um contrassenso pensar-se numa hipótese de “mora parcial”.
A segunda hipótese de redução: montante manifestamente excessivo em vista da natureza e da finalidade do negócio
Na segunda hipótese de redução, o advérbio equitativamente ganha outra conotação, como se o legislador tivesse dito: “A penalidade deve ser reduzida razoavelmente pelo juiz se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”.7
O comando da segunda parte do artigo 413 também não faculta o julgador a reduzir a cláusula penal, mas antes impõe que a redução seja feita, levando-se em consideração dois critérios objetivos: (i) a natureza e (ii) a finalidade do negócio.
A razoabilidade, que aqui reverbera como uma das facetas da equidade, não é sinônimo de bom senso, nem pode servir de escusa para o julgador deixar de fundamentar a sua decisão, mas ao contrário. Trata-se de importante postulado normativo, a ser considerado na fundamentação da decisão. E a que alude o legislador, ao se referir a esses conceitos jurídicos indeterminados?
Em atenção às expressões empregadas no dispositivo, deve o julgador observar inúmeros fatores. Trata-se de um contrato internacional ou nacional? O contrato estava inserido no bojo de um negócio maior? De que tipo negocial se trata? O contrato era oneroso ou gratuito? A cláusula penal estava inserida em negócio fiduciário, cujo descumprimento atingia em cheio a confiança depositada na contraparte? Qual espécie e modalidade de cláusula penal se discute?8 Qual foi o efetivo poder de negociação das partes? O contrato era paritário ou foi firmado por adesão? Em que segmento de mercado aquele programa contratual se insere? Quais são os usos e costumes daquele mercado? Qual era a finalidade econômica perseguida pelas partes? O que elas pretenderam com a cláusula penal? A cláusula foi prevista exatamente porque o dano era de difícil liquidação?
Grau de culpa
Para além de todos esses fatores, há, ainda, quem acrescente que o julgador deve considerar nessa redução o grau de culpa da parte inadimplente.9 Este critério, porém, deve ser analisado com cautela. Se é verdade que a equidade é um conceito muito aberto, que impõe a construção de uma solução justa e adequada para o caso concreto, também é igualmente verdade que “o artigo não alude a qualquer requisito subjetivo, como o estado psicológico ou anímico do contratante”.10
A culpa é pressuposto para incidência da cláusula penal, mas o legislador não autoriza – nem muito menos impõe – o juiz a reduzi-la com base no grau de culpa do devedor, se este tiver, de fato, causado o descumprimento do contrato. Se a prestação não foi cumprida em razão de um caso fortuito ou de força maior, não há que se falar em inadimplemento, nem incidirá a cláusula penal.
Por fazer menção à “gravidade de culpa”, o parágrafo único do artigo 944 do Código Civil dispositivo já foi alvo de inúmeras críticas.11 Já no artigo 413 não há sequer uma única menção à culpa. Se, no artigo 944, a doutrina critica a referência à culpa, por qual razão deveria o intérprete introduzir esse elemento no artigo 413, cuja redação sequer alude à culpa? Se no artigo 413 o legislador preferiu não abrir a “porta” para a culpa, por que, então, deveria o intérprete introduzi-la pela “janela” da equidade?
O momento em que a excessividade deve ser apurada
Não é preciso dizer muito para explicar que a excessividade da cláusula penal deve ser apurada no momento em que o devedor incorre na pena, e não no momento em que a cláusula penal é pactuada, o que tem relevância para os contratos que não são de execução imediata. Faz todo sentido que assim seja, porque “a excessividade diz respeito ao sinalagma funcional, ou dinâmico, e não ao sinalagma genético, ou estático”,12 tanto é que a ação cabível é a de revisão da cláusula penal, e não a de nulidade (esta teria lugar se a cláusula penal ultrapassasse o valor da obrigação principal, esbarrando no limite previsto no artigo 412 do Código Civil). É, portanto, no momento patológico da relação, em que há o inadimplemento, que se deve apurar se a cláusula penal é ou não manifestamente excessiva, considerando a natureza e a finalidade do negócio.
Alerta final
O advérbio “manifestamente” revela não só o caráter excepcional da revisão, mas também que o standard da revisão é alto, como não poderia deixar de ser. Definitivamente, não basta a multa ser elevada em termos abstratos. É indispensável para a redução da cláusula penal que o valor nela previsto seja manifestamente excessivo em vista do negócio firmado, da finalidade perseguida pelas partes e da importância das obrigações cujo cumprimento se objetivou reforçar.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Redução da cláusula penal (artigo 413 do Código Civil). In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 65, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/121458271>. Acesso em DD.MM.AA.
Sobre as funções da cláusula penal vale sempre a pena conferir a obra clássica de Antônio Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização. Coimbra: Almedina, 1990. No Brasil, Nelson Rosenvald, Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. São Paulo: Foco, 2020, pp. 5-29.
Na AGIRE #41, ´sob o título “Qual a relevância dos danos sofridos pelo credor para o regime da cláusula penal compensatória"?”, o Em Foco também tratou da redução da cláusula penal, mas em outra perspectiva.
Gustavo Tepedino, “Efeitos da crise econômica na execução dos contratos”. In: Temas de Direito Civil, 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 117.
Beatriz Uchôas Chagas, A redução equitativa da cláusula penal: a aplicação do artigo 413 do código civil, Revista de Direito Privado, vol. 110/2021, pp. 85-108, out.-dez./2021, p. 86.
Judith Martins-Costa, “A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal”. In: Araken de Assis, Eduardo Arruda Alvim, Nelson Nery Jr., Rodrigo Mazzei, Teresa Arruda Alvim Wambier, Thereza Alvim, Direito Civil e Processo: estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim, São Paulo: RT, 2007, p. 62.
STJ, 4ª T., REsp nº 1.466.177/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, v. u., j. 20.06.2017. Nesse sentido, veja-se também o Enunciado 359 da IV Jornada de Direito Civil: “A redação do art. 413 do Código Civil não impõe que a redução da penalidade seja proporcionalmente idêntica ao percentual adimplido”.
Judith Martins-Costa, “A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal”, cit., p. 64.
Ao se referir às “espécies” de cláusula penal, a doutrina normalmente emprega o termo “espécies” para tratar da cláusula penal de fixação de perdas e danos, da cláusula penal em sentido próprio e da chamada cláusula penal puramente coercitiva, ou seja, costuma-se ligar as espécies às funções que o instituto pode vir a desempenhar em dado programa contratual. Já a expressão “modalidades de cláusula penal” é usada, de maneira geral, para aludir às três modalidades referidas expressamente no art. 409 do Código Civil: cláusula penal compensatória, cláusula penal moratória e cláusula penal em segurança de uma obrigação especial.
Nesse sentido: STJ, 4ª T., REsp nº 1.353.927/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, v. u., j. 17.05.2018.
Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, Fundamentos do Direito Civil, v. 2 – Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 398.
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, “Artigo 944 do Código Civil: o problema da mitigação do princípio da reparação integral”, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 63, 2008, pp. 69-94; Carlos Nelson Konder, “A redução eqüitativa da indenização em virtude do grau de culpa: apontamentos acerca do parágrafo único do art. 944 do Código Civil”, Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: PADMA, vol. 29, jan.-mar./2007, pp. 3-34.
Judith Martins-Costa, “A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal”, cit., p. 71.