#7. Armazenamento de registros no Marco Civil da Internet
O nosso Em Pauta desta semana traz dois casos recentes sobre armazenamento de registros, que é um dos temas palpitantes do Marco Civil da Internet.1
No primeiro caso, a 3ª Turma do STJ, por unanimidade, deu parcial provimento ao Recurso Especial 1.961.480-SP,2 firmando a tese de que o “provedor de internet deve manter armazenados os registros relativos a patrocínio de links em serviços de busca pelo período de seis meses, contados do fim do patrocínio, e não da data da contratação”.
Já no segundo, envolvendo o Recurso Especial 1.885.201,3 a 3ª Turma entendeu que “os provedores de aplicações que oferecem serviços de e-mail não têm o dever de armazenar as mensagens recebidas ou enviadas pelo usuário e que foram deletadas de sua conta”.
Registros relativos a patrocínio de links
No caso sobre patrocínio de links, a ação foi movida contra o Google, a fim de descobrir (i) o nome ou domínio das sociedades empresárias que patrocinaram a expressão “BNE” na ferramenta “Google AdWords” (atualmente, “Google Ads”), de forma exclusiva ou em conjunto com outras expressões, do ano de 2010 até dezembro de 2016, bem como (ii) a quantidade de acessos desviados e alcançados com o patrocínio da marca das Requerentes. Alegavam as Requerentes, em síntese, que a marca “BNE” havia sido utilizada indevidamente por concorrentes que contrataram, por meio da ferramenta Google Ads, anúncios na forma de “links” patrocinados vinculados à palavra-chave “BNE”, isolada ou conjuntamente com outras expressões.
O Google Ads é uma ferramenta de publicidade on-line que exibe anúncios de produtos ou serviços em forma de links patrocinados quando se realiza pesquisa no serviço de busca, de acordo com as palavras-chave utilizadas pelo usuário e contratadas pelo patrocinador. Assim, ao realizarem pesquisa no sistema de busca fornecido pela Google, utilizando como palavra-chave a expressão “BNE”, os consumidores foram remetidos não ao sítio eletrônico das Requerentes – como seria de se esperar –, mas aos sites de seus concorrentes.
Diante disso, as Requerentes pleitearam o fornecimento do nome ou domínio das sociedades empresárias que contrataram o referido serviço, assim como a quantidade de acessos desviados, como forma de angariar subsídios, para, posteriormente, poderem tomar as medidas judiciais cabíveis contra os responsáveis. Não se discutia, portanto, a exclusão de resultados de busca – a chamada desindexação –, mas apenas fornecimento do nome ou domínio das sociedades empresárias que contrataram o referido serviço.
Prazos estabelecidos pelo Marco Civil da Internet
O art. 22 do Marco Civil da Internet autoriza,4 com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, a requisição judicial de registros de conexão ou de acesso daquele responsável pela guarda dos referidos dados. Assim, desde que preenchidos determinados requisitos – estabelecidos tanto pela legislação processual (ex. legitimidade ativa), quanto pelo próprio Marco Civil da Internet (art. 22, parágrafo único) –, qualquer indivíduo que tenha sido lesado por ato praticado via internet poderá demandar o provedor respectivo para obter os referidos dados.
É necessário, porém, ajuizar a ação dentro dos prazos legais previstos para a guarda dos dados pelos provedores: 1 (um) ano para os registros de conexão e 6 (seis) meses para os registros de acesso a aplicações de internet (arts. 13 e 15 do Marco Civil da Internet).
Termo inicial da contagem dos prazos em caso de patrocínio de link
Normalmente, esses prazos são contados a partir da data do fato ou evento a que se refere o registro. Em se tratando, por exemplo, de publicação em rede social, o prazo de 6 (seis) meses de guarda do registro é contado da data do fato, isto é, da data da própria publicação. No entanto, nas hipóteses em que se pleiteia a obtenção de registros relativos a determinado lapso temporal, que era exatamente o caso apreciado pelo STJ, “não se revela razoável, tampouco lícito, que os provedores, após o ajuizamento da ação, se desfaçam dos referidos dados, sejam estes anteriores ou posteriores à demanda” – observou a Ministra Nancy Andrighi, relatora do processo.
No caso específico do patrocínio de links em serviços de busca na internet relacionados a certa expressão, a contratação do serviço ocorre por determinado lapso temporal, então o fato que dá origem ao registro respectivo se protrai no tempo. Embora a contratação da ferramenta ocorra em marco temporal pontual e definido, o serviço disponibilizado pelo provedor estende-se por todo o período contratado, isto é, por dias, meses ou anos, a depender do caso.
Dessa forma, para resguardar a privacidade dos usuários, mas, ao mesmo tempo, garantir a responsabilização por eventuais danos causados a terceiros, os registros relativos ao patrocínio de links em serviços de busca deverão permanecer armazenados pelo período de 6 (seis) meses, contados do fim do patrocínio, e não da data da contratação.
De fato, se o referido prazo fosse contado sempre da data da contratação, isso não faria sentido nas hipóteses em que o patrocínio perdurasse por período superior ao prazo de 6 (seis) meses. Isso, porque o patrocínio do link estaria em pleno vigor, mas a parte prejudicada não teria a possibilidade de obter os registros a ele relativos por já haver transcorrido o referido prazo de guarda. Assim, diante da obrigação legal de guarda de registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, não há como afastar, desde que preenchidos os requisitos legais, a possibilidade jurídica de obrigar os provedores ao fornecimento dos nomes ou domínios das sociedades empresárias que patrocinam links na ferramenta “Google Ads”. Do contrário, a própria obrigação de guarda restaria inócua.
Mais do que colocar nos trilhos a discussão sobre o termo inicial do prazo, a decisão da 3ª Turma revela uma preocupação fundamental com a efetividade dos direitos. As razões do Recuso Especial foram, porém, acolhidas apenas em parte, porque a pretensão das Requerentes abarcava período que superava, em muito, o exíguo prazo de 6 (seis) meses.
Provedores não tem o dever de armazenar mensagens deletadas
Já em relação a mensagens deletadas, a 3ª Turma entendeu que os provedores de aplicações que oferecem serviços de e-mail – como o próprio Google – não têm o dever de armazenar as mensagens recebidas ou enviadas pelo usuário e que foram deletadas de sua conta. No julgamento do Recurso Especial 1.885.201, ocorrido em 23 de novembro de 2021, o colegiado isentou o Google de responsabilidade pelos danos materiais sofridos por um usuário que, após sofrer ataque hacker em seus e-mails, perdeu parte das criptomoedas que estavam depositadas em sua conta.
Para o colegiado, embora o caso estivesse sujeito ao Código de Defesa do Consumidor – e, portanto, à responsabilidade objetiva –, não ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do provedor e o dano sofrido pelo usuário. O dano decorreu de fato exclusivo da vítima, já que o acesso à carteira de criptomoedas exige, necessariamente, a indicação da chave privada, então provavelmente o invasor tinha obtido a senha do próprio usuário, seja porque a manteve armazenada em seus e-mails, seja porque a forneceu a terceiros.
Na avaliação da Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, “a regra para os provedores de aplicação de internet tem o objetivo de limitar as informações armazenadas à quantidade necessária para a condução de suas atividades, não havendo previsão para armazenar as mensagens recebidas ou enviadas pelo usuário e que foram deletadas”.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Armazenamento de registros no Marco Civil da Internet. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 7, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/50712642>. Acesso em DD.MM.AA.
Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
STJ, 3ª T, REsp 1961480/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 07.12.2021, v.u., DJe 13.12.2021.
STJ, 3ª T., RESP. 1885201/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 23.11.2021, v.u., DJe 25.11.2021.
Marco Civil da Internet: “Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet. Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade: I - fundados indícios da ocorrência do ilícito; II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e III - período ao qual se referem os registros”.